A carneirada

Foi sobretudo o caso Casa Pia, e mais especificamente os acontecimentos em torno de Carlos Cruz, há uns anos atrás, que me fez descrer da Justiça portuguesa. Segui o caso com atenção e até alguma obsessão, li processos e acórdãos, livros e notícias soltas, assisti a debates e peças de TV, feicebuqueei, discuti, arranjei amigos e inimigos para a vida. Declarei-me desde cedo a léguas dos ignóbeis do “ele até tem cara de pedófilo”, sempre com a mesma teimosia com que me distanciei dos muitos “acreditei em si (ou nele) desde a primeira hora”.

Sim, eu lembro e admiro o genial Carlos Cruz do “123”, do “Pão Com Manteiga”, das grandes entrevistas brilhantes. Mas nunca deixei que a minha racionalidade se deixasse contaminar pelo apreço profissional e até afetivo que sentia.

Havia um cidadão detido em circunstâncias estranhas, num quadro factual estranho, e eu… tinha dúvidas. Eu e milhões de portugueses. Ao contrário da maioria desses milhões, que se deixaram esmagar, manipular, por uma Imprensa feita refém da acusação pública e dos advogados dos assistentes, eu parti, sem preconceitos, à procura da verdade. Limpo, isento de juízos prévios nem contaminações de juízo, de um lado ou doutro da barricada.

Afinal, eu sou jornalista e acredito na existência da verdade e da mentira. Apenas pus em prática, para consumo interno e eventual divulgação não profissional – porque qualquer que fosse a conclusão a que chegasse, se chegasse, era “uma bomba” e tinha que ser publicitado, ainda que só nas redes sociais ou em conversas de café – o que diziam os cânones da minha profissão: se a verdade existe, e está ao meu alcance descobri-la, vou mesmo procurá-la, custe o que custar, de cabeça limpa e peito aberto a todas as possíveis deceções! Fazia-me confusão que, eventualmente, um inocente pudesse estar na cadeia. Dizia a esses meus amigos que se isso acontecesse não era só Carlos Cruz que estava preso. Era eu que estava na cadeia, todos estávamos. A maioria deles nunca entenderam!

Na altura da minha pesquisa o processo era público, mas era imenso. Levei anos atrás da verdade, aos poucos assomei a ela e tirei as minhas conclusões, que de tantas que são não cabem nesta crónica.

Sempre me espantei que a maioria dos meus amigos, muitos deles jornalistas, fossem indiferentes às minhas investigações particulares e às conclusões a que chegava, às conversas racionais que tentava manter com eles. Uns por confessada preguiça, outros porque não era a “área” deles (esta coisa da “área” agora é moda, vivemos todos em pequeninos Tê Zeros mentais, medíocres e mesquinhos!), mais de 90 por cento daqueles com quem tentava partilhar as descobertas que ia fazendo demitiram-se de ser homens.

Sim, no processo e nas peças processuais que li, nos inquéritos, nos esboços de casas e retratos-robô, nos vídeos das visitas aos locais “suspeitos” está tudo! Tudo o que me foi fazendo descrer numa justiça que condenou um cidadão, não em nome da verdade, mas da “ressonância da verdade”. E assumidamente sem provas. Materiais, forenses, testemunhais. Nenhumas! Num processo filho de uma péssima Imprensa, conduzido por péssimos polícias. Que corrompeu alegadas vítimas. A partir desse acórdão e dos que se lhe seguiram em tribunais de recurso, nunca mais acreditei na Justiça portuguesa. O que aconteceu era inominável, suscetível de dar voltas às entranhas de em santo. São vastas as provas (sim, eu disse provas) de que nenhum dos arguidos condenados cometeu os crimes de que são acusados. Podem ter cometido outros, mas não aqueles. Cruz é o mais documentado, mas a presunção de inocência estende-se aos demais.

Mas houve quem continuasse a confiar na Justiça. Muitos. Andam no Facebook, são os tais que acham que os pedófilos têm “cara de pedófilo”. Gente pequenina, medíocre. Esses, ao contrário de mim, confiam na Justiça. Desde que a Justiça lhes confirme as prévias certezas. Condenaram Carlos Cruz muito antes de a juíza Ana Peres o fazer. Condenaram todos os outros.

Quando a Justiça lhes infirma as certezas justicialistas, deixam de acreditar nela na hora. Vejam o que aconteceu com Paulo Pedroso. Foi ilibado no caso Casa Pia, nem sequer foi a julgamento (!), o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem condenou o Estado português a pagar-lhe uma indemnização. Mas isso não chega para dissuadir os justiceiros de trazer por casa, que vituperam agora a candidata presidencial Ana Gomes, porque o escolheu para a estrutura de campanha.

E não são só os trauliteiros do Chega. Há-os em todos os partidos. E as redes estão cheias de socialistas que acreditam na Justiça. Desde que a Justiça não troque as voltas às suas certezas antecipadas, como acontece com o caso de Pedroso.

Sabedora de tudo isto, conhecendo de antanho muitos dos espécimes que a rodeiam no partido, a ex-eurodeputada não deixa de mostrar, uma vez mais, que “os tem no sítio”.

Com Cruz ou Pedroso, ou qualquer outro, há sempre quem recuse fazer o caminho da carneirada.

João Prudêncio

Deixe um comentário

Exclusivos

Professor Horta Correia é referência internacional em Urbanismo e História de Arte

Pedro Pires, técnico superior na Câmara Municipal de Castro Marim e membro do Centro...

O legado do jornal regional que vai além fronteiras

No sábado passado, dia 30 de março, o JORNAL do ALGARVE comemorou o seu...

Noélia Jerónimo: “Cozinho a minha paisagem”

JORNAL do ALGARVE (JA) - Quem é que a ensinou a cozinhar?Noélia Jerónimo (NJ)...

Realidade algarvia afeta saúde mental dos jovens

Atualmente, a incerteza sobre o futuro académico e profissional preocupa cada vez mais os...

Deixe um comentário

Por favor digite o seu comentário!
Por favor, digite o seu nome

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.