Algarve rendido ao “ovo” de Carmona

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A proposta de Carmona Rodrigues para acabar de vez com a seca no Algarve é considerada um “ovo de Colombo”, por ser surpreendentemente simples face às outras propostas. Tal como com o mítico ovo quatrocentista, apetece perguntar: “porque é que ainda ninguém tinha pensado nisto?”. A verdade é que a solução seduziu boa parte dos dirigentes regionais e apresenta se como uma das mais exequíveis para o endémico problema da seca

A proposta apresentada há meia-dúzia de meses por Carmona Rodrigues, que visa aproveitar para consumo uma pequena percentagem de não mais de 10 por cento do intenso caudal de 30 a 40 mil litros por segundo que corre a caminho da foz do Guadiana, dispensa barragens, é muito mais barata e é mais rápida do que quaisquer outras das soluções que estão em cima da mesa: a construção da barragem da Foupana, duas soluções no Rio Mira (para resolver o problema do Barlavento, menos grave), a dessalinização da água do mar e o aproveitamento das águas das ETAR.


A preleção do ex-ministro de Durão Barroso e ex-presidente da Câmara de Lisboa, especialista em engenharia hidráulica, feita numa aparentemente anódina sessão de uma associação cívica algarvia – a Algfuturo – a 22 de janeiro calou fundo em quem assistiu e também em vários outros que dela vieram a ter conhecimento, de tal forma que entrou de vez na agenda (ver caixa) de decisores e interessados.


O próprio Carmona Rodrigues reconhece que ela não é nova: “Esta solução ficou esquecida, porque estava prevista nos anos 60 pela empresa Hidroprojeto, mas depois não só não andou para a frente como houve uma altura em que se desacreditou que um dia ia haver Alqueva, barragem que era fundamental para este projeto. Surgiram as pressões para reforçar o abastecimento de água no Algarve e foram feitas as barragens de Beliche e Odeleite. Todas as soluções que desde os anos 80 eram feitas para o Algarve era no pressuposto de que não se sabia se um dia haveria Alqueva e a proposta do Guadiana foi-se perdendo”, disse esta semana Carmona Rodrigues ao JA.

Carmona Rodrigues

Um projeto que é filho do Alqueva


Mas a construção do Alqueva mudou tudo e voltou a colocar a hipótese Guadiana em cima da mesa, como exequível, enfatiza Carmona Rodrigues, que explica porquê: “O Alqueva veio regularizar os caudais do Guadiana. O que significa que variam menos. Uma bacia não regularizada tem grandes caudais no inverno e no verão tem caudais quase zero. Quando se constrói uma barragem como o Alqueva fica-se com estiagens com um caudal muito maior e cheias com um caudal muito menor. A amplitude dos caudais entre os mínimos e os máximos é muito mais pequena. O regime hidrológico é muito mais domesticado. O Alqueva enche no verão e esvazia no inverno, mas o caudal que passa para baixo [rumo à foz] é aquele que em vez de ser determinado pela chuva é determinado pela abertura das comportas”.


Graças ao Alqueva, e à tal regularização que permitiu, longe vão os tempos em que havia troços do Guadiana completamente a seco, como aconteceu na seca prolongada de 1992/95. Período durante o qual vários movimentos protestaram contra o bloqueio das águas do grande rio ibérico por parte de Espanha. Protestos que levariam à revisão do convénio luso-espanhol dos rios, que só se veio a verificar em novembro de 1998 (convenção de Albufeira), no qual o próprio Carmona Rodrigues esteve envolvido, como especialista da matéria, pela parte portuguesa. “A causa foi esse período muito extenso de seca no Guadiana. E também foi isso que esteve na origem da retoma do projeto do Alqueva. Há males que vêm por bem”, conclui Carmona Rodrigues.


