25 de Abril: O drama de quem queria informar com rigor em tempo de censura

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Carlos Albino, Horácio Neves, Humberto Gomes e João Leal

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Escrever nas entrelinhas para tentar fazer passar a mensagem sem que os Serviços de Censura a detetassem, refugiar-se em pseudónimos para salvar a “pele” no caso da situação “dar para o torto”… Este era o dia a dia dos jornais que não apoiavam o regime antes do 25 de Abril de 1974 e o Jornal do Algarve não fugiu à regra

DOMINGOS VIEGAS

Como é que era informar em tempo de censura e numa altura em que nem tudo se podia dizer? Como é que se reivindicava sem ferir a ‘sensibilidade’ do regime e sem criar problemas para quem escrevia e para o próprio jornal? A “ginástica de rim” ou jogo de cintura, desempenhava um papel fundamental.

“Tinha que haver sempre muito cuidado e uma grande subtileza na escrita, para poder levar a água ao moinho. Sabíamos que estávamos sempre a ser observados. Tudo isto era alicerçado pela conduta e liderança que era feita por José Barão. Tínhamos que estar sempre alerta, para não pôr em causa o coletivo e, como se costuma dizer, levar a carta a Garcia”, explica Humberto Gomes, que começou a escrever no Jornal do Algarve em 1959, quando tinha apenas 17 anos.

Horácio Neves, que ficou ‘carimbado’ pela PIDE depois de ter sido detetado numa manifestação de apoio a Humberto Delgado, em Faro, recorda que “era importante dizer as coisas que faziam falta ao Algarve, mas também era preciso dar uma espécie de ‘graxa’ ao regime, nos mesmos textos, para que eles não censurassem os artigos”.

“O regime punia o indivíduo e, muitas vezes, também a família. Era um drama muito grande”, lembra Horácio Neves, Atualmente a residir no Brasil, para onde emigrou em 1961. Tinha começado a escrever para o Jornal do Algarve alguns meses após a sua criação e continuou mesmo depois de se ter visto obrigado a mudar a sua vida para o outro lado do Atlântico.

Notícias cortadas ao sabor do regime

Antes do 25 de Abril de 1974, todos os textos eram submetidos à chamada censura prévia, na Comissão de Censura. O Jornal do Algarve tinha que ir à Comissão Distrital de Censura, que estava sediada em Faro. Os textos eram examinados e podiam ser carimbados de três formas: “Não Autorizado” (não podia ser publicado), “Autorizado com Cortes” (aqui funcionava aquilo que ficou conhecido como o lápis azul, em que eram cortadas as palavras que não podiam ser publicadas) e “Visado” (podia ser publicado).

“No Algarve, o máximo que se podia dizer em termos de notícia era que fazia falta isto ou aquilo. As notícias eram cortadas ao sabor das pressões das pessoas que estavam à frente das instituições do regime”, recorda Carlos Albino, explicando que, por exemplo, o roubo de um banco num jornal do regime “servia para chamar terroristas, bandidos ou comunistas a quem perpetrava o roubo”, mas “nos outros jornais nem sequer era permitido noticiar o assalto”.

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Carlos Albino, que deu início à sua colaboração com o Jornal do Algarve no início da década de 1960, explica que o Jornal do Algarve “foi o primeiro órgão de informação com uma vocação verdadeiramente regional”, já que “até então, a nível regional, só existiam jornais locais ou jornais que viviam para defender a religião oficial, que era a Católica, e o partido único”.

“Não havia liberdade. Mas o José Barão conseguiu furar este cerco com muita ginástica de rim”, garante Carlos Albino.

Aliás, muitos dos colaboradores do Jornal do Algarve estavam identificados pela PIDE ou os seus nomes estavam vetados pelos serviços de Censura. A solução para poderem escrever era a utilização de pseudónimos.

