Ao correr da pena: A moderna escravatura em Portugal

A escravatura é uma prática humana cuja origem se perde no tempo. As razões da escravização podiam ser dívidas ou crimes, então transmitidos de pais para filhos. Podia também ser a punição pelo professar outra religião que não a oficial, e nesse caso terminaria com a eventual conversão. Podia também ser o produto de fossados (surtidas que uma força armada fazia num território alheio) ou de razias (surtidas piratas a povoações ribeirinhas). Ou então resultado de uma guerra, em que se faziam cativos.

Grande parte das guerras da antiguidade tiveram como objectivos fundamentais o saque e a escravização dos povos vencidos. Tal ocorria quando era necessária força de trabalho, em particular para trabalhos que exigiam muita mão-de-obra como (sempre) o foram a agricultura e as grandes obras públicas. Nos tempos medievais, era necessário o trabalho agrícola de 4 em cada 5 pessoas para se conseguir prover às necessidades alimentares da população! Essa terá sido uma razão forte para terem existido os servos da gleba que, vinculados às parcelas de terreno que cultivavam, eram pouco mais que escravos. Quando se transaccionavam esses terrenos agrícolas, os servos da gleba estavam incluídos no negócio, como parte integrante dos campos que cultivavam!

A escravatura atingiu todas as áreas de actividade -artesania e indústria, comércio, educação, sexo, serviços, etc. A indústria, por razões de eficácia, foi das primeiras actividades a deixar a escravatura na era moderna, porque o trabalho com máquinas já não é um trabalho indiferenciado. Por arrastamento e também por motivos humanitários, sobretudo na Europa, as outras actividades também a foram abandonando. Recordemos que os países europeus que foram proibindo a escravatura, frequentemente excluíam dessa proibição as suas colónias pelo Mundo e o próprio tráfego e comércio de escravos entre colónias.

Desde muito cedo os povos ameríndios e depois os asiáticos foram excluídos dessa infame condição. No entanto, muito do que legalmente se proibia continuava a ter livre curso nesses territórios longe da vista. Muitos subterfúgios foram também sendo inventados para manter e justificar esses estados de sujeição forçada de uns seres humanos por outros, sendo que ainda há poucos decénios havia gente grada que louvasse a “acção civilizadora” dos portugueses em África e assim justificasse a violência sobre eles exercida e a evidente reduzida liberdade desses povos. Esses tempos foram, contudo, ultrapassados, e hoje estamos perante novos tipos de escravatura.

Os monopólios são a melhor forma de conservar vastas camadas de população em estados de semi-escravatura: se só se tem um único comprador do nosso labor, este é livre de impor o preço que paga. Isto é verdade quer se trate de um produto, quer do próprio trabalho, e piora se essa mesma entidade for também a fornecedora do alojamento e da alimentação. Aí, o domínio é completo.

É por isso que entendo que a luta de qualquer povo ou grupo social por melhores condições de trabalho e de vida, diz respeito a todos os povos do Mundo. Além de razões humanitárias, se o preço e as condições de trabalho de uma determinada actividade industrial (na China, por exemplo), são diminutos relativamente aos que são obrigatórios na Europa, por exemplo, é evidente que os donos dessas actividades se “deslocalizam” (lembram-se da expressão?) para lá em busca de maiores margens de lucro. E assim se vão minando as condições laborais e o tecido social de um país, sem melhorar substancialmente as condições de vida no outro.

É por isso que lutar por melhores condições de vida nesse país estrangeiro é também lutar para que as condições de vida no nosso próprio país não se degradem. É também por isso que nunca entendi porque nunca ouvi (que se desse por isso) os sindicatos e as centrais sindicais nacionais e europeias protestarem pelas condições de trabalho nesses países. Isto, para além de tal constituir desde há muito tempo, um salutar internacionalismo (“Proletários de todos os países, uni-vos!”, escreviam Karl Marx e Friedrich Engels, em 1848). É também por isso que me surpreende a falta de tomadas fortes de posição dos nossos sindicatos (qualquer que seja a central sindical) relativamente aos trabalhadores estrangeiro violentamente explorados no nosso país, e que por cá vivem em condições sub-humanas. Esta deveria ser uma matéria em que os sindicatos deveriam ter voz grossa e constante porque, se alguém tem de saber e de se preocupar com tais situações, são precisamente quem defende os trabalhadores!

É no mínimo estranho que não se vejam e ouçam tomadas de posição fortes de denuncia de situações como as que agora estão a ser conhecidas. Se não por razões humanitárias, ao menos por razões egoístas uma vez que, se se permitem trabalhadores estrangeiros nestas situações, se está a contribuir para a diminuição das condições e do preço do trabalho no nosso país. Dói-me que, ao fim de tantos dias de serem públicas as condições de sobrevivência destes trabalhadores (e até de ter passado o 1.º de Maio!), não se tenha ouvido qualquer murmúrio sindical. Se se ouviu foi tão murmurado que não se deu por ele! Surpreende-me que todas as críticas tenham caído exclusivamente sobre o governo e que nenhum reparo tenha sido feito às empresas empregadoras – que lavam as mãos subcontratando os migrantes a empresas manhosas de trabalho temporário- como se elas desconhecessem as condições em que vivem as pessoas que as servem. Tudo isto é de uma grande hipocrisia!

O que se têm ouvido, isso sim e ainda bem, são legítimos protestos em nome dos direitos humanos. Regozijo-me com o facto de não se ter enveredado pelo protesto anti-racista pois entendo que, mais que racismo, o que existem são procedimentos mais que condenáveis sobre migrantes laborais qualquer que seja a sua origem. Desta vez, embora haja africanos, são sobretudo asiáticos embora também haja sul-americanos, os envolvidos neste sórdido negócio. Estas situações representam um retrocesso civilizacional de que me envergonho, de mais a mais sabendo que elas existem um pouco por toda a Europa e por todo o Mundo. E que acontecem à crua luz do dia, sem escolha de sexo ou idade. É a nova escravatura, adaptada aos tempos modernos!

Fernando Pinto

Arquiteto

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