Hugo Ribeiro o “Senhor Gravação”

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Natural de Vila Real de Santo António, Hugo Ribeiro é um dos nomes para lá dos palcos que mais se arrola na História da música e cultura populares produzidas no nosso país desde os anos sessenta. Foi o responsável por grande parte da música gravada no século XX em Portugal, de Amália Rodrigues e Alfredo Marceneiro a Carlos Paredes, de Álvaro Cassuto a Fernando Lopes-Graça, entre muitos outros.

Hugo Ribeiro, «senhor gravação da Valentim de Carvalho», é um dos nomes incontornáveis da música portuguesa.

Hugo Ribeiro, algarvio, nascido há noventa anos em Vila Real de Santo António, na Miguel Bombarda às três da tarde do dia 7 de Agosto, como faz questão de frisar ao longo da nossa conversa ocorrida em Setembro na sua casa de Lisboa, é um dos nomes incontornáveis da música portuguesa gravada, estando directamente ligado a Amália, Marceneiro e a tantos outros.
 
Quando falamos de um dos mais importantes espaços para a indústria musical, nomeadamente na gravação e reprodução de fonogramas, a Valentim de Carvalho, falamos invariavelmente do trabalho que desempenhou ao serviço dos estúdios em Paço de Arcos. A história individual de Hugo Ribeiro é uma parte importante da história da música produzida neste país, mas também da sociedade e sistemas organizacionais e políticos que a acolheram, como manifesta o nosso diálogo.
 
O «senhor gravação da Valentim de Carvalho», como me dirijo a ele em jeito de brincadeira no decorrer desta conversa, saudoso de Vila Real de Santo António mas radicado em Lisboa, fruto daquela que acabaria por inesperadamente se tornar a sua profissão: a de técnico de som. O homem para quem os ouvidos foram desde 1964 a principal ferramenta de trabalho, responsável por grande parte da música gravada no século XX em Portugal, de Amália Rodrigues e Alfredo Marceneiro a Carlos Paredes, de Álvaro Cassuto a Fernando Lopes-Graça, fez orgulhosamente do estúdio de gravação o seu instrumento musical de eleição e ainda hoje visita o seu antigo local de trabalho em Paço de Arcos e dá conselhos técnicos sempre que é solicitado para o fazer. Numa época que marcou a implantação e desenvolvimento da indústria fonográfica em Portugal, algumas das mais consideradas obras discográficas de produção nacional passaram previamente e ulteriormente pelos seus ouvidos e a narração sobre factos que elas contêm misturam-se com a sua história de vida na cidade de Lisboa.
 
A conversa com Hugo Ribeiro é entusiasmante, contada com a evidência de quem vive esse passado no presente, pautada por episódios que relembra de alguma tensão e outros de grande alegria, a sua vida em Vila Real de Santo António é relatada como preâmbulo desta sua narrativa na primeira pessoa.
 
«Andei numa senhora chamada Júlia que só falava francês. Andei lá depois de ter terminado o liceu. Ela ensinava na casa que o doutor Medeiros lhe tinha dado. A casa era enorme, tinha dois andares e os alunos éramos nós. Eu devia ser o mais pobre. Ensinava-nos línguas. Inglês, mas principalmente francês. Também nos ensinava matemática. Não era assim muito muito completa, mas deu para a gente aprender algumas coisas para depois passar para a universidade. Podia até fazer exames estando lá, mas era muito caro. Como era muito caro ela obrigava-nos logo a rezar a avé maria e o pai nosso, logo ali à entrada. O meu pai nem ia à missa, como os homens lá em Vila Real também não iam à missa, pelo menos no meu tempo. Lembro-me perfeitamente de ver a igreja de Vila Real cheia de mulheres e um único homem. Os anos foram andando e começaram a aparecer homens na igreja, lá para os anos 60.
 
Um dia levei uma tareia da minha mãe por ter dito um palavrão na rua. Naquela rua onde morava o Júlio Mendes, que era o dono do «Bazar das Novidades» de Vila Real de Santo António, que fazia esquina com a rua Miguel Bombarda onde eu morava, que depois passou para um nome de um jornalista daqui (Lisboa) do Jornal O Século, José Barão» o fundador e director do Jornal do Algarve.
 
