Remate certeiro: Arthur Ligne

Arthur Ligne (O Tito) um Filho da Pneumónica

Sempre o conhecemos e o respeitámos como um bravo do pelotão e não se pense que a nossa relação foi angelical, com um bolo e cerejas no topo, antes um caminhar com botas cardadas, para não encalharmos no cordão detonante e saltarmos loucamente da picada da vida para o olho dum furacão.


Nunca antes tínhamos conhecido Arthur Ligne, mas rapidamente descobrimos, que na fuga do seu rosto tenso, nasce um rosto vidrado, feliz, de emoções e paixões, com um bigode que mais parece um toldo, olhos vidrados e um coração que apesar da sua grandeza, nunca teve fronteiras, para acariciar todos.


Felizmente que foi tudo num instante e nem falámos muito para nos tornarmos cúmplices e amigos inseparáveis, fazendo sempre da lealdade o caminho destruidor de todos os ziguezagues, como vive esta sociedade mesquinha, agora sem chapéu de abas largas, nem gabardine, mas formatada, como se diz agora, das mesmas teias de ódio e de perseguição.


Nós bem queríamos, não de forma generosa, mas por paixão, entrarmos pelo mundo mais desconhecido de Arthur Ligne, como sempre o que escrevemos, cavando com as mãos trémulas e doridas, num sofrimento de paixão, fomos em busca de bocados da sua autobiografia, mas em poucos mais de 4 folha A/4 e ainda por cima em papel de rascunho, nem teríamos espaço para inserir as vírgulas.


E esse o dilema com que nos batemos, para abraçar pela escrita, umas das figuras mais belas e controversas que conheci, que muitas vezes, mesmo pedindo à sua fidelíssima Ana Maria [mulher coragem] para lhe encher os pulmões de ar com uma bomba de encher as rodas das bicicletas, nunca deixou de apontar os erros, de lutar pela sobrevivência da moral, da verdade e na defesa constante dos mais desfavorecidos, dos chamados estranhos, para uma sociedade, que antes os explorou…

Arthur Ligne, um grande homem e jornalista, aqui com alguns livros da sua vasta obra literária, com destaque para o Filho da Pneumónica

O Tito do Filho da Pneumónica


No seu livro Filho da Pneumónica, que ele chama de narrativa da vida real, Arthur Ligne, que aqui vai ser conhecido pelo Tito, abre o I Capítulo, escrevendo:


“27 de Agosto de 1913.


Na freguesia de Belém, Lisboa, nasceu Fernando Ribeiro [seu pai], filho de Deolinda de Jesus Ribeiro e de pai incógnito, situação de filiação muito vulgar ao tempo. Deolinda nasceu em 1889 (ano em que também nasceu António Oliveira Salar), residia no Barreiro mas viria a dar entrada no Hospital Camões, a 26 de Outubro de 1918 […]


De entre essas múltiplas ligações amorosas, conheceu Maria das Neves [era a minha mãe], na cidade de Tomar, onde residia numa velha casa, na Várzea Pequena, nas proximidades do Rio Nabão […]


O que não escasseou, contudo, foi a ingénua paixão de Maria por Fernando, que acabou por se desvincular do agregado familiar, levando Maria das Neves a monumentais acrobacias de vida para sobreviver, para se sustentar e aos filhos e tudo tentar para os fazer viver, ainda que de pé descalço e calções rotos.


Eram apesar de tudo crianças felizes. Eram os «putos» da Maria!


O seu comportamento perante a sociedade era o de mulher trabalhadora, séria, capaz de qualquer coisa para que seus filhos não passassem fome. Mas, apesar de toda a sua boa vontade, nem sempre havia um prato de sopa sobre a tosca mesa de uma habitação que de habitação só tinha o nome e a presença de cinco pessoas, mãe e quatro filhos […]


Maria das Neves ergue-se, na sua pequena figura de moça da aldeia, e disparou:

Vim trazer-te os teus filhos! Ou ficas com todos ou ficas com metade! Mas ficas com alguns porque não tenho possibilidades económicas para os criar…


E isto passou-se à noite, numa feira, em plena hora de ponta, numa barraca de comes-e-bebes repleta de clientes, com a repercussão natural de um escândalo passional. Não se tratava de um acaso de adultério, mas de infidelidade, pois Fernando não era casado com Maria das Neves. Era, tão só (para minimizar os danos morais e sociológicos) pai ausente dos seus filhos.


