A bateria da Ponta da Areia, em Vila Real de Santo António

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Quem hoje passa nas traseiras do Grand Beach Club, na designada Ponta da Areia, em Vila Real de Santo António, questiona-se sobre as ruínas arqueológicas que se encontram desmoronadas sobre o Guadiana, em frente ao posto de observação da GNR. Ora, de acordo com a tradição oral, estas ruínas são os vestígios do antigo forte de Santo António de Arenilha. Porém, tal afirmação está longe de ser verdade. Na realidade, os robustos materiais pétreos que encontramos derrubados sobre o rio não têm qualquer relação com Santo António de Arenilha, mas sim com o sistema defensivo constituído pelo conjunto de baterias de artilharia ribeirinhas e costeiras que defendiam Vila Real de Santo António. De facto, estas ruínas arqueológicas são o que resta do baluarte da designada bateria da Ponta da Areia, sobre a qual existem inúmeras fontes cartográficas e manuscritas à guarda dos arquivos nacionais e estrangeiros.

Plano da Fortaleza para se situar na Ponta da Area, e defender a entrada da barra do Guadiana, o Rio; e a Costa, por ordem do Conde de Val de Reys, Gor, e Cap.am G.nal do R.no do Algarve, de José de Sande Vasconcelos. GEAEM/DIE, 114/I-2A-26A-38
Bataria da Ponta d’Areia que defende a barra do Guadiana a qual foi acabada e redificada por ordem de S.ª Alteza Real. GEAEM/DIE, 3840-2-19-28DIE, 114/I-2A-26A-38

De acordo com a documentação cartográfica anterior a 1776 e à guarda do Instituto Geográfico Português e do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, a então chamada “Bataria da ponta de Sto António foy estabelecida no ano da Guerra para embaraçar que os castilhanos Desembarcasem nas margens do Rio Guadiana e para defender a costa e igualmente a barra de mais perto” (I.G.P., Catálogo de Cartografia Antiga, Nº 255). Quer isto dizer que esta estrutura defensiva, originalmente edificada em madeira e equipada com duas peças de artilharia, remonta à designada Guerra Fantástica, que opôs Espanha a Portugal em 1762. É certo que esta estrutura defensiva já se encontrava arruinada à data do início da construção da nova vila pombalina. Note-se, no entanto, que o engenheiro militar Romão José do Rego ainda assina a relação da artilharia, palamenta e munições de pólvora e bala da bateria da Ponta da Areia em Outubro de 1774 (PT/AHM/DIV/4/1/02/14). No ano seguinte, Sande Vasconcelos representa a “Bateria de S. An.to.” na carta topográfica do termo de Santo António de Arenilha, de 1775 (I.G.P., Catálogo de Cartografia Antiga, Nº 259), tal como o faz em Configuração Geographica do Reyno do Algarve…, carta militar publicada na obra Mappa geral de differentes objectos e noticias do reyno do Algarve, de 1787 (B.N.P., COD-922). Note-se que estas cartas não facultam qualquer informação quanto à configuração ou apetrecho desta bateria. Essas informações, porém, são facultadas por outras fontes cartográficas produzidas pelo mesmo autor, como a Configuração hidrografica da costa do r.no dªAlgarve, documento através do qual ficamos a saber que, em 1787, a “Bat. da Ponta da área” se encontrava equipada com duas peças de artilharia de ferro e 64 projécteis (B.N.P., CPAR-20) ou o Mappa da Configuração de todas as Praças Fortalezas e Baterias do Reyno do Algarve, documento através do qual ficamos a saber que a bateria da Ponta da Areia era composta por uma estrutura em madeira onde assentavam as bocas-de-fogo e com o respectivo quartel, destinado a albergar militares, munições e restantes apetrechos (B.N.P., CA-8-R).


Refira-se que Sande Vasconcelos chegou mesmo a fazer um ambicioso projecto para uma nova fortaleza na Ponta da Areia, em data que podemos balizar entre 1790, ano em que este engenheiro militar foi promovido a coronel, e 1795, ano em que o 6.º Conde de Val de Reys, Nuno José de Mendonça e Moura, cessou funções como Capitão General do Reino do Algarve. Com efeito, o Plano da Fortaleza para se situar na Ponta da Area, e defender a entrada da barra do Guadiana, o Rio; e a Costa, por ordem do Conde de Val de Reys, Gor, e Cap.am G.nal do R.no do Algarve (GEAEM/DIE, 114/I-2A-26A-38), mostra que o projecto deste engenheiro militar passava pela construção de uma fortaleza bastante completa e funcional, mas que nunca se veio a concretizar, certamente em virtude de mais que prováveis constrangimentos orçamentais. Aliás, nem o projecto de Sande Vasconcelos, nem o projecto de Eusébio de Sousa Soares, de 1799 (GEAEM/DIE, 119-2A-26A-38), cuja planta publicámos no Jornal do Algarve Magazine de 27 de Maio de 2021.

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Parte do baluarte da bateria da Ponta da Areia desmoronado sobre o Guadiana, em fotografia da década de 60 do séc. XX


O projecto que efectivamente veio a ser concretizado é da autoria do engenheiro militar Baltazar de Azevedo Coutinho. De facto, é a Bataria da Ponta d’Areia que defende a barra do Guadiana a qual foi acabada e redificada por ordem de S.ª Alteza Real, de 31 de Julho de 1809, a apresentar a solução muito mais modesta que veio a ser adoptada, ou seja, a construção de apenas um baluarte equipado com rampa e os quartéis destinados aos soldados, palamenta e paiol (GEAEM/DIE, 3840-2-19-28). Por outras palavras, e tal como podemos verificar ao comparar a planta deste projecto com os registos fotográficos dos anos sessenta do séc. XX, é o baluarte da bateria da Ponta da Areia que corresponde à silharia que na actualidade se encontra desmoronada sobre o Guadiana, correspondendo os quartéis para os soldados, palamenta e paiol à estrutura que mais tarde veio a ser transformada em posto da Guarda Fiscal e que na actualidade funciona como posto de observação da GNR. Constata-se, portanto, que as ruínas arqueológicas localizadas nas traseiras do Grand Beach Club remontam a 1809, isto, é, à denominada Guerra Peninsular, também conhecida por “Invasões Francesas”, não tendo qualquer relação com a desaparecida sede de concelho de Santo António de Arenilha.


De resto, a bateria da Ponta da Areia veio a ser alvo de vários restauros ao longo do século XIX, tal como podemos constatar pelos trabalhos cartográficos de engenheiros militares como António José Vaz Velho. Finalmente, em 1860, foram retiradas as duas peças de artilharia desta bateria, devido “não só ao mau estado dos reparos como, ao iminente risco em que está o forte de cahir de todo para o rio” (Jornal O Bejende, Nº 15, 10 de Junho de 1860). Lamentavelmente, foi o que veio a acontecer. Sit tibi terra levis.

Fernando Pessanha

*Historiador

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