Antiga vila de Arenilha teve mais importância do que se supunha

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O historiador vila-realense Fernando Pessanha investigou mais fontes e não tem dúvidas: a antiga vila, que desapareceu antes da fundação de Vila Real de Santo António, teve muito mais importância a nível estratégico e comercial do que aquilo que nos tem sido contado. É essa importância que explica os frequentes ataques da pirataria

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DOMINGOS VIEGAS

Afinal, Santo António de Arenilha, vila fundada em 1513 na foz do Guadiana e que desapareceu nas primeiras décadas do séc. XVII, antes da fundação de Vila Real de Santo António, teve mais importância no seu tempo do que aquela que lhe tem sido atribuída.

As novas revelações surgem em “Ataques da pirataria à foz do Guadiana e a acção de António Leite, alcaide-mor de Arenilha”, o mais recente trabalho do historiador vila-realense Fernando Pessanha, lançado como separata da última edição dos Anais do Município de Faro, cujo lançamento teve lugar no passado dia 22 de setembro, na capital algarvia.

Este trabalho foi desenvolvido na sequência de um convite endereçado ao autor pelo diretor científico dos Anais do Município de Faro, Joaquim Romero de Magalhães (catedrático jubilado da Universidade de Coimbra).

“Considerei que seria extremamente pertinente abordar um tema da nossa História que não foi, de todo, estudado em profundidade e que apresenta lacunas gravíssimas quanto à compreensão do que são os antecedentes da presença humana nas décadas que se seguiram à fundação da nossa sede de concelho. Na verdade, pouco se tem investigado sobre a antiga vila de Santo António de Arenilha, sendo que algumas teorias, entretanto desenvolvidas, não correspondem, exatamente, à realidade”, explica Fernando Pessanha, em declarações ao Jornal do Algarve.

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Durante as investigações que tem desenvolvido no exercício das suas funções, no Arquivo Histórico Municipal António Rosa Mendes, em Vila Real de Santo António, Fernando Pessanha tem vindo a deparar-se com várias fontes que permitem, agora, começar a clarificar qual a importância de Arenilha no designado circulo luso-hispano marroquino. De acordo com o historiador, os erros cometidos ao longo dos anos “têm a ver, principalmente, com a diminuta importância que tem sido atribuída do porto da antiga vila”, em contraste com o esforço destinado a enaltecer a nova vila pombalina fundada em 1776.

Segundo Pessanha, estas incorreções devem-se, principalmente, ao facto de os investigadores terem feito uma leitura positivista das fontes do século XVI, não problematizando os números apontados para a densidade demográfica da vila durante a centúria quinhentista. “Esta falta de problematização das fontes pode induzir-nos em erro, porque a importância que a vila tinha, na altura, não pode, de maneira alguma, ser determinada pelos censos demográficos estabelecidos para uma comunidade forçada a fixar-se na póvoa”, defende Fernando Pessanha.

“Se excluirmos a pesca, a economia de Arenilha é, essencialmente, o contrabando. Arenilha é um porto obrigatório de passagem por onde transitam todas as embarcações provenientes das praças lusas do Norte de África com destino a Castro Marim, Alcoutim, Mértola e outras terras do interior alentejano e onde são desenvolvidas práticas danosas para os cofres reais”, explica. É daqui que surge o problema da pirataria referido pelas fontes. Se a vila era sistemática e ininterruptamente atacada pelo corso e pela pirataria, é porque existia uma fonte de riqueza que atraia os assaltantes mouros.

As fontes identificadas por Fernando Pessanha indicam que a presença portuguesa no Norte de África, fundamentalmente em Arzila, cuja capitania estava entregue aos condes de Borba, fez com que à foz do Guadiana começasse a afluir riqueza, essencialmente, armas proibidas, mercadorias exóticas e, principalmente, escravos berberescos aprisionados nos ataques que as guarnições portuguesas lançavam no exterior das fortalezas. Para atestar o dinamismo do porto de Arenilha, Fernando Pessanha baseou a sua investigação em várias fontes, de onde se destacam os Anais de Arzila, de Bernardo Rodrigues. Este militar e escritor português do século XVI, curiosamente pouco considerado, é autor de “uma obra de valor excepcional” e que “nos ajuda a perceber a importância da vila de Arenilha”, assegura o historiador.