O contacto com Lisboa dá-se através da música, «tinha um parente meu, um primo mais velho que era contabilista numa empresa americana e que gostava muito de me ouvir cantar (eu cantava com a irmã dele muitas vezes lá em casa de Vila Real, cantava as canções do Tomás Alcaide, canções italianas, o Sole Mio, canções napolitanas), e foi falar ao Valentim (de Carvalho), de quem era muito amigo, que tinha um primo que cantava muito bem e o Valentim disse para o mandar então vir para ele ouvir», lembra.
 
Lúcido e crítico reflecte os aspectos positivos, mas também os que ofereceram uma maior dificuldade numa altura em que a televisão era a preto e branco e as notícias eram propagadas sob a batuta do regime.
 
«O trabalho era uma escravatura, quando comecei a ter mais obrigações chegava a entrar às nove horas da manhã e saía às três ou quatro da manhã, por vezes até dormia no estúdio.
Comecei a gravar discos de 78 rotações, a maioria partiu-se, quando houve aquele terramoto muito grande. Muitas vezes levava os meus discos para o estúdio, porque sabia que lá não se partiam».
 
O processo de gravação em estúdio, com as limitações próprias da altura, era não só um desafio à perspicácia como incentivo às rápidas resoluções técnicas «era ali que se viam os artistas, gravava-se tudo ao mesmo tempo. A Amália, por exemplo, sempre que se enganava repetia tudo desde o início. Acha que ela aproveitava algum bocadinho? Isso era o Marco Paulo, gravava três palavras afinadas e punha-se de parte, dava uma trabalheira… Gravado em fita, tínhamos umas tesouras especiais que eram anti-magnéticas para cortar, cortar e cortar.
 
Eu até gravei uma Homilia do Cardeal Patriarca de Lisboa, em Fátima. Vieram os bispos todos, a PIDE não prestava para nada, estava todo o governo por baixo de mim. Aquilo em Fátima, havia uma espécie de varandim à volta e era aí que a gente metia o material. Em Fátima era um alemão que tratava do som que tinha sido empregado de uma marca de discos, a Deutsche Gram-mophon, e estava lá para ajudar, eles lá tinham uns altifalantes de lata (e cá já havia bons altifalantes) que faziam um barulho que nem imagina, e eu queria ouvir o público, e repare eram mais de um milhão de pessoas, mais os bispos todos, desde Macau até Lisboa, de todas as colónias na altura e o Salazar claro. O patriarca começou a falar na sua Homilia, e a gente a gravar tudo, o seguinte: ”em 1917 aparecia a virgem e ao mesmo tempo em 1917 triunfava na Rússia o comunismo” e daí para a frente foi um discurso político. E antes daquilo ir para disco, porque muitas vezes eles só davam pelas asneiras que se diziam meses passados, eu marquei com um bispo, que não me lembro o nome, para vir ouvir aquilo, não para ouvir a gravação mas só o discurso, que aquilo era um discurso político terrível, mesmo agressivo. Para falar dos três pastorinhos, fez um discurso muito intenso que era a favor do regime, bem ele era muito amigo do Salazar, repare ele dizia o pior do comunismo e que tinha sido um milagre aparecer nossa senhora naquela altura. Sabe o que é que eu fiz? Como aquilo não se podia publicar, cortei a fita, e fiz umas brincadeiras, mas depois tive medo da PIDE porque em Vila Real de Santo António, uma vez, vi entregarem um rapaz à polícia espanhola para ser morto e o rapaz era português, era de Vila Real também. Cortei a gravação aos pedaços, inverti certas frases e pus o cardeal patriarca a falar bem do comunismo (risos), foi uma pena, mas tive de destruir esta gravação».
 
Os laços que criou no seu trabalho com vários músicos e intérpretes impactantes na história cultural e social do país são revelados, apesar dos seus 90 anos, com a argúcia de quem acabou há dias de se confrontar com estes factos, Amália Rodrigues, entre um leque de outros de destaque, é uma das intérpretes e autoras com quem mais conviveu e não se coíbe, na descrição presente das suas memórias, de expressar algumas das suas opiniões.

 

Quando Marceneiro gravou de olhos vendados

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Um dos relacionamentos possibilitados pelo seu trabalho foi com Alfredo Marceneiro: «O disco dele que se vendeu mais foi o que eu gravei, no Castelo, no Teatro Taborda, O Fabuloso Marceneiro. Aquilo era um Teatro de algibeira, ninguém pagava a renda e estava lá a Rádio Restauração. Isto era na altura em que havia também a Rádio Graça, e tinham todas só numa estação, porque o Salazar só permitia uma. Quando ia para o ar a Rádio Graça os outros estavam calados, e era ouvida por toda a gente, toda a gente gostava de ouvir aquilo. Nós gravávamos na Rádio Restauração, agora havia uma que o governo gostava mais, que era o Rádio Clube Português.
 
