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As culturas tradicionais de sequeiro estão a ser substituídas por novas culturas tropicais, nomeadamente o abacate, embora estas novas culturas ainda ocupem áreas de produção muito inferiores às das quatro principais produções tradicionais de sequeiro: alfarrobeira, oliveira, figueira e amendoeira. Mas o panorama está a mudar rapidamente! Almargem pondera queixa na UNESCO

De acordo com dados esta semana recolhidos pelo Jornal do Algarve (JA), a principal cultura tropical que “invadiu” o Algarve foi o abacateiro, que só nos últimos 11 anos, de 2007 para 2018, cresceu em área de produção de 256 para 1133 hectares.
Ainda assim, segundo números facultados pela Direção Regional da Agricultura e Pescas da região (DRAP/Algarve), a área da alfarrobeira persiste em se manter estável nos últimos 20 anos, tendo passado de quase 13899 hectares em 1999 para 13500 hectares em 2018.


Já a figueira e a amendoeira tiveram quebras significativas na área de produção nos últimos anos, com a amendoeira a cair mais de metade (de 16500 em 1992 para 7423 no ano passado) e a figueira a cair de 4179 para 2621 hectares de 1986 para cá.
Ainda assim, a maioria das espécies de sequeiro passaram a ser hidratadas por sistemas de rega, em detrimento do sequeiro, devido à falta de chuva dos últimos anos e à fraca rentabilidade económica a que conduz uma produção à base de sequeiro.

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Mesmo vivendo do regadio, as culturas tradicionais não dão o sustento que deram em épocas passadas: “As pessoas hoje não conseguem subsistir com aquele tipo de modelo de exploração. Podemos ter um modelo desses nas propriedades que fazem turismo rural, só para mostrar como era a agricultura no passado, mas os proprietários não vivem disso, vivem do turismo rural”, disse esta semana ao JA o diretor adjunto da DRAP/Algarve, Mário Dias.
Uma ideia sufragada por Rosa Dias, que aos 37 anos dirige a unidade de turismo rural Quinta da Fornalha, em Castro Marim, e se mostra uma das principais lutadoras pela preservação do sequeiro na região.
Ainda assim, a psicóloga que abraçou o turismo e a agricultura reconhece que, por muito interessantes que as culturas tradicionais sejam do ponto de vista ambiental, “não dá para viver desse tipo de agricultura, porque ou há um valor turístico associado ou teria que haver muito apoio, máquinas para apanha da alfarroba, por exemplo”.

Agricultor é que escolhe o que quer produzir – DRAP/Algarve
Um apoio que não se revelaria suficiente, pois seria “tapar o sol com a peneira”, de acordo com todos os especialistas que JA contatou esta semana. A DRAP/Algarve reconhece que “a evolução do mercado, a globalização, e a premência (cada vez mais indelével) de fenómenos como as alterações climáticas” têm forçado o abandono do sequeiro.

Mas observa também que a decisão da implementação de um determinado tipo de culturas/regime de produção não compete ao Estado e que passa fundamentalmente pelos agricultores, que têm que equacionar uma série de questões, entre as quais, a viabilidade cultural e económica e a sustentabilidade ambiental, na hora da tomada de decisão sobre os seus investimentos.
“Na prática estamos a falar de opções de gestão por parte dos produtores agrícolas, que tal como quaisquer outros empresários, procuram as culturas que, em cada momento, lhes proporcionem uma maior rentabilidade económica, como é evidente devendo sempre ser compaginada com a sustentabilidade ambiental, mormente em termos de conservação dos recursos naturais como o solo e a água”, aduz a DRAP em resposta a um conjunto de questões colocadas pelo JA.

Uma realidade a que a volatilidade do mercado ajuda: “Um quilo de alfarroba hoje vale 4 euros e amanhã vale 10. Nesse aspeto culturas como o abacateiro dão muito mais estabilidade ao produtor, que não se pode sujeitar a estas variações brutais”, invoca Rosa Dias.
“As culturas de sequeiro são importantes do ponto de vista ambiental, porque consomem pouca água, mas do ponto de vista produtivo dão muito pouco rendimento. Não dão um rendimento por hectare que consiga viabilizar uma produção”, reforça Amílcar Duarte, especialista da Universidade do Algarve em Agronomia e Hortofruticultura.
O definhamento da produção de sequeiro não é de agora. Ela é secular, embora tenha tido a sua origem simbólica na crise norte-americana de 1929, quando os EUA pararam de importar figo seco. “Um produtor algarvio foi para os EUA nessa altura com um carregamento enorme de figo seco e não o conseguiu vender, as pessoas não tinham dinheiro para comprar. Acabou por se suicidar”, conta Rosa Dias.