As quatro crianças, um pouco distantes ou indiferentes ao que se passava no seu da família que sempre conheceram como sua, vinham famintas, mas muito bem arranjadas, talvez um traje domingueiro porque a inesperada reunião da família em Lisboa era de grande responsabilidade Elas não sabiam, mas a verdade é que estava a acontecer um facto relevante que as marcaria para toda a sua vida: a sua devolução ao pai ausente, que as esqueceu em Tomar.


Gerou-se uma enorme balbúrdia Faço uma pequena ideia.


Maria das Neves não se calava. Ela e o ex-companheiro gritavam cada um para o seu lado, em defesa das suas posições. Para as crianças, que mal sabiam o que se estava a passar, tudo aquilo que se ali se discutia era importante, porque compreenderam que se tratava de negociar a divisão e distribuição dos quatro filhos pelos seus progenitores.


A situação mais do que tumultuosa, foi salva pela então nova companheira de Fernando, Maria de Jesus que, vinha da cozinha, acabou por ser a apaziguadora e a juíza de uma situação para a qual não contribuiu mas que serviu para regular um desvaneio, um entre outros, de Fernando, situação que ela desconhecia em absoluto.


As crianças sabiam que Maria das Neves era a mãe e que Fernando Ribeiro era o pai.


Não sabiam mais nada nem quem era aquela outra senhora doce e meiga que os recebeu e que foi árbitro de uma divisão fraternal.
Tinham essa percepção, foi-me revelado durante a minha investigação deste caso real. Era uma pessoa bem-educada, Ex interna de num colégio de freiras. Não perdeu a calma nem a compostura:

Vamos lá para dentro minha senhora! Vamos dar de comer às crianças e conversar e tudo se vai resolver, disse Maria de Jesus.
A imagem que ali aconteceu, com púbico juntando e testemunhando o episódio, revelou-se traumática, como se tivesse ocorrido hoje, especialmente quando as quatro crianças, cheias de fome, se atiraram à comida como gato a bofe e quando pressentiram que iram ser separadas. […]
Como pessoas civilizadas e depois de conversarem com as quatro crianças, a que foi perguntado com quem queria ficar, foi acordado:

Maria das Neves: fico com o Tito [é o Arthur Ligne e a Bia. Tu ficas com o Frank e o Fernando […]


São 190 páginas com o prefácio de João Soares, mas no renovar de cada pagina existe um grito, uma revolta, uma salvação, a fome, a doença, os direitos da crianças, os direitos humanos, a vida, a paixão, o amor e os solavancos, de uma vida terrível, onde cada membro da família, os outros, mas sobretudo o Tito, se reergueu de mil vezes em mil vidas, sempre com a mesma coragem, a mesma fortuna afectiva, o mesmo aprumo, a mesma tenacidade e coragem, o mesmo heroísmo, e o maravilhoso orgulho de ser Filho da Pneumónica.


Pois é este Tito, este Arthur Ligne, que trago hoje para o meu REMATE CERTEIRO, porque tenho orgulho em ser seu amigo, e eu próprio o trato por irmão, por me sentir também um dos Filhos da Pneumónica.


Hoje, é comos e estivéssemos na última fila de uma imaginária sala de teatro.


As luzes já se acenderam. O som da sala, pediu silêncio.


Em cima do palco, vejo um homem bom, arrogante, determinado, leal, astuto, sem medo da guerrilha urbana e muito menos daqueles, que se julgam donos disto tudo, quando apenas tinham sido eleitos ou nomeados para determinados cargos. Afinal levados por um qualquer acidente de percurso.


Vejo-o lá em cima no palco da vida, É o mesmo homem de rosto fechado, sem calculismo, que um dia, eu próprio, contra tudo e contra todos, quando muitos lhe olhavam de revés, subi à sala de audiências do tribunal de Faro, para testemunhar a sua lealdade, o seu humanismo, a sua seriedade, contra o saudoso Cabrita Neto.


