AO CORRER DA PENA

Introdução à corrupção

Sou um espectador pouco qualificado de desporto. Gosto de ver um jogo bem disputado, qualquer que seja a modalidade, mas fico-me por aí. Gosto sobretudo de ver jogos disputados com vontade de vencer, através do próprio jogo. Com brio. Com honestidade. Irritam-me os estratagemas de provocação de faltas e outras minudências legais. Acho-as pouco dignas de um são convívio entre desportistas. Tento saber as regras mas, quanto ao resto, pouco ou nada sei! Mesmo dos desportos de que gosto, faço escassa ou nenhuma ideia do andamento dos respectivos campeonatos e demais provas, tal como ignoro quaisquer outras informações ancilares. Essencialmente, assisto pela TV a provas internacionais em que é o nome de Portugal que está em jogo, como sejam os campeonatos mundiais, os europeus, os Jogos Olímpicos ou outros do mesmo tipo.

De resto, só o que é transmitido pela televisão durante as provas a que assisto, passa a ser do meu conhecimento. Já lá vai o tempo em que seguia a Fórmula 1 em emissoras de sinal aberto e então sabia mais ou menos o andamento dos pontos, dos pilotos e dos carros. Hoje, nem isso. Muito menos sei ou sequer me interessa a vida privada dos jogadores e ainda menos das namoradas e outras miudezas tanto do agrado de certos órgãos de “informação”, que se alimentam do circo das estrelas, dos chamados famosos! Mas o que hoje me move a escrever, não é isto.

O que me move é, na prática, ser o futebol o tema com direito a muito mais atenção que qualquer outro. Se somarmos as infindas horas de televisão passadas a falar, a discutir e a gritar futebol (sim, são bem frequentes acaloradíssimas discussões com menos que recomendáveis atitudes por parte de alguns intervenientes), rapidamente chegaremos à conclusão que, o somatório do tempo dado a todos os outros desportos, não se abeirará nunca do tempo ocupado só com futebol. Estou mesmo em crer que se poderá a este total somar, sem receio, todo o tempo gasto em programas de índole política e cultural, que continuará a haver um grave défice relativamente ao deus futebol! Nada tenho contra o futebol, mas já tenho contra a forma absurdamente intensa e quantas vezes desonesta como ele é tratado.

Explico-me melhor: tenho, por vezes, assistido a discussões sobre lances, jogadas e decisões dos árbitros que deveriam fazer parte de um qualquer manual de elogio da fraude! Já assisti por diversas vezes a discussões em que se argumentava que, “se o árbitro não viu, não é falta!”. Esta é, em minha opinião, uma descarada aceitação da fraude e, consequentemente, um igualmente descarado convite a ela! Estão estes senhores a incutir nas crianças (e quantas seguem estes debates!) que, se não se é apanhado a cometer falta/fraude, esta é como se não existisse! Brada aos céus a leviandade deste tipo de afirmações, que incute nos muito jovens a ideia de que a fraude/falta só é grave se é apanhado a cometê-la! Sendo os jogadores de futebol modelos para muitos jovens, temos o caminho aberto para que neles se instile esta ideia absolutamente contrária ao que deveria ser o princípio básico do desporto (e da própria educação): “Que ganhe o melhor!” Ao contrário, parece ser esta uma frase caída em desuso e o “Fairplay” que a FIFA obriga os jogadores trazem bordado nas camisolas, soa como uma palavra absolutamente sem sentido. Contrasta tudo isto com o que se vê em muitos outros desportos, do rugby ao snooker, do ténis ao judo, em que já vi oponentes corrigirem decisões dos árbitros que lhes eram favoráveis, em nome da sua própria honestidade e da chamada verdade do desporto! Posso estar equivocado, mas nunca tal vi no futebol e, pior ainda, nunca nada vi de parecido nestes programas de que falo! A existir tal fairplay, será pelo menos, raro. Se de pequenino é que se torce o pepino, então estamos conversados! Como iremos incutir nestes jovens ideias de seriedade e de honestidade no trabalho, na vida e na relação entre seres humanos se, em programas aparentemente inócuos, lhes transmitimos que o objectivo do jogo (da vida) é ganhar custe o que custar e que só é sancionável aquilo que se torna aparente aos olhos de quem manda? Transportando isto para a vida real, é legítimo tentar ludibriar nos impostos, nos exames, na fila do supermercado e sei lá mais onde, desde que não se seja apanhado.

Estamos por isso a criar uma geração que terá da fraude e portanto da corrupção, uma ideia não pautada por valores éticos e de seriedade pessoal, mas de algo que se pode fazer, desde que não se seja apanhado! Por outras palavras, dizemos-lhes que há que ser bom na arte de dissimular e de encobrir as fraudes que lhes sejam favoráveis (e por isso há que praticar bastante)! Se forem apanhados, azarinho! É porque não foram suficientemente bons na subtil e recompensadora arte da dissimulação! É por tudo isto que acho que estes programas de debate e “análise” de futebol, funcionam como verdadeiras aulas de Iniciação à Corrupção! Veremos como se sairão os alunos!

Fernando Pinto

*[email protected]

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