A morte saiu à rua e levou Fernando Reis

“Ele dorme um sono sagrado…
Nunca digas que os bons morrem”

Calímaco, escultor grego

Intervenção para o Porto Canal

No passado dia 4 de Dezembro, tarde chuvosa e fria aqui na Figueira da Foz, estava eu embrenhado no campo da memória a desfiar a morte do Primeiro-Ministro Francisco Sá Carneiro, há 41 anos, na sequência da queda do Cessna, em Camarate, que roubou a vida ao maior estadista português, eis se não que o telefone toca.


Do outro lado da linha uma amiga transmitia-me a pior das notícias: “morreu o Fernando Reis”. Não obstante saber da gravidade do estado de saúde do director do Jornal do Algarve, fiquei consternado e incrédulo com aquilo que acabara de ouvir.


De imediato liguei ao jornalista Manuel Neto Gomes, amigo comum, que assina no Jornal do Algarve a acutilante crónica “Remate Certeiro” e que tratava o director carinhosamente por “Mano Velho”, para desabafar sobre o infortúnio. As palavras do autor do livro “Pelo Mar Adentro Alimentando O Fumo das Fábricas” foram poucas, mas carregadas de tristeza e bons sentimentos pelo amigo que partira. Sim, porque há momentos em que o silêncio fala mais alto.


Em 1985, no alvor das rádios locais, tive o privilégio de conhecer o Dr. Fernando Reis que então exercia o magistério na Escola D. José I em Vila Real de Santo António. Além dos cargos e funções que ocupava no Jornal do Algarve, também foi tocado pelo bichinho da rádio e conjuntamente com a sua esposa Drª. Luísa Travassos, entre outros, lançou o projecto da Rádio Guadiana.


Por essa mesma altura, despertou em mim o gosto e a paixão pela rádio e o sonho de vir a ser o monstro do jornalismo radiofónico Francisco Sena Santos. Respondi prontamente ao repto lançado pela Rádio Guadiana, no Jornal do Algarve, que procurava novos colaboradores.


Pela mão do jornalista Fernando Reis, que já então denotava espírito de liderança, fui durante alguns meses um mediano colaborador dessa rádio local de V.R.S.A. Tratou-se de um tempo de aprendizagem muito útil, do qual guardo sobretudo a disponibilidade e a generosidade que tinha para ensinar os mais novos que, como eu, estavam a dar os primeiros passos no mundo da rádio. Com ele aprendi os rudimentos do jornalismo e a importância dos órgãos de comunicação na missão de informar.


Anos mais tarde, por razões profissionais, cruzei-me com o Dr. Fernando Reis e mantivemos uma relação amistosa e cordata de 17 anos, em que pude testemunhar o profissionalismo e a competência como vivia e sentia o jornal. Nunca esquecerei os conselhos avisados que me transmitiu no que respeita à relação dos média com o Poder Local e os seus actores políticos, matéria que conhecia como poucos no jornalismo algarvio. Com inteligência e ponderação, ajudou-me por vezes a refrear a minha rebeldia e irreverência na defesa intransigente do concelho de Castro Marim, junto dos órgãos de comunicação social.

O observando uma foto do trabalho na sua salina, em exposição na Casa do Sal


Neste meu testemunho acerca do Dr. Fernando Reis gostaria igualmente de realçar o seu dinamismo empresarial quando abraçou o projecto desafiante da revitalização da actividade salineira em Castro Marim. Tudo começou nos primeiros anos do novo milénio, com um convite do advogado José Estevens, então presidente da Câmara Municipal de Castro Marim, para integrar uma visita a Guérande. Esta cidade francesa da região de Loire-Atlantique está geminada com o concelho de Castro Marim e tem como base económica a produção de sal. Percebendo que com o empreendedorismo que o caracterizava, o director do J.A. poderia relançar a extracção e comercialização do “ouro branco” de Castro Marim, o desafio estava lançado. Algum tempo depois, Fernando Reis estava a produzir e a comercializar o sal de Castro Marim, inicialmente, através da Tradisal (Associação dos Produtores de Sal Marinho Tradicional do Sotavento Algarvio), da qual foi presidente, tendo criado a sua própria empresa, Pedaços de Mar, que hoje é já uma referência na produção da Flor de Sal.


Com uma carreira notável de mais de 40 anos ao serviço da informação, que o jornalismo algarvio consagra, Fernando Reis, um regionalista convicto soube prosseguir com perseverança e tenacidade a marca indelével da imprensa regional, criada há mais de meio século pelo grande jornalista José Barão, que é o Jornal do Algarve. Esta publicação é esteio de grandes causas da região algarvia de que são exemplo o aparecimento do turismo no Algarve, a construção do aeroporto de Faro, a regionalização, a criação da Universidade do Algarve e a construção da Ponte Internacional sobre o rio Guadiana.


Em 1983, apoiado inicialmente pelo experiente jornalista José Manuel Pereira, que à data dirigia o jornal, o distinto vilarrealense Fernando Reis, que nos primeiros anos de liderança do J.A. alternou a direcção com José Lança, lançou com abnegação e denodo um punhado de jornalistas, muitos deles jovens, entre os quais destaco o saudoso Domingos Viegas. Procedeu a uma revolução tranquila no jornal que teve por finalidade o seu apetrechamento e modernização para enfrentar os novos desafios do século XXI e da era digital, que veio transformar os órgãos de comunicação social.

Os funcionários da Pedaços de Mar, Flávio e Maria, com Fernando Reis, celebrando o aniversário do colaborador e amigo António José, acompanhado da sua esposa e Marta Reis


Todavia, os últimos anos foram tempos particularmente difíceis para os jornais, nomeadamente para a imprensa regional, com a redução substancial do porte-pago, a perda de publicidade e a diminuição do número de leitores, dificuldades às quais o Jornal do Algarve não foi alheio. Em 2018 deu-se o desaparecimento trágico do jornalista Domingos Viegas, depois seguiram-se os apelos de alerta da direcção do jornal a pedir ajuda aos assinantes e anunciantes para manter o jornal vivo. Manda a verdade que se diga que tal desiderato foi atingido devido à força indomável de Fernando Reis e à determinação de Luísa Travassos, aplicando a máxima: atrás de um grande homem está sempre uma grande mulher.


Sendo sensível aos elogios laudatórios que neste momento fatídico foram expressos pelos vários quadrantes políticos, por dirigentes regionais e presidentes de câmara à inteireza de carácter e às excepcionais qualidades do Dr. Fernando Reis, as quais subscrevo, e ao papel central do Jornal do Algarve no desenvolvimento da região, ainda assim não posso deixar de lamentar que alguns deles não tenham sido tão pro-activos no apoio e na ajuda em momentos de grande dificuldade vividos por este semanário sediado nas brisas do Guadiana.


Com a morte de Fernando Reis, o Algarve e o jornalismo regionalista estão mais pobres. Recordarei para sempre a sua conduta moral irrepreensível, o seu carácter de rectidão e os valores que perfilhava como a liberdade, a igualdade e a fraternidade, na defesa intransigente dos superiores interesses do Algarve e no combate justo por uma imprensa regional livre, isenta de amarras e constrangimentos.


Perdemos um dos bons.


Até sempre, Fernando Reis!

Vítor Madeira
[email protected]

O autor do texto escreve de acordo com a ortografia antiga.

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