A loja dos 300

Para quem estiver atento ao corrupio de desejos e promessas dos últimos 30 anos no Algarve, o inusitado anúncio dos 300 milhões de euros – feito de forma extemporânea, desenquadrada e completamente despropositada, naquela onda do “vamos lá calar a boca a estes tipos” – não traz nenhuma onda de esperança nem vaga de otimismo.


Não porque 300 milhões seja pouco, num quadro em que, nos 8 anos que vão de 2013 a 2020, o Algarve conta com 318 milhões de euros de subsídios europeus para investimentos de fundo: o dinheiro extra representa uma duplicação, partindo do princípio que o próximo Programa Operacional para a região, até 2027, não fugirá quantitativamente muito do anterior.
Mas sobretudo porque, com as experiências do passado, tenho fundadas razões para duvidar que os fundos sejam investidos onde mais falta fazem: num tecido empresarial que traga à região alternativas à monocultura turística (de que estamos a sofrer os efeitos, nesta era pandémica), na mobilidade, na resolução do problema da água, na saúde e na aposta na qualidade de vida das populações, por que passa o ensino, a cultura e o lazer. Sem esquecer o Turismo, claro.


Essas dúvidas assentam essencialmente na experiência passada. Há quase três décadas, quando aqui cheguei, e nos muitos anos que se seguiram, a agenda das realizações diziam respeito ao magnânimo Turismo e às acessibilidades: daqui até à Marateca não havia autoestrada, de Albufeira para Barlavento não havia Via do Infante. Os de cá berravam com os de fora, reclamando as duas vias. E elas fizeram-se.


Mais discretamente, resolveu-se o problema imediato da seca na região, com a ligação das redes de sotavento e barlavento e a construção das albufeiras de Odelouca, Odeleite e Beliche. Mas ficou-se a meio quanto a meios suplementares de captação, como bem demonstrou Carmona Rodrigues: podíamos ter o problema resolvido logo desde o início do século, captando água do Guadiana – um investimento literalmente ao preço da chuva – como fizeram os espanhóis sem nos dar cavaco. Agora, já a rapar o fundo das barragens, estamos a correr atrás do prejuízo. E ainda nem fomos capazes de descartar a hipótese Foupana, muito mais cara e demorada do que a solução Carmona. Mas nós somos ricos…


No resto, ficámos a meio ou, simplesmente, atirámos ao lado: na saúde, inaugurámos o Hospital de Portimão, mas não resolvemos o problema de Faro; no Turismo de inverno enxameámos o distrito de pavilhões multiusos – hoje vazios – mas faltou “o tal” grande pavilhão, de que tanto se falou durante 20 anos; construímos um estádio a reboque do Euro 2004, mas não tem utilidade e está refém de dirigentes políticos e desportivos sem visão de futuro.


Na mobilidade ficou quase tudo por fazer. Lembro-me, há quase 30 anos, de o então autarca de Faro, Luís Coelho, falar em retirar o comboio do centro da cidade, como se fosse já “pr’amanhã”. Lembro-me de uma rede algarvia transformada em metro de superfície, dos sonhos do comboio com estação central no Patacão, do comboio na Universidade, do comboio no aeroporto. Como me lembro dos sonhos de travessia da linha férrea sobre o Guadiana, da chegada da linha a Sevilha. Para não falar do TGV ligado à AVE espanhola. Tudo, mas literalmente tudo, ficou por fazer quanto à via férrea nestes 30 anos!


Não foi por falta de dinheiro que tanto ficou por fazer. Foi por opção política. O grosso dos fundos comunitários continuou a drenar para o que eu chamo os “profissionais da CEE”: empresas ínfimas, normalmente de serviços, de gente que viveu, vive e viverá à custa de projetos supostamente empresariais, arruinados à partida, sem viabilidade a longo prazo, que candidatam a fundos europeus. Candidatam agora, como já fizeram no anterior e candidatarão no próximo e no seguinte. E só têm porta aberta graças a esses fundos.


Querem um pequeno exemplo? A atual pandemia é terrível, mas não deixa de ser, tudo indica, uma maleita a curto prazo. Mais mês menos mês haverá uma vacina e libertar-nos-emos desta forma de vida que agora nos ensombra. Pois bem: no quadro da reprogramação do atual quadro comunitário foram aprovados 12 projetos de empresas para combater o vírus. As receitas do costume: máscaras, álcool gel, ventiladores. Precisamente aquilo de que agora precisamos mas daqui a um ano, tudo indica, talvez não precisemos. Multipliquem-se, já agora, estes dinheiros por Portugal inteiro e veja-se quanto dinheiro se atira para o lixo.


Tenho por isso fundadas razões para pensar que acontecerá com os vindouros 300 milhões de euros o que aconteceu com as muitas outras centenas de milhões até hoje destinados à região. Talvez cheguem – até porque hoje há uma capacidade de escrutínio e de controlo que não havia dantes – para ajudar no problema da água, no Hospital Central e pouco mais. Para trás ficará o comboio, a cultura, muitos projetos estruturantes ficarão, como sempre, a marcar passo.
E o grosso das verbas, temo eu, ficarão expostas à cobiça alheia como se se tratasse de loiça numa “loja dos 300”. À espera que alguém lhe pegue, chegue à rua e a espatife na primeira esquina.

João Prudêncio

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