A Giganta (2)

(continuação)

No mais, debaixo da gentil alfarrobeira só tinham lugar sonhos recatados, chãos, destituídos de grandeza ou pompa, ansiedades por colheitas fartas que dessem para os fiados da mercearia e deixassem forro, por invernos mais chuvosos que pusessem as ribeiras a correr e dessem para encher poços e noras, pelo regresso dos filhos sãos e salvos de guerras e deserções, pelo casamento das filhas com homens bons e honrados e por que Deus os velasse e lhes desse vida e saúde. Nada de grandioso ou inacessível, em vidas consumidas sempre abaixo do suficiente no mantimento e longe das estremas das letras e da razão. Robusta, firme, vendendo saúde, com a frugalidade e o bom governo da sua espécie, nunca se lhe conheceu mazela que demandasse penso ou desbaste. Apenas a incompetência do Carocho – o gato baldeado e calaceiro da casa – permitindo que uns musaranhos nela pudessem ter vida folgada, originou a seca de um ou outro raminho, cujos rebentos estes roeram emurchecendo as folhas. Mas eram minúsculos acnes, grumos nanicos que nem se viam ao longe, não lhe desfeando o atavio. E até, ao que um vizinho me contou tempos idos, se revelou enérgica e inflamada na política: agitava os ramos mais altos copiando as ondas, como os maoistas faziam com os seus estandartes, quando haviam comícios na cidade.


Tempos, vontades e ventos levaram-me de Miraflores antes de me fazer homem. Aquele arvoredo camarada, seres mansos que me mimaram em menino e de quem era devoto, o céu azul sereno que se misturava com o mar lá ao fundo na lonjura, a casa tosca, de adobe, acaçapada numa aba, onde eu saudava as alvoradas quando pelas gretas do caniço e da telha velha, a claridade me mostrava umas luzinhas que anunciavam o dia, a Giganta protectora a que teimava em subir, redobrando a ansiedade da minha mãe, essas marcas e lembranças foram-se delindo, e outros sóis, outros céus, outras gentes, foram preenchendo as tramas e o estrafego que até aqui me trouxeram. Porém, alimento o afecto e agradeço as dádivas que recebi dos sítios onde fui crianço, por eles peregrinando sempre que posso, caminhando entre as pitas dos caminhos, tentando adivinhar a abundância das safras, buscando o pezinho esquivo da bizarra erva-abelha ou o fulgor serrano da rubra rosa albardeira, que me acordam na alma os tempos da inocência. Porém, numa dessas deambulações, em vez do agrado da rememoração sofri o tormento de para ali ter guiado os passos: da casa sobrava um monturo de pedra caliça, telha partida e argamassa que uma escavadora de rastos ali tinha deixado após arrasar tectos, contrafortes e alvenarias. Eram escombros, destroços de uma batalha em que um dos contentores nem armas tinha para dar luta.


E, tombada na terra, com as raízes descarnadas, mortas, apontando para o céu como se suplicassem por piedade ou incriminassem quem manda, a Giganta jazia e a garganta apertou-se-me. Aquela árvore era um ser sagrado. Substitui-la por uma rotunda insípida e por prédios enfadonhos foi uma reles javardice. Que uma maldição cósmica caia sobre quem a assassinou.

Rogério Silva

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