AO CORRER DA PENA: O Civismo e o Instinto ou “Salve-se quem puder!”

Tenho para mim que em cada ser humano coexistem dois “eus”: um é o “eu” cívico e social, formatado e cultivado, e o outro é um “eu” instintivo, irracional e algo rude, regido por princípios básicos de sobrevivência. Se é o primeiro que nos permite viver em sociedade, ao segundo devemos a nossa sobrevivência, que é o nosso mais forte -e vital- instinto. É o que prosaicamente se chama o “Salve-se quem puder!”, tão difícil de contrariar em situações de pânico! É da luta entre estes dois “eus” que a nossa conduta é feita e com ela, a própria conduta das sociedades que temos vindo a construir e onde portanto, culturalmente nos inserimos. Claro que tudo isto tem muitos graus e muitas nuances mas, quando conseguimos assistir ao que se passa no Mundo e no nosso próprio cosmos com algum distanciamento, somos forçados a concluir que é mesmo assim que as coisas se passam. Vejamos, por exemplo, a questão da Amazónia. Assistimos todos a um princípio de discussão assaz surpreendente (para não dizer surreal) entre o presidente francês Macron, que afirmava que a Amazónia era uma questão internacional, e o presidente brasileiro Bolsonaro que a reivindica como uma questão interna do Brasil ou, quando muito, uma questão regional (envolvendo exclusivamente os países que possuem partes da Amazónia). Na verdade, é quando as coisas começam a tocar à sobrevivência que os espíritos se inquietam e começam a subvalorizar o civismo e a vida de relação (neste caso, a nível mundial) e a sobre-valorizar a sobrevivência da espécie. É evidente que a destruição da Amazónia afecta toda a Humanidade, mas esta é causada por factores internos ao Brasil. Aqui, entramos no domínio da propriedade das coisas. Já dizia o Grande Chefe Índio Boi Sentado, há cerca de dois séculos, que “querer dividir a terra é como querer dividir a água de um rio ou o ar que respiramos”. No entanto, é isso que temos vindo a fazer e por isso a afirmação assenta que nem uma luva ao problema da Amazónia! Por um lado, no regime de propriedade privada em que vivemos, que direito temos nós de exigir que a Amazónia seja isto ou aquilo? Por outro lado, que direito têm os brasileiros de nos privar de 20% do oxigénio que compõe a atmosfera? Reduzida a uma questão só, pergunta-se: De quem é a propriedade das coisas deste Mundo? Claro que só quando as coisas são escassas (e de valor reconhecido) nos preocupamos com a sua propriedade. Não é essa, na verdade, a essência de todas as guerras? Explico-me: as guerras só aparecem quando é necessário saber exactamente a quem pertence e quem usufrui este ou aquele bem. Quem alguma vez se preocupou com a rigorosa definição da fronteira da Líbia ou da Argélia no deserto do Sahara, antes de lá se descobrir petróleo? Ou quem alguma vez se preocupou com os limites da plataforma continental portuguesa até se suspeitar que ela encerrava riquezas insuspeitas? Aqui é o nosso “eu” nacional de sobrevivência a funcionar, tal como há quinhentos anos atrás foi o Tratado de Tordesilhas. Mas então alambazámo-nos logo com metade do Mundo! A outro nível e dando outro exemplo, tenho para mim que os saques de supermercados em momentos de crise (como há pouco na Venezuela) não significam que todos os que roubam viveres e outros bens essenciais sejam ladrões, mas tão só que bloquearam o seu “eu” cívico e passaram a funcionar com o seu “eu” sobrevivente, esvaziando questões de propriedade. Tal como cá, também há pouco mas mais modestamente, quando se dramatizou a próxima futura falta de gasolina e gasóleo, se começou a assistir à constituição de “reservas pessoais”, ilegais e bastante perigosas, destes produtos. Também na sublevação de Hong Kong. Sinto algum desespero e portanto, creio que é o instinto de sobrevivência (de liberdade e quiçá de manutenção da própria vida) que ali tem predominado. De outra forma, como se conseguiriam mobilizar por tanto tempo, tantos milhões de pessoas? Tal como, de início, a mobilização dos coletes amarelos em França. Recordo também, dramaticamente, as sucessivas e desesperadas vagas de homens, mulheres e crianças que diariamente se fazem ao mar no Mediterrâneo, em busca da própria vida. Neste contexto, só não consigo perceber e enquadrar as constantes e sangrentas investidas dos fundamentalis-tas islâmicos (com explosões, atentados, ataques suicidas, etc.) que matam, sobretudo, os seus próprios irmãos de fé. Coloco a questão porque sinto, de algum modo, que estes são actos de violento desespero, indicadores de comportamentos irracionais e, aparentemente, de sobrevivência. É um mundo em profunda crise aquele em que hoje todos nós vivemos mas, mesmo assim, não lhes encontro, neste contexto, qualquer enquadra-mento. O comportamento dos próprios elementos, sol, vento e chuva, está a mudar, e não sabemos sequer em que extensão e com que profundidade, criando um clima de incerteza a que não estamos habituados. Sabemos que os fogos na Gronelândia, na Sibéria, nos Estados Unidos da América (no Alaska e na Califórnia), nas Canárias e na Indonésia, o degelo da Gronelândia e do Alaska, as inundações em França, em Espanha, na China e na Tailândia, bem como as prolongadas secas no Sudão e na Etiópia (para só citar alguns casos), são as primeiras consequências palpáveis da pouca ou nenhuma preocupação que as questões ambientais têm levantado às indústrias e aos dirigentes que mandam no Mundo (mormente o G7). Será que este arrufo Macron/Bolsonaro já é uma primeira manifestação real de preocupação? E, se é, como irão eles gerir as pertinentes questões levantadas pela propriedade dos territórios, dos recursos e dos patrimónios essenciais à nossa própria sobrevivência como espécie? Ir-se-á interferir com as políticas internas e até com a propriedade plena dos recursos dos países envolvidos? Sob que pretexto, neste mundo tão cioso da propriedade privada? A Terra está, visivelmente, à beira de um “Salve-se quem puder!”, mas eu não vejo grande abertura política para que essas urgentes resoluções de sobrevivência possam ser tomadas. Temo que, mais uma vez, se assista neste planeta à extinção completa e em massa de muitas espécies. Não poderei dizer que assistiremos “com alguma distanciamento” ao desenrolar dos acontecimentos, porque aí, seremos nós próprios também, em conjunto com grande parte dos outros seres vivos, o objecto desses acontecimentos. Esperemos que assim não aconteça!

Fernando Pinto
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