A homofobia mata. E faz doer as costas

O preconceito está em nós, persegue-nos para onde quer que vamos, pertence-nos como um dedo ou a rótula de um joelho.

Um dia destes, o preconceito, que verdadeiramente mata diariamente em todo o mundo, valeu-me uma valente dor de costas.

Do mal o menos. No meu caso – ao contrário de milhares de outras vítimas – ainda cá estou para contar.


Sabem aquelas alturas em que, perante uma qualquer consequência, fazemos rewind até à causa mais próxima e por aí adiante, como aquelas crianças que repetidamente questionam “porquê”?


Foi o que me aconteceu há dias, num fim de tarde após algumas horas de praia, estava eu deitado com um valente escaldão no tronco, braços e pernas, mas sobretudo nas costas. E tamanho era ele que mal me permitia esse estado de fricção costal com o lençol. O regime pré-insolação que deveras me avermelhava o corpo e causava dores horríveis não afetou o cérebro. Foi graças a ele que, de causa em causa, lá me fui intelectualmente aproximando da causa primordial daquele sofrimento.


Afinal, antes de chegar à praia, fui propositadamente a um espaço comercial comprar uma embalagem de protetor solar de nível 30, o que me deveria chegar para evitar vermelhidões e ardores neste meu primeiro dia de praia a valer.


O guarda-sol pertencente ao amigo que me acompanhava poderia ter sido suficiente para evitar a exposição. Contudo, entre períodos em que a pequenez do artefacto não permitia a cobertura do meu corpo pré-balear e outros períodos em que passeava pelo areal ou, por longos minutos, já dentro de água, hesitava no gélido mergulho, a pele foi ficando exposta, embora na altura não houvesse dor. Coisa típica do escaldão.


Já a meio da tarde – e depois de um almoço fora do areal -, os sintomas pré-insolação chegariam sob a sensação de um frio brutal, nada condizente com os 28 graus de temperatura que assinalava o meu telefone. Tive que ver no ecrã para acreditar, por muito que o meu amigo repetisse “está calor, pá!”. Tive que o deixar sozinho na areia, interrompi o dia de praia por volta das quatro e fui para casa a tiritar de frio, o corpo inchado (seguramente já balear) e só quando me vi no espelho da casa de banho percebi tudo: tinha a cor de uma lagosta. As costas – sobretudo elas – pareciam a bandeira do PS.


“E o protetor solar nível 30, porque não o usaste?”, perguntarão. E eu responderei: por preconceito. Porque tive vergonha de pedir ao meu amigo que me passasse o creme pelas costas (o meu estado pré-balear não me permite chegar com os dedos às zonas mais próximas da coluna vertebral). E sobretudo porque sabia que ia levar uma valente nega do meu amigo. Conheço-o.


Já depois de ter concluído isto, fi-lo saber ao meu amigo que, entretanto, me telefonou a saber se estava melhor. E sim, ele confirmou a razão do meu rebuço (“Epá, nunca passaria creme nas costas de um homem, só numa mulher, ou ela em mim”), mas não o diagnóstico remoto (“Não é preconceito, é uma questão de educação, sempre fui assim”).


Pois eu acho que foi preconceito, sim. Um preconceito tão entranhado e subconsciente em nós – incluindo em mim – que nunca no areal me passou pela cabeça fazer o pedido ao companheiro de praia e foi preciso uma reflexão posterior para perceber as razões profundas, e tão mentais, do ardor dérmico. Com uma “gaja”, como companheira de praia jamais teria apanhado o escaldão. Mas era um “gajo” e nem me passou pela consciência ousar no pedido.


Repare-se que não estamos a falar de massagens, ou de tirar vantagem erógena, ou de qualquer tipo de prazer entre mim e o meu amigo, ambos heterossexuais e, que eu saiba, sem qualquer histórico gay. Falamos de um contacto corporal que deveria ser tido como normal face a estritas razões de saúde.


O preconceito não deixou. Não aquele que nos faz marginalizar, segregar, discriminar, ostracizar, insultar, fuzilar, empurrar do alto de edifícios. Mas o outro, bem mais insidioso e difícil de detetar: o que nos acompanha sem darmos por isso, por muitas declarações anti-homofóbicas que façamos. O mesmo que, desde pequenos, nos faz sentir como normal cumprimentar um homem com um aperto de mão e uma mulher com dois beijos na face. Faz parte de nós, como um dedo ou uma rótula.


Como os moinhos de Dom Quixote, até os hetero são vítimas da fúria delirante do preconceito vigente. Nem que os resultados sejam apenas… uma dor dérmica de três ou quatro dias.

João Prudêncio

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