O projeto agora retomado pelo especialista em hidráulica é portanto filho direto da regularização do grande rio ibérico de 829 km – com apenas 20% da extensa bacia hidrográfica de 67.700km quadrados em território português -, permitida pela barragem alentejana. E é essa “domesticação” fluvial que permite que passem para jusante os mínimos de 2.000 litros por segundo previstos na Convenção de Albufeira. “ O que acontece na realidade é que passa 15 a 20 vezes mais do que isso, 30 a 40 mil litros, em média”, explica o ex-ministro das Obras Públicas de Durão Barroso.

Tirar água mas deixar muita mais a correr para a foz

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O Guadiana chega a território português próximo de Badajoz e por ali serve de fronteira entre os dois países durante algumas dezenas de quilómetros. Depois entra em território nacional, já próximo de Mourão forma a barragem do Alqueva e só no Pomarão – no extremo sul do Alentejo, a sul de Mértola – volta a servir de fronteira entre os dois países, estatuto que manterá até à foz, em Vila Real de Santo António.


É precisamente no Pomarão que Carmona Rodrigues prevê a captação que poderá livrar o Algarve de apuros, como aqueles, de seca extrema, que ocorrem presentemente. Tratar-se-á de uma captação direta, com instalação de bombagem, na margem portuguesa do Guadiana, no Pomarão (não poderá ser mais abaixo porque a água a jusante do Pomarão já apresenta alguma salinidade), com um tubo de 35 quilómetros de extensão de 1 metro a 1,20 metros de diâmetro, que ligará à albufeira de Beliche. “A albufeira tem capacidade para isso. O conjunto de Odeleite e Beliche tem estado a 40%, tem muita capacidade de encher”, enfatiza Carmona Rodrigues, ressalvando sempre que, caso haja caudal a mais, a bombagem pode diminuir drasticamente a captação ou mesmo pará-la: “A vantagem de ser uma captação direta é que podemos bombear o que queremos. Consoante as necessidades”.


A captação poderia providenciar entre zero e 60 milhões de metros cúbicos por ano, o que corresponde a 3 a 4 mil litros por segundo. Muito longe dos tais máximos de 40 mil litros de caudal médio que atualmente correm no rio, a caminho da foz. Diferencial que “é importante que exista, porque temos que deixar passar água para jusante. Os registos que há de medição de caudal mostram que esse valor é o médio de estiagem que se mede no Pulo do Lobo, já depois do Alqueva. Convém que esse valor seja maior porque não podemos estar a tirar no Pomarão, na Boca do Chança, todo o caudal que vem de cima. Continua a sobrar muita água”, explicita Carmona Rodrigues.

Espanhóis já fazem bombagem há mais de 20 anos


E sobra muita, mesmo contando com aquela que os espanhóis já tiram, como enfatiza o ex-autarca de Lisboa: “O Alqueva larga muita água para baixo e os espanhóis captam-na. Sem licença nossa. No Pomarão, no Chança [a partir do Pomarão o afluente Chança serve de fronteira entre os dois países]. Os espanhóis têm uma barragem no Chança, a 500 metros da confluência. E a jusante da barragem, mesmo na fronteira com Portugal, têm uma captação de água, tiram ali água há mais de 20 anos sem autorização portuguesa”.


Segundo a convenção de Albufeira de 1998, as partes entendem desenvolver estudos, um deles sobre o uso sustentável da água no baixo Guadiana. De novo Carmona Rodrigues: “O que está aqui nas entrelinhas é regularizar o usufruto da água entre Portugal e Espanha. Até agora só os espanhóis é que estão a usar e nós estamos a chupar no dedo”.

“Os problemas são para se resolver, não para adiar. Já temos um largo histórico de problemas que foram resolvidos com os espanhóis, vamos resolver isto também! Eles andam a captar a água , nós temos direito a captar água também, porque aquilo é um troço internacional!”, desafia o ex-autarca.