O Marceneiro dizia ”eu não quero cantar aí”, e eu perguntava-lhe, ”mas não queres cantar aí porquê”? Ele falava comigo sem abrir a mão muitas vezes e dizia ”estás a ver isto filho? Foi com isto que me reformei”. Porque ele fez a Casa da Mariquinhas, que era uma brincadeira, mas que está no Museu do Fado. Eu vi quando ele estava a fazer aquilo, ele era marceneiro, como sabe, e depois aquilo convivia com a celebridade, ele tornou-se muito célebre rapidamente. Um dia zangou-se com o filho, estava eu ali ao pé e o filho (o filho também tinha o feitio do pai mas o pai era pior) e nessas alturas abria a mão. Ele reformou-se sabe porquê? Porque ele passou a receber muito mais depois de se reformar, metiam-lhe uma nota de cinco contos no bolso para ele ir cantar à Casa do Carlos Ramos. À Casa da Fernanda Maria também ia, entre muitas outras. Ele fazia uma vida de rico, pagavam-lhe bem.
 
Ele detestava luz, havia um vidro partido onde gravávamos e entrava um bocado de luz, eu não sabia o que é que havia de fazer, como eu é que tinha de ter as ideias, porque ele recusava-se a cantar naquelas circunstâncias e os guitarristas tinham já recebido para lá ir acompanhá-lo, então chamei-o pedi-lhe o lenço que trazia ao pescoço e atei-o aos olhos e disse para ele cantar para o microfone.
 
Por vezes tínhamos de improvisar. A Amália projectava-se cada vez que cantava para cima do microfone, eu tive sempre uma técnica com ela que era, sem ela saber, de manter desligado o microfone para onde ela cantava e mantinha um no fundo da sala que captava a voz. Foram histórias maravilhosas. Com o Carlos Paredes era também um desafio porque sentia-se muito a respiração quando ele tocava».
 
Nas suas memórias expressas com o entusiasmo de quem as está a transmitir pela primeira vez, ”a gente lembra-se melhor do que aconteceu há 50 anos do que o que ouvi ontem no jornal. É uma coisa impressionante”. Lembra alguma da instrumentalização de que o Fado foi alvo e algumas das crispações a que Amália foi muitas das vezes, nessa atmosfera sujeita.

 
 
Uma revelação inédita sobre Amália Rodrigues
 
«Eu estive lá em casa nessa noite! A Amália, como nunca tinham editado um disco com o nome dela na autoria, metiam o nome de um outro qualquer, convidou o Varela (Alberto Varela Silva, autor, director de teatro e cinema e encenador português) para aparecer como compositor daquele fado, que era da Amália (referindo-se a «Estranha Forma de Vida»). A Amália fez, mas ainda estava naquela vergonha de aparecer como poetisa. Depois editou livros e tudo, mas naquela altura haver uma mulher que se assumisse como autora não era bem visto».
 
A inscrição de autorias nos discos até meados dos anos de 1970 não era uma constante, muitas autorias individuais eram remetidas para o colectivo, seja no caso de discos enquadrados em períodos históricos de alguma conturbação político-social (pré 25 de Abril) seja no caso de músicos cujo contexto em que se inseriam e o discurso que os veiculava, e em que se queriam fixar, se situava no espectro do associativismo e/ou sindicalismo na esteira do 25 de Abril e nomeadamente durante o Processo Revolucionário em Curso (PREC).
 
No universo do Fado o papel da mulher como autora não era, segundo Hugo Ribeiro, algo que fosse motivo de orgulho.
 
«Assisti a coisas verdadeiramente injustas com a Amália, produto de uma sociedade patriarcal e profundamente machista.
Quando era autoria dela não aparecia. Mas, a música do Alfredo Marceneiro era mais ao menos conhecida, agora a letra não. E a letra era dela! Ela pediu ao Varela por tudo e ele nem queria, mas ele acabou por assinar como autor da letra. Se uma mulher naquela altura escrevesse para Fado diziam logo mal. Também diziam mal dela por tudo e por nada.
Eu um dia disse-lhe, isso é um sucesso tão grande, os discos vendem-se aos milhares e tu não queres dizer que a letra é tua? Fomos à Sociedade Portuguesa de Autores, apesar dela ir muito contrariada. A Amália não quis que a gozassem. Até diziam, veja lá, que ela tinha ido à Argentina (pausa). Parecia um daqueles filmes da Idade Média. Bem, diziam tudo e mais alguma coisa, até dava vontade de rir. Diziam que ela levava num anel veneno para pôr no copo e matar Humberto Delgado. Há coisas que a gente ainda acreditava, mas há outras que não se acreditava mesmo nada. Ainda mais a Amália, uma medrosa como ela era. O que ri com esse boato».