Novas tecnologias estão a poupar na água de rega
A escassez de água da região é apontada pelos críticos como um dos principais obstáculos às novas culturas, que gastarão muita água comparativamente ao sequeiro tradicional. Rosa Dias chega mesmo a dizer que “daqui a meia dúzia de anos pode faltar água nas torneiras do Algarve se nada se fizer, pois não haverá água nas barragens para consumo urbano”.
“Um abacateiro gasta 10 vezes mais água do que uma amendoeira de sequeiro”, exemplifica a proprietária da Quinta da Fornalha, garantindo que um abacateiro em tempo de estio (primavera/verão) pode necessitar de uma rega diária de 80 litros. “Multiplique-se isso pelas centenas de árvores de um hectare e as centenas de hectares”.
De acordo com o especialista Rui Fernandes, que assessorou a produção de cerca de 80 por cento das 5148 toneladas de abacate produzidas em 2018, cada hectare tem exatamente 417 árvores daquele fruto.

Assim, de acordo com contas simples feitas pelo JA, em todo o Algarve estaríamos a falar de 37 796 880 de litros diários de consumo num dia seco. Quase 40 milhões de litros num só dia.
Mas os números, dizem várias entidades contatadas pelo JA, são enganosos e podem induzir em erro. Amílcar Duarte observa: “Isso não é um consumo médio, é um consumo de picos. Num daqueles dias terríveis de calor no pico do verão uma árvore dessas pode até consumir 100 litros, mas esses valores são muito raros”.

Para o professor da Universidade do Algarve trata-se de uma falsa questão, pois es-tamos a falar de árvores adultas (nem todas o são) e a partir do princípio de que a rega é feita “às cegas”, isto é, independentemente da quantidade de chuva que cai num determinado dia, ou dos níveis de humidade do solo adjacente à árvore, o que também não se verifica.
“Ao contrário de países aqui bem perto de nós, como a Espanha e Itália, a rega desse tipo de pomares, bem como dos citrinos, não é feita por gravidade. É feita de acordo com as necessidades do momento, depois de medir os níveis de humidade no solo”, enfatiza Amílcar Duarte, sublinhando que esse sistema de rega tecnologicamente avançado permite que a água de rega “seja só a suficiente para que as árvores estejam hidratadas”.

Um sistema tecnológico disseminado também pelos citrinos. Amílcar Duarte garante só conhecer dois pomares em toda a região com rega por gravidade, todos os outros aderiram a essa nova tecno-logia de precisão, a fertirrega.
Partilhando ideias com o professor universitário sobre os benefícios da nova tec-nologia, o diretor adjunto da DRAP/Algarve compara o gasto de água do abacateiro com fertirrega com os citrinos regados com o sistema tradicional: “Consome mais água um pomar de citrinos tradicional regado por um sistema de rega precário do que um pomar de abacateiros com a rega localizada e sondas de telemetria para aferição dos níveis de humidade no solo na zona de influência radicular, que só dá sinal ao computador para libertar água quando necessita”.

Plantação de abacates no concelho de Castro Marim / foto: Agostinho Gomes

O futuro: regar abacates com água filtrada das ETAR
Rejeitando a “diabolização” do abacate, o responsável regional da Agricultura e Pescas observa que a área associada ao abacate, mesmo depois do crescimento exponencial dos últimos anos, é quase 14 vezes inferior à área de produção de citrinos, sublinhando que “não é o abacate” que está a exercer a maior pressão sobre os aquíferos e o sistema de rega da região. São sobretudo os citrinos.
No entanto, segundo a DRAP, ainda há capacidade de crescimento da rega. O mesmo responsável regional exemplifica que, no caso do Leste algarvio, o perímetro de rega do Sotavento foi criado para regar 9000 hectares (de várias culturas) e ainda não atingiu sequer metade dessa capacidade.