Recorda a propósito que há uma comissão bilateral e que todos os anos há uma cimeira ibérica: “Da parte de Portugal deve-se reconhecer como legal a captação de água que os espanhóis já fazem, mas eles também devem reconhecer o nosso direito de captar a mesma quantidade de água do nosso lado. Os espanhóis fazem captação ilegal há 20 e picos anos, já depois de o Alqueva entrar em funcionamento. Eles não são parvos. Eles usufruíram logo da nossa barragem e nós a dormir! Eles não estão lá a tirar água há 30 e tal anos, porque nessa altura não havia água, porque não havia Alqueva. Mal perceberam que havia Alqueva, foram logo buscar a água!”.

Solução garantiria metade do consumo humano


Como vantagem desta solução, Carmona aduz o facto de não ser preciso construir uma barragem – como a Foupana – com todos os problemas que isso implicaria: “É muito mais barato. A barragem tem problemas ambientais, financeiros, mas também de alteração do próprio regime do rio. O rio continuará igual, navegável, não se vai prejudicar nenhuma das utilizações que existem já hoje, do Pomarão até VRSA. Não conflitua com nenhuma outra utilização do rio”.


A solução da Foupana – a implementar a poucos quilómetros do atual conjunto algarvio das albufeiras Odeleite/Beliche -, ganhou força no tempo em que não se sabia se haveria Alqueva, historia o especialista.


Com um prazo de projeto e construção máximo de um ano, contra três anos de uma barragem como a Foupana (há quem fale em cinco, se se incluir projetos e prazos de concursos), o projeto Carmona Rodrigues tem um custo que o próprio calcula em cerca de 1/3 do custo da albufeira, em torno dos 30 milhões de euros. “É muito mais rápido do que a Foupana. Na barragem perde-se muito tempo nas fundações. Este projeto é muito mais simples, é fazer uma estação elevatória e estender tubo. Isto faz-se num ano, a brincar. A barragem são três anos. A Foupana garante o caudal médio da ribeira da Foupana, que não se compara ao Guadiana. Também recolhe água da chuva, mas eu posso ter um cofre muito grande no banco mas se só lá ponho 10 tostões por mês nunca mais encho o cofre”, metaforiza.


Os máximos de 40 a 60 milhões de metros cúbicos anuais garantidos por esta solução representam parte substancial dos 73 milhões destinados a consumo humano no Algarve, uma parte dos quais com origem subterrânea. Um colosso. Em toda a região, 60% das captações subterrâneas e águas superficiais destina-se à agricultura.


O conjunto Odeleite/Beliche, para onde drenaria a captação do Guadiana, tem uma capacidade útil de 157 milhões de metros cúbicos e destina-se ao consumo humano e à agricultura.

João Prudêncio

O que eles acham do “ovo” de Carmona

António Pina, presidente da AMAL

A proposta faz parte do grupo da APA, tal como os açudes da ribeira da Foupana e a dessalinização. O professor Carmona Rodrigues está a colaborar com a APA para pormenorizar essa questão. Parece-nos exequível no contexto dos acordos ibéricos sobre o acesso à água. Seria uma solução que garantiria o acesso permanente à água. Não sei se é mais barata ou não, o estudo é que vai dizer.


Todos vemos com bons olhos. É a solução que garante uma quantidade de água com uma garantia de caudal constante, sem ficar muito dependente das chuvas na região. Chove no Guadiana em outras artes das Península Ibérica. Dá à partida essa garantia desse caudal permanente.


É preciso que chova numa região em que a chuva é muito inconstante. E uma solução destas garante à partida uma maior constância do acesso à água. Agora o que eu acho é que as coisas se devem complementar umas às outras, essas solução mais outras, devíamos aproveitar essa pouca água que chove.

Joaquim Peres, presidente da Águas do Algarve

O projeto parece bastante interessante. O Guadiana tem uma grande disponibilidade de água neste momento, dado que o Alqueva está obrigado a descarregar dois metros cúbicos por segundo para esse rio.