 
Lembrando os estúdios da Valentim de Carvalho
 
O seu patrão, como ainda hoje lhe chama, traz-lhe à memória parte da sua vivência naqueles estúdios onde tantos episódios presenciou «O Valentim (de Carvalho) já tinha morrido e o Rui (sobrinho de Valentim de Carvalho), meu patrão, (Rui Valentim de Carvalho) era um grande negociante. Foi o único dos sete irmãos que não se formou. Sabe o que é que o pai tinha? Tinha um restaurante ao pé da Estrela. Está a ver? Tinha de ganhar muito dinheiro para poder formar aquela gente toda. Um até se formou em Medicina na Alemanha e era tudo muito mais caro naquele tempo. Era uma vida completamente diferente. O meu patrão às vezes vinha cá a casa e havia discos que ele não tinha. Ele podia ter tudo, mas como era ainda mais desmazelado que eu, levava os discos emprestados até ao outro dia e não os trazia e depois eram discos que se esgotavam e já não apareciam mais. Muitos que eu gravava».
 
Hugo Ribeiro é hoje uma das figuras mais respeitadas por músicos, orquestradores, compositores e outros técnicos (à altura em que esta conversa acontece, José Fortes, técnico de percurso consolidado no nosso país, liga-lhe) que ainda o contactam para trocar ideias e pormenores daquele e deste tempo. O estúdio de gravação de música no qual desenvolveu a sua profissão foi responsável pelas mais variadas edições discográficas de sucesso ao longo de cerca de seis décadas, no ano de 1991, quando muda a sua fixação geográfica, Rui Veloso é quem estreia as novas instalações registando aí o fonograma «Auto da Pimenta», numa altura em que as instalações originais seriam reconvertidas para estúdio de televisão.
 
Várias foram as orquestras de destaque a gravar em Paço de Arcos. A Valentim de Carvalho representaria o culminar de um caminho no universo da gravação e edição de música em Portugal que iniciara na década de 30.
 
Hugo Ribeiro assistiu e fez parte de todo o processo, numa época em que as gravações eram directas para o disco e o resultado das mesmas seguia no dia para Inglaterra e as provas demoravam cerca de duas semanas a chegar, embora os discos demorassem mais tempo vindos de barco.
 
Numa altura em que a indústria fonográfica vivia um período de experimentação e adaptabilidade e onde sucesso seria sinónimo de venda de cópias, Hugo Ribeiro protagoniza um dos períodos mais marcantes da história cultural do país. A fábrica de discos que a Valentim de Carvalho tinha no Campo Grande, dedicada à prensagem de discos de 78 rotações cresceu e começou a pensar na sua expansão sendo para isso necessário não só gravar com melhores e mais sofisticados meios como mais e foi por isso que Rui Valentim de Carvalho foi a Londres em busca dessas máquinas onde Hugo Ribeiro acabaria por gravar cá em Portugal. Os estúdios de Abbey Road foram a paragem. Com marcas como a EMI ou a Magnetophon faziam-se gravações na Rua Nova do Almada e na sala do Clube da Estefânia pejada de inconvenientes como relembra Hugo «além das mesas de bilhar, as gravações às vezes estavam a correr muito bem e os pavões de um jardim lá ao lado começavam a fazer um barulho insuportável e tínhamos de parar tudo e começar de novo».
 
Mas, o espaço novo acabaria por chegar, o estúdio da Costa do Castelo, que funcionava onde hoje se encontra o Teatro Taborda, no ano de 1951 veio a assinalar um momento crucial na História da Música produzida em Portugal.

JA | Soraia Simões*
*Autora e presidente do projecto Mural Sonoro, Investigadora do Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa (escreveu este artigo sem ser ao abrigo do novo acordo)
Gravação disponível à posteriori no Arquivo Mural Sonoro e projecto europeu ‘Europeana Sounds

 

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