Agora regressamos à sala, à sala da vida do «Tito», onde ninguém se mexe, Nem as luzes estremecem.


Ali está, sem um gesto, apenas como quem perfila para ser fotografado, o homem, o amigo, de seu nome Artur Linhe. Eu escrevo assim, ele tem dias que escreve doutra forma.


Afinal também se deve ao Arthur, ora no teclado, ora a lápis, ora a esferográfica, tornados tenazes, a própria luta pela democracia, pela solidez desta nossa sociedade, uma sociedade mais humana, até para ser perceber, que ainda não existem diferenças algumas entre os Filhos da Pneumónica e os Filhos da Pandemia.


Arthur Ligne sempre foi um homem de confrontos pela verdade, mas nunca se escondeu nas trincheiras e sempre apontou o dedo aos maus. Sim aos maus como nós dizíamos, quando andávamos na escola «rés».


Afinal Arthur Ligne, o «Tito», também é filho da Pandemia, isto é, Filho da Pneumónica, título do livro, que deu rosto à sua vida e da sua família, sem ilusões, como foi construída e alicerçada a sua vida, pondo o dedo, sem medo, onde às vezes, faltavam tijolos… Mas nunca o desmoronamento.


Arthur Ligne, o homem, o jornalista, o pai, o esposo, o sogro, o avô, o mano velho, como lhe costumamos chamar, o destruidor de caciques, porque não suporta gente redonda, sentada em lugares quadrados, é o rosto do nosso Remate Certeiro, é o nosso obrigado ao Arthur…

Os 30 anos da Gazeta de Lagoa


Em 2014, quando a Gazeta de Lagoa, que agora regressa apenas para nos abraçar, fez 30 anos, escrevemos:


«Num País, atropelado pela sua própria consciência, que proibiu a legalidade dos que mais precisam, que transformou o papel da constituição em papel de mortalha, onde os «irmãos metralha» são as únicas pessoas de bem, é de enorme responsabilidade – também pelo farol que representa para a imprensa regional, há muito condenada à morte pelos sucessivos governos, que já se esqueceram da sua generosa influência (imprensa Regional) para que fossem conhecidos e até minguámos os seus próprios erros de todos os tamanhos, – bater uma dúzia de palavras escritas sobre a nobreza da efeméride dos 30 anos da Gazeta de Lagoa.


Num mundo e num País que se desvia de si próprio, onde só nos falta encalhar na nossa própria sombra, onde o faz de conta é a maior valência e a maior das violências, continuam no mesmo caminho de sempre o velho Arthur Ligne e sua Ana Maria, filhos da persistência e como salpicos de uma minguada ilha. Heróis de todos os combates…


O segredo do Artur e da Ana, é igual aos segredos de pessoas como nós, simples, apaixonadas por cada novo dia que renasce das suas próprias cinzas, e com o soprar mais ligeiro de uma criança, que será sempre a sua Gazeta de Lagoa, procura reacender a brasa, reanimar o calor, mantendo firme no seu longo percurso, sempre desafiante, até nos momentos da solidariedade, de dar abraços, de ajudar quem mais precisa. Sim, porque se existe uma voz solidária em Lagoa e que extravasa e se multiplica, até onde a Gazeta chega esta voz, é a voz da Gazeta de Lagoa […]


E depois terminamos, como fechamos hoje,


«De caneta em punho, o Arthur Ligne, a Ana e a Gazeta de Lagoa, têm sido uma arma de paixão, esgrimindo todas as dificuldades e obstáculos por inventar, mas mesmo sem champanhe, como defende o Artur, aqui está, a Gazeta de Lagoa, outra vez a assobiar bem para a frente os parabéns a você, porque o tempo não está para cantorias. A assobiar este memorável tempo de 30 anos de história. História verdadeira, frontal, credível, pragmática.


Que a caneta nunca se case, a alma nunca vos doa, (Arthur e Ana) para que mantenham viva e sempre interventiva e picante pela verdade, a Gazeta de Lagoa, como valor inquestionável da imprensa regional do Algarve e do País. Força, e dando já voz a uma nova edição, porque a esta hora, mesmo em tempo de aniversário, já estamos quase no dia seguinte.»

Neto Gomes

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