Ao correr da pena: O 26 de Novembro de 1967

Passam já quase 50 anos sobre o 25 de Abril, e creio estar a chegar o momento de, em termos históricos, irmos fazendo a História anterior a essa data. Sendo verdade que a democracia e as liberdades são realidades frágeis, é sempre bom recordar o que tínhamos e passámos a não ter e o que não tínhamos e o que passámos a ter. Já muita gente não se lembra como se passavam as coisas antes daquela data, e metade da população nem sequer era nascida. É só a realidade pós-25 de Abril que a maioria dos portugueses hoje conhece.

Dos dirigentes partidários actuais, normalmente escolhidos entre os mais velhos, só Jerónimo de Sousa já era adulto no 25 de Abril! Os que se lhe seguem são Rui Rio, com 16 anos nessa altura, António Costa e João Cotrim de Figueiredo, ambos com 12, José Luís Ferreira com 11 e Catarina Martins com apenas 7 meses! Os outros, nem sequer eram nascidos! Nada tenho contra a gente nova, sendo que eu próprio tinha 21 anos nesse “dia inicial inteiro e limpo”, no belo dizer de Sophia. Tomo é consciência que hoje se fala dos tempos anteriores com grande ligeireza, quantas vezes eivada de algum saudosismo, senão mesmo nostalgia! Quem assim fala é essencialmente quem nunca viveu essa anterior realidade. Será que, por outro lado, tudo o que aconteceu depois foi excelente? Obviamente que não, mas a verdade é que o que de melhor ou de pior nos aconteceu, foi sem dúvida marcado por essa madrugada, e tudo teria sido necessariamente diferente se ela não tivesse acontecido.

Como eram, então, as coisas antes do 25 de Abril? Como se vivia e pensava? Para além da minha memória pessoal, socorrer-me-ei aqui de Maria Filomena Mónica (“Os Costumes em Portugal”, Cadernos do Público n.º 1, 1996). Na verdade, o que gostaria de poder transmitir, se para isso tivesse engenho, era o funcionamento das nossas cabeças, ou seja, como “viviam” as nossas cabeças no tempo anterior a essa manhã libertadora.

Nessa época, por exemplo, eu jamais me sentaria num café de costas voltadas para a porta, e estava sempre de olho nela. Porquê? Porque, não fosse o diabo tecê-las, se ali entrasse a polícia política eu, talvez ingenuamente, preferia estar preparado para fugir! O cuidado com o que se dizia em público ou ao telefone era constante.

Também o que se dizia a desconhecidos (ou pouco conhecidos), sobre o que quer que fosse, era pesado. Não se sabia nunca quem ouvia as nossas conversas e, sobretudo, que interpretação elas iriam ter. Isto porque, tal como o país, a própria polícia política não era lá muito instruída e podia facilmente interpretar mal o que via ou ouvia.

Recordo ter-me sido dito por um livreiro que habitualmente tinha rusgas na sua loja (em busca de livros proibidos, porque sobre estes só havia censura a posteriori), que lhe tinham levado “O Reflexo Condicionado” de Ivan Pavlov, livro de estudo que, contudo, teve para o polícia um aspecto “suspeito”: o Pavlov era claramente russo (e, portanto, potencialmente comunista) e isto de “reflexo condicionado” era de desconfiar…

Também numa rusga a um escritório de um advogado oposicionista, lhe apreenderam um livro de Racine, argumentado que “Lenine, Estaline, Racine, é tudo a mesma coisa!” Já no que se refere a jornais, havia temas e palavras tabu que nem valia a pena tentar escrever, porque seriam liminarmente cortados: suicídios, barracas, pobreza, operários, emigrantes, abortos, homossexuais, enterros civis eram algumas dessas palavras! Obviamente que nada se poderia escrever ou dizer sobre manifestações, greves, presos políticos, acções políticas (como o assalto ao Santa Maria ou outros atentados) e quaisquer actos de oposição ao regime. Isto, para não falar espesso manto que se abatia sobre a guerra colonial e tudo o que lhe dizia respeito, em particular sobre o seu dramático cortejo de mortos e feridos: o único que existia era uma pequena coluna, numa das páginas interiores dos jornais, com uma pingadeira diária de “mortos em combate”, sem mais explicações!

Outra coisa que, a partir de determinada altura, passou a ser proibida, foi chamar “vermelhos” aos benfiquistas. Só “encarnados”! O termo “vermelhos” ficava definitivamente reservado para os comunistas. Já na Guerra Civil de Espanha, os jornais tinham sido proibidos de se referir aos republicanos, então no poder, como “forças governamentais” que efectivamente eram, e foram forçados a chamar-lhes “vermelhos”! Em 1957, quando os soviéticos puseram em orbita o primeiro satélite artificial (o Sputnik 1), os jornais publicaram uma declaração do patriótico astrónomo português Prof. Varela Cid afirmando que tal facto era invenção dos comunistas! Aliás, qualquer menção à União Soviética era proibida, até mesmo o boletim meteorológico!

Era este o mundo concentracionário em que Salazar e depois Caetano obrigavam a viver todo este povo, para isso seccionando a população em camadas quase estanques ente si. Quando, em 26 de Novembro de 1967 (ainda com Salazar) houve umas brutais inundações na região de Lisboa, os jornais e as rádios foram proibidos de contabilizar as vítimas mortais bem como os imensos estragos e destruições verificadas.

Os jornais tiveram ordem de parar a contagem dos mortos nos 462 e de reduzirem o número de fotografias que mostrassem estragos e nunca caixões. Já depois do 25 de Abril, estimaram-se os mortos em mais de 700, devendo os desalojados ter chegado aos 100 000 e mais de 20 000 as casas destruídas! A tentativa de reduzir a gravidade do sucedido através da censura chocou com a tremenda gravidade da situação no terreno. Toda aquela destruição, mais que produto das tremendas cheias, era sobretudo produto da imensa pobreza.

Nessa altura, as associações de estudantes bem como muitas escolas e paróquias, organizaram-se para apoiar as populações gravemente atingidas (Vila Franca de Xira, Alhandra, Arruda dos Vinhos, Cascais e toda a periferia de Lisboa com destaque para Loures e Odivelas). Terá sido essa a primeira vez que muitos milhares de jovens voluntários testemunharam ao vivo o que era a censura, pois puderam contrastar o que na verdade viam com o que podiam ler nos jornais. Terá sido a partir desse 26 de Novembro que muitos milhares de jovens despertaram para o que era a realidade e o que a ditadura permitia que passasse como imagem de si própria. Terá sido a partir desse 26 de Novembro que muitos que ainda acreditavam na bonomia do regime, se desiludiram completamente. Terá sido a partir desse 26 de Novembro, faz agora 54 anos que muitos milhares de jovens começaram a formar-se pessoal e politicamente para, pouco mais de seis anos depois, terem saudado da forma genuína e calorosa que todos conhecemos, a madrugada libertadora do 25 de Abril de 19741!

É que “Fascismo, nunca mais!”

Fernando Pinto

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