De resto, estuda-se já uma nova forma de ultrapassar a pressão exercida sobre as barragens da região: de acordo com Rui Fernandes, está em desenvolvimento um projeto-piloto científico da empresa Águas do Algarve e da Universidade do Algarve para regar uma pequena área de abacateiro, na zona de Sobral de Baixo, em plena Reserva Natural de Castro Marim, com as águas já filtradas da ETAR de Vila Real de Santo António.
“Se o plano resultar, vamos alargar as áreas e as águas das ETAR podem ser uma das grandes soluções para o futuro”, adianta o especialista em abacateiros, recordando que se trata de água filtrada de todas as impurezas e praticamente potável.

Escolher entre o pomar e a piscina do hotel
Desmistificando a questão do consumo de água, Amílcar Duarte recorda que hoje a oliveira, a amendoeira e a figueira também são de regadio. “Um abacateiro consome mais água do que uma figueira, mas ambas têm que ter sistema de rega instalado”, diz, observando que a diferença de consumo de água entre uma árvore citrícola e um abacateiro não é substancial.
“Podemos ter um modelo de desenvolvimento em que acabamos com a agricultura porque consome água, mas o Turismo também consome”, compara, questionando: “O que é mais importante, um laranjal ou a piscina de um hotel? ”.

Em resposta aos receios de Rosa Dias, metaforizando com a ponta de um lençol “que tapa de um lado e destapa do outro”, aponta que se trata de uma questão de perspectiva: “Podemos dizer que vai faltar nas torneiras ou ao contrário, que vai faltar na agricultura”.
Amílcar Duarte acrescenta que “podemos ter preocupações ambientais com os pesticidas, mas querer fazer agricultura sem rega é que não se pode”.
De resto, todas as fontes contatadas esta semana pelo JA são unânimes acerca dos benefícios da cultura do abacate em relação aos citrinos – que, recorde-se, ocupam uma área 14 vezes maior – graças à dispensa de pesticidas.
“Ao contrário da laranja, tangerina e outros cítricos, que são espécies que têm muitas pragas inimigas, o abacate não leva glifosatos. O abacate já é um produto praticamente biológico”, adianta Rui Fernandes, da Proposta Redonda, para quem o futuro do abacate será a produção totalmente biológica daquele fruto subtropical.

Talvez isso ocorra daqui a cinco anos, quando o abacate atingir o máximo da sua área de expansão, os 2000 hectares em toda a região (devido à gestão de terrenos com as caraterísticas ideais), sustenta o também assessor da cooperativa espanhola TROPS, que fez vastos investimentos na zona do sotavento algarvio durante os últimos anos.
De resto, a produção daquele que é, de longe, o principal produto tropical algarvio (1133 hectares contra 278 da framboesa e apenas 18 da manga) está dividida de forma praticamente igual entre barlavento e sotavento, com os concelhos de Silves, Tavira, Faro, Olhão e Lagos a predominarem em matéria de distribuição geográfica, de acordo com dados da DRAP.

Espanhóis centralizam distribuição europeia de abacate em Tavira
A maior preocupação para implantar abacateiros é em relação ao mar, pois “deve haver uma faixa de cinco a dez quilómetros de distância em relação à linha de costa e as plantações devem estar abaixo da Via do Infante, devido à tipologia dos terrenos”, observa Rui Fernandes.
Toda a produção atual é escoada para o estrangeiro, sobretudo para o Norte da Europa, onde o fruto é muito apreciado e consumido enquanto alimento, em saladas e pratos salgados, e não como sobremesa, como em grande parte ocorre em Portugal, esclarece Rui Fernandes.

Segundo o mesmo responsável, dentro de poucos meses toda a produção começará a ser escoada através de um centro distribuidor, gerido pela TROPS, que está em fase de montagem no Parque Empresarial de Tavira e que deverá centralizar para exportação cerca de 80% da produção algarvia. “Para já teremos uma capacidade de 3 a 4 toneladas e poderá chegar às 10 a 20 mil”, quantifica Rui Fernandes. No parque, quatro lotes já foram comprados pela TROPS.
Esse crescimento, que a DRAP prefere não chamar de “exponencial”, apresenta valores muito significativos nos últimos anos, mas durante muitos anos apresentou alguma estabilidade: em 2000 havia 171 hectares e em oito anos o crescimento foi de apenas 75 hectares (256 hectares em 2007). Hoje, 12 anos depois, a área quintuplicou.
O maior crescimento foi de há cinco anos para cá, com a área plantada a mais do que duplicar anualmente, observa a DRAP, cujo diretor adjunto recorda que os primeiros testes para abacateiros no Algarve decorreram ainda nos anos 80, na estação agrícola regional do Patacão, em Faro.

