Arranjos psicopolíticos em tempos de pandemia

Leonard Goldberg
Leonard Goldberg
Psicanalista, Doutor em Psicologia pela USP (Universidade de São Paulo), autor de “Das tumbas às redes: luto e morte na contemporaneidade” (Benjamin Ed.)

Numa alegre cidade italiana, a peste surge como signo da morte e de desarranjos estruturais. Os mortos acumulam-se nas ruas e toda a sorte de contratos sociais é suspensa. Os ritos fúnebres são rápidos e coletivos, e por vezes interrompidos por conta das limitações de espaço e de funcionários. Os cidadãos nutrem desconfiança mútua em relação ao flagelo e a reação da população oscila: de um lado cidadãos bradam jocosidades sobre consumir álcool para não adoecer e do outro famílias inteiras se isolam, ou, dependendo do poder aquisitivo, exilam-se em casas de veraneio ou fazendas. Há também aqueles que atribuem o acontecimento à providência divina e se cercam de rodas de orações e outros ritos religiosos.

Estamos em Florença, talvez a mais bela das cidades europeias. O ano é 1348 e o mundo é atravessado pela “morte negra”, trazida de forma acelerada, através da rota da seda, do oriente ao ocidente. Quem narra tal acontecimento é Bocaccio, e esse é o contexto de sua celebre obra Decamerão, onde sete moças e três rapazes fogem da peste e da degradação para no exilio discutir sobre a doçura, o amor e o prazer. Apesar do pano de fundo terrível, a obra não recai à escatologia típica medieval, mas transforma-se numa discussão bem humana sobre as ambivalências das relações e dos afetos. Considerada por muitos como precursora do humanismo renascentista, é escrita também como efeito das exceções provocadas pela peste. Uma dessas exceções marcou profundamente a biografia de Bocaccio: a morte de sua filha, Violante, com apenas sete anos de idade. O desenvolvimento da obra é interessante, pois inicia com o declínio do cotidiano e a ascensão do flagelo, até uma reorganização “política”, de um pequeno grupo que comunga histórias num círculo novelesco de intimidade.

Tal percurso sugere uma certa regeneração através da possibilidade de cada membro do seleto grupo, contar histórias e serem escutados, e, portanto, de uma política do cuidado através da fala e da escuta. Para o filósofo Peter Sloterdijk, a obra propõe uma resposta alegre e regenerativa à “peste psíquica”, que de tão arrebatadora, teria paralisado os florentinos. Ao pensar sobre os aspectos psicossociais da peste, o psicoterapeuta e zoólogo suíço Franz Renggli vai além e encara a “peste negra” como uma crise que produziu um efeito devastador no sistema psico-imunológico coletivo europeu. Uma das razões para o enfraquecimento desse sistema imunológico “psicossocial” seria, em conjunto com o flagelo, a degradação da relação entre mães e bebés, demonstrada nas pinturas italianas e holandesas entre os séculos XIV e XV. Essa hipótese exige saltos complicados e inferências históricas que admitem períodos enormes, sob uma interpretação que ignora outras variáveis. Mas serve para pensarmos em aspectos muitas vezes negligenciados quando somos atravessados por pandemias e nos sentimos sem referências, de um lado para pensarmos em estratégias para conservar nossa “humanidade” e fortalecer nossos pactos de solidariedade e de outro para realizarmos nossos lutos e honrarmos nossos mortos.

Bom, a primeira referência é histórica: a grande História é marcada por pandemias que deixaram marcas profundas na cultura e nas relações sociais. “Não há nada de novo debaixo do sol”, a novidade é a velocidade com a qual conseguimos manter a comunicação sincrônica em tempos de quarentena e, através disso, não nos sentirmos tão solitários quanto gerações de outrora. Apesar da tristeza e das perdas, as pandemias fazem parte do nosso percurso.

A segunda referência é em relação aos nossos lutos. Antes dos psicanalistas, Epicuro já sabia que não havia saber sobre a morte. Afinal, se ela está, nós não estamos. Se estamos, ela não está. Visualizar o cadáver não garante um luto bem sucedido, pois o que realiza que perdemos alguém que amamos é a falta de resposta, de comunicação com o falecido. Mas para um luto bem sucedido, inclusive coletivo, os ritos fúnebres precisam ser realizados, com suas liturgias próprias, ainda que de forma remota como a tecnologia hoje permite. Se há alguma coisa que possamos extrair desses momentos é que fortalecer nossos pactos de solidariedade e honrar nossos mortos, escrevê-los da maneira devida, servirá como ponte para realizarmos essa travessia dolorosa mas necessária, conservando nossa humanidade•

Leonardo Goldberg

PsicanalistaDoutor em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP), autor de “Das tumbas às redes: um estudo sobre a morte e o luto na contemporaneidade” (Benjamin,2019)

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