A Bateria do Medo Alto: monumento perdido da Guerra Fantástica

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Quem hoje passa na Avenida da República, em Vila Real de Santo António, desconhece que nas proximidades do edifício Parodi – onde actualmente funciona o conservatório – existiu uma fortaleza/bateria de artilharia edificada por cima de uma grande duna de areia, motivo pelo qual esta estrutura defensiva ficou conhecida pela imponente designação de Medo Alto. Com efeito, as primeiras referências documentais relativas à construção e funcionamento deste dispositivo remetem para a década de sessenta do séc. XVIII, ainda antes da edificação da vila pombalina. É o (Mapa da) Configuração da Costa do Reyno do Algarve, documento à guarda do Instituto Geográfico Português (Catálogo de Cartografia Antiga, N.º 241) e onde aparecem representadas todas as baterias, fortes e fortalezas algarvias, a referir: “Barranco. Neste sítio no ano da guerra se contruio hua bataria de madeira, para senhoriar o rio guadiana a qual o tempo já destruio: a utilidade de senhoriar e navegação do dito, mostra a necessidade de ser restabelecida”. O facto de este documento ser ligeiramente anterior à edificação de Vila Real de Santo António vem demonstrar, portanto, tratar-se da Guerra Fantástica de 1762, conflito militar durante o qual Sebastião José de Carvalho e Melo (o futuro marquês de Pombal) incumbiu o governador de Armas do Reino do Algarve, o Marquês de Louriçal, da construção de baterias nos locais de maior necessidade, sendo que “na foz do Guadiana, fronteira a Ayamonte (…) no sítio de Barrancos foi edificada a Bateria de Medo Alto” (Arquivo Nacional, Vol. 11, p.302). De resto, outros documentos cartográficos como a Carta Hydrographica das margens do Rio Guadiana…, também à guarda do Instituto Geográfico Português (Catálogo de Cartografia Antiga, CA255), são lacónicos ao remeter a construção da bateria do Medo Alto para o “ano da Guerra para Senhoriar a navegaçam do Rio Guadiana”.

A bateria do Medo Alto em postal de inícios do séc. XX. PT-AMVRS-CMVRS 883,
D1-E03-P04-Cx.005-Cp.10


Estes mapas não são, porém, os únicos documentos a atestar a construção desta bateria/fortificação, destinada a controlar a foz do Guadiana nos anos que antecederam a edificação de Vila Real de Santo António. É certo que esta estrutura já se encontrava arruinada à data da produção dos referidos documentos cartográficos, no entanto, há registo quanto ao seu funcionamento nos anos que se seguiram à Guerra Fantástica. É o caso de um conjunto de três documentos de particular interesse, à guarda do Arquivo Histórico Militar, e datados de 1766, ou seja: dez anos antes da fundação da vila pombalina. Trata-se dos ofícios de D. Tomás da Silveira e Albuquerque Mexia, Governador do Reino do Algarve, e de Bruno de Sousa Henriques de Almeida, governador da praça de Castro Marim, para Francisco Xavier de Mendonça Furtado, secretário de Estado da Marinha e do Ultramar. Documentos, refira-se, alusivos a um navio oriundo da praça portuguesa de Mazagão, em Marrocos, e que chegou à “fortaleza de Medo Alto”, concelho de Santo António de Arenilha, com dez éguas destinadas ao rei D. José I (PT/AHM/DIV/1/06/19/05). A verdade é que a assinatura do tratado de paz que pôs fim à Guerra Fantástica não implicou o fim das hostilidades contra os portugueses nos anos que se seguiram ao término do conflito militar entre o exército luso-britânico e o exército franco-espanhol. De facto, a correspondência de D. Tomás da Silveira de Albuquerque Mexia, governador do Reino do Algarve, releva para o ano de 1765 situações como as movimentações de tropas espanholas, as preocupações com as obras de fortificação ou as dificuldades levantadas pelos espanhóis de Ayamonte na passagem de víveres para o Algarve. Refira-se, aliás, que uma missiva do governador do Reino do Algarve para o conde de Oeiras, de 1 de Dezembro de 1765, refere as intenções espanholas quanto a um desembarque na Rocha da Zambujeira, entre Castro Marim e o Azinhal, assim como informações sobre a cavalaria estacionada em Ayamonte ou os regimentos suíços estacionados em Sevilha (PT/AHM/DIV/1/08/08/15). Vemos, portanto, que a manutenção da bateria do Medo Alto nos anos que se seguiram à Guerra Fantástica apresentava-se estrategicamente necessária, de modo a assegurar o controlo da foz do Guadiana e a defesa da fronteira portuguesa face a uma eventual invasão por parte do exército espanhol.


De resto, a bateria do Medo Alto continuou a existir ao longo do restante séc. XVIII, tendo sido representada nas obras cartográficas de engenheiros militares como José de Sande Vasconcelos ou Baltazar de Azevedo Coutinho. Restaurada e reconstruída ao longo dos anos, contribuiu para a vitória portuguesa na Grande Batalha do Guadiana de 1801, no contexto da Guerra das Laranjas, e assistiu a momentos incontornáveis da nossa História Contemporânea, como a Guerra Peninsular ou as Guerras Liberais. Mais tarde, já munida de farol/mirante, foi transformada em posto da Guarda Fiscal, tendo subsistido até ao séc. XX, quando o imponente medo de areia foi destruído para dar lugar à fachada de fábricas de conserva que caracterizou a frente ribeirinha de Vila Real de Santo António. Na actualidade, não existe qualquer sinalética ou toponímia que assinale in loco a saudosa bateria do Medo Alto, ainda que este antigo monumento, que remonta à Guerra Fantástica, tenha assistido a tantos conflitos bélicos movidos em prol da defesa da soberania nacional. In Memoriam.

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Fernando Pessanha

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