Laranja resiste ao peso reforçado do abacate
De então para cá o consumo multiplicou-se, o fruto ganhou prestígio e valor e o Algarve é um dos principais produtores europeus. De acordo com as várias fontes contatadas pelo JA jamais atingirá a produção de citrinos: o pomar citrícola regional representa em termos de área cerca de 76,4% da área citrícola continental e em termos de produção 85,4%.
Continua a ser a principal cultura da região, ocupando em 2018 uma área de 15 746 hectares, que originou uma produção estimada de 339 750 toneladas.

No grupo dos citrinos, a laranja é a mais representativa, ocupando em 2018 uma área de 13 256 hectares e uma produção de 292 181 toneladas. Em temos de área, representa respetivamente 77,3% da área do laranjal e 85,9% da produção de laranja, do Continente português.
Mesmo com grandes variações ascendentes e descendentes nas últimas décadas, os citrinos são, pois, os campeões, em área e produção, da agricultura algarvia. Mas o campeão do crescimento acelerado é sem dúvida o abacate.

Almargem pondera queixa na UNESCO

Luís Brás

A associação ambientalista algarvia Almargem pondera apresentar uma queixa junto do Comité do Património Mundial da UNESCO devido às políticas agrícolas que estão a levar ao abandono da agricultura de sequeiro e à descaraterização paisagística da região.
“Está-se a colocar em causa um dos elementos que levou a que a região fosse classificada como património cultural da humanidade da Dieta Mediterrânica”, justificou ao JA o dirigente ambientalista Luís Brás.

Lamentando que se esteja a “hipotecar o maior ativo da região, a sua paisagem única e irrepetível”, Luís Brás considera que o que está em causa “não é apenas um mero ‘upgrade’ da fruticultura como querem fazer passar alguns responsáveis, é a perda de uma parte da identidade da região”.
Os ambientalistas lamentam que as autoridades estejam “a fazer pouco” para inverter a situação: “Bem pelo contrário, tudo têm feito para desvalorizá-la.

A Almargem entende a manutenção que a paisagem não pode ficar dependente das tendências do mercado e que argumentar que há lugar para tudo não chega, sobretudo quando “o que está em causa é a adulteração de uma paisagem identitária, muitas vezes ao arrepio dos instrumentos de gestão territorial”.
“É o que acontece na área do Parque Natural da Ria Formosa, que para mais é vítima do regime de exceção dos Perímetros de Rega e Aproveitamentos Hidroagrícolas”, exemplifica.
A Almargem entende que o Estado-Português “não se pode demitir das responsabilidades na defesa e no apoio à manutenção do pomar tradicional”.

Neste sentido, reforça o apelo que “já por mais de uma vez dirigiu às entidades com competência sobre todo este território, nomeadamente a Direção Regional de Agricultura, o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, e os responsáveis autárquicos locais”.
“Assumam uma atitude mais ativa e crítica no que respeita ao incremento dos projetos de produção agrícola não tradicional, em detrimento de áreas com vegetação natural, pomares de sequeiro e outros terrenos de cultivos tradicionais, que devem ser preservados, sob pena dele desaparecer para sempre”.

Luís Brás considera “uma ironia” que “enquanto por cá se promove o arranque das espécies de sequeiro, noutras regiões aposta-se nestas espécies, deixando claro que o futuro poderia bem ser outro”.
Esse futuro passa pela sua exploração “não em regime de regadio convencional, por razões de competitividade”, mas num sequeiro apoiado, isto é, regado nos primeiros anos de instalação, como, alega, “se faz em alguns pomares mais recentes”.
“Com a construção dos sistemas das grandes barragens – e a instalação dos chamados perímetros de rega – houve um ‘boom’ do regadio, o qual permitiu a saída da sua área habitual, expandindo-se para terrenos outrora desinteressantes, nomeadamente no Barrocal, mas também no Litoral, ocupando áreas até então destinadas ao sequeiro”, constata Luís Brás.
O resultado, observa, “foi muitas vezes a invasão de áreas com interesse paisa-gístico e natural, maioritariamente ocupado pelo pomar tradicional de sequeiro, promovendo a substituição pura e simples de todo um património cultural que lhe está associado”.

João Prudêncio

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