(continuação)
No mais, debaixo da gentil alfarrobeira só tinham lugar sonhos recatados, chãos, destituídos de grandeza ou pompa, ansiedades por colheitas fartas que dessem para os fiados da mercearia e deixassem forro, por invernos mais chuvosos que pusessem as ribeiras a correr e dessem para encher poços e noras, pelo regresso dos filhos sãos e salvos de guerras e deserções, pelo casamento das filhas com homens bons e honrados e por que Deus os velasse e lhes desse vida e saúde. Nada de grandioso ou inacessível, em vidas consumidas sempre abaixo do suficiente no mantimento e longe das estremas das letras e da razão. Robusta, firme, vendendo saúde, com a frugalidade e o bom governo da sua espécie, nunca se lhe conheceu mazela que demandasse penso ou desbaste. Apenas a incompetência do Carocho – o gato baldeado e calaceiro da casa – permitindo que uns musaranhos nela pudessem ter vida folgada, originou a seca de um ou outro raminho, cujos rebentos estes roeram emurchecendo as folhas. Mas eram minúsculos acnes, grumos nanicos que nem se viam ao longe, não lhe desfeando o atavio. E até, ao que um vizinho me contou tempos idos, se revelou enérgica e inflamada na política: agitava os ramos mais altos copiando as ondas, como os maoistas faziam com os seus estandartes, quando haviam comícios na cidade.
Tempos, vontades e ventos levaram-me de Miraflores antes de me fazer homem. Aquele arvoredo camarada, seres mansos que me mimaram em menino e de quem era devoto, o céu azul sereno que se misturava com o mar lá ao fundo na lonjura, a casa tosca, de adobe, acaçapada numa aba, onde eu saudava as alvoradas quando pelas gretas do caniço e da telha velha, a claridade me mostrava umas luzinhas que anunciavam o dia, a Giganta protectora a que teimava em subir, redobrando a ansiedade da minha mãe, essas marcas e lembranças foram-se delindo, e outros sóis, outros céus, outras gentes, foram preenchendo as tramas e o estrafego que até aqui me trouxeram. Porém, alimento o afecto e agradeço as dádivas que recebi dos sítios onde fui crianço, por eles peregrinando sempre que posso, caminhando entre as pitas dos caminhos, tentando adivinhar a abundância das safras, buscando o pezinho esquivo da bizarra erva-abelha ou o fulgor serrano da rubra rosa albardeira, que me acordam na alma os tempos da inocência. Porém, numa dessas deambulações, em vez do agrado da rememoração sofri o tormento de para ali ter guiado os passos: da casa sobrava um monturo de pedra caliça, telha partida e argamassa que uma escavadora de rastos ali tinha deixado após arrasar tectos, contrafortes e alvenarias. Eram escombros, destroços de uma batalha em que um dos contentores nem armas tinha para dar luta.
E, tombada na terra, com as raízes descarnadas, mortas, apontando para o céu como se suplicassem por piedade ou incriminassem quem manda, a Giganta jazia e a garganta apertou-se-me. Aquela árvore era um ser sagrado. Substitui-la por uma rotunda insípida e por prédios enfadonhos foi uma reles javardice. Que uma maldição cósmica caia sobre quem a assassinou.
Rogério Silva