“Diz-nos Bernardo Rodrigues, por exemplo, que sempre que os capitães de Arzila regressavam ao reino, com destino aos seus domínios no Alentejo, não arriscavam em fazer a perigosa rota do Cabo de S. Vicente. Em vez disso, utilizavam a grande autoestrada que era o rio Guadiana”, conta Fernando Pessanha, acrescentando que as mercadorias que não eram vendidas no mercado negro, nomeadamente aos mercadores castelhanos, seguiam posteriormente em embarcações de menor calado para subir o Guadiana.

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Porém, a maior fonte de riqueza seria, indiscutivelmente, o tráfico de escravos, vendidos no mercado negro: “Há relativamente pouco tempo encontrei um documento da Chancelaria de D. João III que nos fala claramente de um escrivão da alfândega de Mazagão que despachou, ilegalmente, um carregamento de escravos e de outras mercadorias daquela praça para Arenilha, arrecadando para si os direitos que pertenciam à fazenda real…”, revela o historiador. E porquê vendê-los em Arenilha? Porque “as mercadorias ‘exóticas’ que não são vendidas aos castelhanos seguem rio acima, tendo como paragem final o porto de Mértola, de onde seguem para os senhorios ou para outras paragens”, explica.

É este dinamismo económico que, segundo Fernando Pessanha, vai fazer com que Arenilha seja consecutivamente atacada pela pirataria. “Se Arenilha fosse apenas uma simples vila de homiziados, a pirataria não teria qualquer tipo de interesse em a atacar”, reforça.

E é, precisamente, nesse sentido que o historiador avança para a segunda parte do seu trabalho, ou seja, a acção de António Leite, alcaide-mor de Arenilha, como defensor da vila.

“António Leite foi ali colocado por ser um antigo capitão das praças portuguesas do Norte de África. Estava habituado ao combate contra os mouros, nomeadamente, a defender Azamor, praça também situada na foz de um rio e nas proximidades do oceano, tal como Arenilha”, refere Fernando Pessanha. Esse motivo, a juntar ao facto de ser cavaleiro da Ordem de Cristo e de não ter estatuto social para ficar a capitanear a nova fortaleza de Mazagão, terá sido determinante para o rei o incumbir de defender a vila da foz do Guadiana.

“É através da sua acção que é construído, por exemplo, o ‘castelo’, ou seja, uma paliçada de madeira destinada a defender o casario e a população”, revela. Para Fernando Pessanha, todo este conjunto de factores é mais do que suficiente para problematizar aquilo que nos tem sido dado a entender sobre a importância de Arenilha.

“Talvez como intuito de enobrecer a fundação de Vila Real de Santo António, tentou-se roubar um pouco daquilo que foi a importância real daquela antiga póvoa. Mas a descoberta de novas fontes permite-nos perceber que, afinal, a vila teve mais impacto e dinamismo do que, inocentemente, nos foi dado a entender”, conclui o historiador.

Em novembro, Fernando Pessanha irá abordar o presente tema numa conferência a realizar na universidade de Sevilha, no âmbito de um congresso internacional sobre a Guerra e as Ordens Militares, e na 23.ª edição das Jornadas de História de Ayamonte. Para breve fica ainda a promessa de revelar informações inéditas quanto a um “ilustre desconhecido comendador de Arenilha” que, assegura, “irá revolucionar a nossa compreensão quanto à importância estratégica e simbólica da antiga vila” da foz do Guadiana.

(Reportagem publicada na edição semanal, em papel, do Jornal do Algarve de 11/10/2018)

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