A Águas do Algarve contribuíram para o plano de eficiência hídrica, com um apontar de seis soluções. Agora há necessidade de fazer um estudo sobre essas soluções, uma análise e uma hierarquia de possibilidades de intervenção. Temos que nos preocupar com as soluções para Barlavento e Sotavento. No Barlavento: a barragem de Santa Clara, no Mira, tem um volume considerável de água, abastece por gravidade e a que não é utilizada é desperdiçada. Poderia pensar-se em fazer-se um aproveitamento dessa água. Outra hipótese, também para a zona do Barlavento, é ligar o volume morto da barragem de Santa Clara até Odelouca. A barragem da Foupana é outra solução, além da dessalinização e do aproveitamento das águas das ETAR
Por vezes a gente tem roupa guardada no roupeiro que já não veste há muito tempo e se der uma volta por lá é capaz de encontrar coisas bastante interessantes. É isso que acontece com esta solução do engenheiro Carmona Rodrigues.

José Oliveira, presidente da Algar Orange (produtores de citrinos)

Sou defensor dessa solução. Acima de tudo porque é a alternativa mais viável. Menos onerosa, com uma realização mais curta no tempo e com uma solução boa para as circunstâncias que temos. Fazer uma barragem leva o tempo que leva, nunca leva menos de três anos. Se pensarmos no projeto, o seu registo, falar em três anos é ser muito otimista. Dentro desse ponto de vista, e considerando a pior situação a nível de falta de água, é a melhor solução e a mais rápida.


Tudo o que for o mais rápido e com os menores custos serão as melhores soluções. A utilização das águas das ETAR e a dessalinização são paliativos. A dessalinização aplica-se em situações pontuais na hotelaria. Para a agricultura é uma solução residual e dentro de um horizonte próximo não tem viabilidade, nem resolve coisa nenhuma.

Pedro Monteiro, diretor regional de Agricultura e Pescas do Algarve

Temos que ser mais eficientes na aplicação da água que temos, que ser mais racionais e evitar desperdício, mas também temos que ser mais eficazes no reforço do aprovisionamento. Vai ser necessário bombar água do Guadiana. Do ponto de vista da relação custo-benefício é o melhor projeto para o Algarve. Tem menos impactos ambientais, é mais barato do que fazer uma barragem e permite uma adução de água muito significativa à barragem de Odeleite.


É mais rápido de fazer do que a barragem da Foupana, é menos impactante do ponto de vista de EIA é mais pacífico e não é tão caro. Agora, a barragem da Foupana também é uma obra estruturante para o Algarve. O que há é medidas para o curto médio prazo e medidas para a longo prazo.


Isso vai ser o tema da década do Algarve, a água é o fator crítico. Se não tivesse chovido em março e abril teríamos um problema seríssimo e se voltamos a ter um outro ano igual a este não sei como será. Temos que nos dedicar seriamente a estas da questões da água.

José Vitorino, presidente da associação AlgFuturo

A 7 de março de 1981 fiz um discurso na AR, em que já estavam equacionadas as barragens e os dois subsistemas. Eu dizia que mesmo depois de concluídas todas as barragens os sistemas ficariam ligados por um canal e articulados com o Guadiana. Fui a primeira pessoa que meteu o Guadiana na equação.


Quando esta situação de seca se agravou, e esteve iminente não haver água para o ano (foi por uma unha negra) convidei autarcas, associações de regantes, fizemos um grande movimento , percorremos o Algarve todo.


Conheci o prof Carmona como presidente da Câmara de Lisboa e pensei “tenho aqui um craque e vou convidá-lo para uma conferência sobre isto, os recursos hídricos, acordos com Espanha (ele esteve na convenção de Albufeira)”.


Está em causa o custo e a demora na execução, o tempo. Uma barragem não leva menos de 5 anos. Houve alguma resistência, mas depois aos poucos chegou-se à conclusão de que era uma coisa de 35 quilómetros de tubagem, uma obra simples, era barata e tecnicamente não muito complexa.

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