Ao correr da pena: Marcelino da Mata, Mamadou Bá e o colonialismo

Desde miúdo que me recordo de ouvir falar de Marcelino da Mata! O seu nome servia para o governo fascista dizer que o regime de então não era racista nem colonialista, e provava-o exibindo Marcelino da Mata. Servia ainda para afirmar que nem todos os pretos eram “turras” (“turra”, então, significava “terrorista”) e havia os que estavam “do nosso lado”.

Claro que a história de Marcelino da Mata, oriundo da então Guiné Portuguesa, não era comum: ele odiava o PAIGC porque, por qualquer razão que desconheço, um grupo de homens supostamente do PAIGC lhe tinha liquidado parte da família. E, claro, surgiu o ódio que, provavelmente, gerou esse ser sanguinário que o poder colonial se apressou a glorificar, mesmo que para isso tenha tido de anular todos os processos legalmente organizados contra ele pelo próprio Exército Português, por crimes classificados como “de guerra”, ou seja, contendo actos que são proibidos por todas as convenções de guerra! Vale a pena dizer, para quem das colónias conhece exclusivamente o pouco que os nossos livros de estudo, oficiais e únicos, diziam, que a Guiné-Bissau (então, Guiné Portuguesa), incluindo dezenas de ilhas, tem sensivelmente a área de Portugal ao sul do Tejo (Península de Setúbal, Alentejo e Algarve).


Nesse território, existem mais de 30 etnias, cada uma com a sua língua, a sua organização social e a sua religião. Claro que as diferentes etnias não se arrumam só dentro dos limites do actual país, transbordando frequentemente para lá das fronteiras. Os Fulas, por exemplo (cerca de metade da população total), espraiam-se até ao Senegal, e é por vezes difícil (e inútil) saber quais os elementos de uma família que são guineenses, e quais são senegaleses.

Os factores étnico, cultural e familiar são sem dúvida bem mais importantes do que a localização geográfica de nascimento, seja qual for a etnia, nómada ou não. As rivalidades interétnicas são ancestrais, mergulhando algumas delas raízes bem fundas, indo por vezes até aos primordiais negócios da escravatura, de que este “posto” foi um dos mais utilizados pelos portugueses na compra de escravos para as Américas.

Mas mesmo dentro da mesma etnia, há rivalidades: recordo que um engenheiro meu amigo, de etnia Papel, um dia me contou que, em conversa com o empregado que lhe tratava da casa, lhe disse “Podemos ser o que somos, mas somos os dois Papéis!” ao que o outro respondeu “Sim, mas eu sou Papel da Ponta Neto e você é Papel de Bissau!”. Resta acrescentar que Ponta Neto dista menos de 10 km do centro de Bissau! É que os de Ponta Neto eram de ranking superior aos de Bissau! Neste caso, isto tem graça mas, multiplicado por umas 30 etnias, outras tantas línguas, diversas tipologias de organização social (desde as mais verticais e hierarquizadas -Fulas e Mandingas- às mais horizontais e igualitárias -Balantas e Bijagós) e três tipos de crença religiosa (animistas de vários cultos, 55%; islâmicos, 40%; cristãos, 5%), transformam este pequeno país num valente quebra-cabeças.

É neste verdadeiro dédalo étnico-cultural que Marcelino da Mata, cuja etnia de origem desconheço, enraivecido pelo assassínio a que assistiu, se alia aos portugueses e toma o partido destes. Não foi o único: os assassinos de Amílcar Cabral, se bem que doutrinados e armados pelo Exército Português eram, também eles, guineenses, e não me surpreenderia que uns e outro fossem de uma etnia diferente da das suas vítimas. Consciente da complexa situação guineense e da peculiar situação de Cabo Verde, Amílcar Cabral fundou o PAIGC – Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde, que tentava associar aquelas duas realidades geopolíticas. Creio que só mesmo ele poderia ter levado essa unidade mais longe mas, sem ele, a diferente realidade dos dois países falou mais alto e eles separaram-se escassos anos após as declarações de independência.

Mas voltemos a Marcelino da Mata! A partir desse assassinato, ele assumiu a guerra como parte de si próprio e tornou-se num ser sanguinário e apoiante indefectível da potência colonial, que o protegia. Estava encontrado o modelo que servia bem aos objectivos do Estado Colonial: alguém local, preto, e com uma sede de vingança a toda a prova. Depois, foi só dar-lhe armas e cobri-lo de medalhas! Quem tinha inventado as “Províncias Ultramarinas” promoveu-o a herói, e ele não cuidou de saber de que lado estava da História, mas estava do lado que então, rapidamente definhava.


Pelo PAICG foi mesmo proclamada a independência (24 de Setembro de 1973), logo reconhecida por muitos países. Escusado será dizer que não teve direito à cidadania guineense e ficou interdito de entrar na Guiné-Bissau. Foi este ser que morreu de Covid 19 aos 80 anos, há dias, em Lisboa. Entendo que o facto de ser o militar mais medalhado não acrescenta nem diminui nada ao papel odioso que desempenhou ao serviço do estado colonial, que foi aliás quem lhe outorgou essas medalhas. Permito-me, contudo, duvidar da consciência política ou ideológica da sua opção, que creio tenha tido motivações bem mais prosaicas. De qualquer modo, desde 1974 que, naturalmente, não se glorificam as guerras coloniais e seria absurdo que agora isso acontecesse, mesmo que a reboque do falecimento de um militar que nelas participou.

Neste contexto, entendo também a posição de Mamadou Bá. Ser senegalês de origem nada lhe tira ou acrescenta, pelo que acima expus: a localização geográfica do nascimento é, naquelas regiões, pouco relevante. Depois, trata-se de um cidadão português e por isso a hipótese de deportação é, para além de legalmente impraticável, politicamente ridícula, o que a torna num golpe publicitário “para português ver”. O que acontece é que Mamadou tem uma visão e uma atitude opostas à prática de Mata na guerra de libertação da Guiné-Bissau, e está no seu direito. Mamadou disse o que entendeu e por isso não pode ser de qualquer forma penalizado.


Mal andaríamos se, em virtude da origem étnica, pudesse haver tratamento diferenciado para cidadãos portugueses! Não importa se se concorda ou não com o que disse ou a forma como disse o que disse; o que importa é que neste país há liberdade de expressão e cada um é o exclusivo responsável pelo que afirma. Se houver quem conteste, que utilize os mecanismos por cá felizmente instituídos depois do 25 de Abril para fazer valer aquilo que entende serem os seus direitos e prerrogativas. Na verdade, durante a longa guerra colonial que medalhou Marcelino da Mata, nada disto seria possível porque Salazar exercia a censura e cortaria cerce qualquer manifestação contrária! Felizmente que hoje temos o direito de poder dizer o que pensamos, mormente tratando-se de um cidadão português! E mesmo que não fosse português, Portugal é um país onde se pratica a liberdade!

Fernando Pinto

*Arquiteto

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