CARLOS BARROS

FICÇÕES [23.] O espaço duplo

DESDE MUITO CEDO (conta João Alberto) que me seduziu o jogo da bola. O meu pai foi um conhecido futebolista; andou nas seleções; jogou em dois dos maiores clubes nacionais. E eu cresci a ouvir histórias antigas dos Magriços, do Eusébio e do Mário Coluna, do Manuel Duarte e do Jaime Graça, da reviravolta com os coreanos ou do três a um ao Brasil de Pelé em mil novecentos e sessenta e seis. Não esquecerei nunca as tardes de domingo da minha infância nas bancadas dos estádios ou em casa, em grupo, a ouvir os relatos na rádio. O futebol, para mim, representa ainda hoje esse fascinante espaço de irrealidade e abstração, de magia e irracionalidade, esse território fora do mundo concreto, essa possibilidade de evasão e exaltação, de movimento e festa, de glória e infortúnio. E é do futebol, ainda, que guardo as memórias mais fortes da minha infância e juventude: momentos de arte pura, de sortilégio, de milagre: imagens que perduram – de uma finta de Chalana à elegância de Damas em voo, do número nove na camisola de Hector Yazalde ao golo de Jacques aos oitenta e nove minutos em Glasgow, da classe de Humberto Coelho no centro da defesa a cada um dos vinte golos de Radi Zdravkov a jogar numa equipa da província com equipamento à Barcelona.

TAMBÉM EU, como quase todas os seduzidos pelo jogo da bola, tenho o meu clube, a minha equipa. Este espaço de pura libertação e festa só faz sentido quando assumido na irracionalidade de um grupo que une os iniciados contra o resto do mundo. O futebol não teria metade do fascínio se a equipa de arbitragem não estivesse sujeita ao erro em permanência, do mesmo modo que o sobressalto decorre de sabermos que um atleta, a cada momento, é capaz de transcender-se em inspiração e magia ou, por outro lado, descambar em inexplicável inépcia. O remate do avançado por cima da barra quando tem a baliza à mercê, o fora de jogo não assinalado pelo árbitro auxiliar a um artista deslocado seis metros além do último defesa adversário ou o frango, cheio ainda de penas, do guarda-redes em pânico que vê a bola entrar-lhe devagarinho por entre as pernas abertas na base e apenas unidas à altura dos joelhos – eis exemplos de um desacerto necessário à perfeição do jogo, do mesmo modo que a arte maior não existe sem o sortilégio da imperfeição. E é por isso que sou injusto quando assisto a um jogo da minha equipa – no entendimento, desde logo, de que não existe justiça se o meu clube não for o beneficiado dela.

MAS DESTE ESPAÇO de irracionalidade não decorre a inevitabilidade da indecência ou do dislate contumaz. E o que temos assistido nos últimos tempos no futebol português só pode envergonhar-nos de gostarmos do jogo da bola e de termos deixado de compreender que o fanatismo saudável não pode retirar ao futebol a capacidade da decência e do respeito pelos outros. A irresponsabilidade absoluta dos mais responsáveis pelos clubes e pelo futebol português parecem levar-nos a passos gigantes, guiando com eles os adeptos, para a irracionalidade a tempo inteiro.

O MEU PAI (e eu só aos poucos o vou compreendendo) não se cansa de dizer o quanto soube respeitar os golos do Peres contra a sua equipa ou a valorizar gestos como o de Yashin quando cumprimentou Eusébio, que acabara de lhe marcar um golo, por ter diante de si um adversário brilhante e um homem decente.

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