“Escrevi os meus primeiros textos sob pseudónimos: Afonso Gonçalves, Pedro Xavier, Guiomar Horta Ortigão… Se a Censura visse algum texto com o meu nome, este era imediatamente censurado e nem sequer liam o que lá estava. Por exemplo, o ‘Afonso Gonçalves’ foi quem, no Jornal do Algarve, pugnou pela criação da Universidade do Algarve”, conta Carlos Albino.

À procura da Guiomar na ilha da Armona

A utilização de pseudónimos levava, também, a que surgissem situações curiosas (e perigosas), como a que aconteceu com Carlos Albino e a sua série de textos assinados com o nome de Guiomar Horta Ortigão, numa secção intitulada “Mais coisa, menos coisa” (teve que optar por este título vago, porque a Censura cortou todas as hipóteses anteriores).

Inventou que a Guiomar era uma mulher que residia na ilha da Armona e, sob este nome fictício, contava as coisas subliminarmente para que a Censura não as detetasse. Mas a Censura descobriu que havia qualquer coisa naqueles textos que não estava de acordo com o que era autorizado que se dissesse.

“Exigiram ao José Manuel Pereira, o chefe de redação na altura, e ao diretor, que era o António Barão, que lhes desse o endereço da Guiomar Horta Ortigão. Todos disseram que os textos vinham por carta e que não sabiam quem era aquela mulher. Mas todos sabiam que era eu. Então, montaram uma ação de inspeção na ilha da Armona, perguntando porta a porta, para tentar apanhar a tal Guiomar. Mas nunca conseguiram, porque ela não existia”, recorda Carlos Albino.

Quando a Censura de Faro não foi suficiente

João Leal, que começou a sua colaboração como o Jornal do Algarve em 1958, conta outra situação complicada, que aconteceu após a publicação de um texto seu que denunciava o facto de um caixeiro viajante ter descoberto percevejos na cama de uma pensão de Faro.

A partir desse dia, e durante três meses, o Jornal do Algarve teve que passar pela censura de Lisboa e não pelos serviços distritais de Faro. E até os serviços de Censura de Faro foram repreendidos pelos serviços centrais por terem deixado passar aquele texto.

“Escrevi aquilo com toda a inocência da minha juventude e com o simples objetivo de informar e fazer com que o problema não voltasse a acontecer. Mas Oliveira Salazar dizia que atacar o Algarve era o mesmo que apoiar o ‘terrorismo’ em África. O turismo começava a despontar e já era visto como uma das grandes forças que podia ajudar o Governo a ter meios para prosseguir a guerra”, explica João Leal.

Antes de ir para a redação do jornal O Século, José Barrão tinha que levar à Censura, em Lisboa, todos os textos e anúncios, inclusivamente os da necrologia. “Ao fim de três meses, José Barão já não conseguia aguentar mais e disse-me para falar com o então governador civil e pedir que acabassem com esta situação ou o jornal teria que fechar. A situação foi alterada, mas com uma reprimenda e uma aviso: ‘Tenham juizinho, porque aquela situação não pode voltar a acontecer’”, lembra.

Quem não estava com o regime era considerado comunista

“Nesse tempo já sabíamos as mutilações que a Censura fazia aos textos e também conhecíamos as regras com que tínhamos que estar em campo. Mas hoje, infelizmente, existem outras formas de pressão, apesar de estarmos em democracia, tão perversas como as que existiam nesses tempos”, considera João Leal.

Num período onde quem não estivesse com o regime era considerado comunista, Humberto Gomes recorda que o Jornal do Algarve também não escapou a esta conotação: “Houve sempre a conotação do Jornal do Algarve com os comunistas. Ouvia-se nas conversas marginais. Mas isto não tinha qualquer consistência”.

Na sua opinião, o Jornal do Algarve “destacou-se sempre por lutar por causas e não por conveniências. Digam o que disserem, o Jornal do Algarve foi sempre uma imagem de marca no cuidado da informação e no rigor”, defende.

(Excerto da reportagem publicada na edição impressa do Jornal do Algarve de 30/03/2017, que celebrou o 60.º aniversário deste semanário)

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