Numa altura em que se vive e combate uma pandemia à escala global, são muitas as histórias de outros tempos em que a região do Algarve lutou contra doenças contagiosas. Peste bubónica, cólera-mórbus e gripe pneumónica invadiram a região algarvia, chegando a causar a morte de 31% da população de Faro, entre 1649 e 1650. Apesar da diferença temporal, são muitas as semelhanças com a atualidade.
Ao longo dos séculos, a região do Algarve tem um posicionamento geográfico que a tornou numa “porta aberta” a vários tipos de doenças, desde os tempos mais antigos até à atualidade. Antes do aparecimento do covid-19, muitas foram as epidemias que os algarvios atravessaram, provocando mortes mas propiciando também experiência social, médica, cientifica e de gestão de surtos.
Entre 1601 e 1602, Lagoa, Faro, Portimão e Alvor viveram um surto de peste, que causou um grande número de mortes também devido às más colheitas na agricultura e à fome que se gerou entretanto, segundo o estudo “Crises de Mortalidade em Portugal”, de Maria Barbosa.
Alguns anos depois, entre 1645 e 1646, uma epidemia de peste vinda do Norte de África chegou a Tavira, que perdeu entre 10 e 24% da sua população. Em Faro, já entre 1649 e 1650, cerca de 31% da população morreu devido à peste bubónica, que também chegou a Lagos, Silves e Loulé. Um surto de varíola viria também a afetar o Algarve, entre 1635 e 1637.
Até meados de 1700, os mortos eram sepultados em igrejas. No entanto, esse facto fez surgir várias doenças e começaram a ser construídos cemitérios afastados das populações.
O primeiro cemitério moderno de Portugal foi construído em Vila Real de Santo António, após ter sido reprovado e considerado perigoso o enterro de cadáveres nas igrejas.
O bispo do Algarve, na altura, era a favor da construção de cemitérios públicos, mas durante décadas essa decisão foi contestada pelos povos, principalmente nas aldeias e regiões do interior.
Enterrar mortos nas igrejas até ao século XX
Em São Brás de Alportel continuou-se a sepultar cadáveres na igreja-matriz até perto do século XX, tal como aconteceu em Faro, nos conventos do Carmo e S. Francisco, onde foram enterrados mortos quase até aos dias de hoje.
A ciência, a medicina e as maneiras como eram geridas a contenção deste tipo de doenças foram conseguindo evoluir ao longo das décadas, também graças a todos os surtos que foram aparecendo e os seus respetivos tratamentos.
Em 1735, devido a uma crise luso-hispano-marroquina, em que o calor e a seca levaram à falta de cereais e à fome, uma onda de febres malignas e contagiosas atingiu o Algarve, levando à morte de muitas pessoas em várias freguesias até meados de 1739.
Ao longo do século XIX muitas foram as epidemias que atravessaram o Algarve, segundo o estudo “Para a História da Saúde no Algarve”, de José Mesquita. O factor clima, que era insalubre na altura, levava à propagação de febres infeciosas, sazonais, virulentas, contagiosas e epidémicas, tal como a proximidade com Espanha e o norte de África.
Além disso, as mentalidades, os costumes e a falta de higiene das gentes nessas alturas eram outras das razões para este tipo de doenças aparecerem a levarem consigo várias vítimas mortais, no Algarve, em Portugal e no mundo.
Um “cordão sanitário” algarvio já no início do século XIX
Em 1804, quando a cidade espanhola de Málaga foi atingida pela peste, o Algarve assumiu a estratégia de fiscalizar embarcações oriundas de zonas contaminadas e de vigiar as costas. Para assegurar o trânsito de bens e pessoas, foi criada a carta de saúde, que servia como um passaporte.
Ainda durante o século XIX, começa uma epidemia de cólera-mórbus, vinda da Índia devido às más condições higiénicas daquela época e daquele local, tal como a má qualidade da água para consumo e as deficiências alimentares.
Esta doença contagiosa era uma bactéria que se alojava no intestino e libertava uma tóxica, provocando dores e diarreia nos doentes, levando à desidratação e até à morte, em poucos dias.
Em 1826, em Vila Real de Santo António, foi feito um contrato de três anos com um médico espanhol para prestar serviços de medicina e cirurgia a todos os pescadores de Monte Gordo e da sede de concelho.
Esse contrato também previa o fornecimento de medicamentos necessários aos tratamentos e a deslocação obrigatória do médico contratado a todos os sítios onde fosse chamado, recebendo 800 réis por consulta.
Os casos mais problemáticos de contágio ocorreram entre 1817 e 1834, causando milhares de mortos na Europa e outros milhões na Ásia. Para conter a propagação da doença, o Comandante das Armas do Algarve, com sede em Tavira, exigiu a formação de um “cordão sanitário” em volta da costa algarvia, a realização de comunicações permanentes através de relatórios, a instalação de artilharia nas fortificações, a notificação de regras de quarentena para navios suspeitos e o controlo de atividades de pesca.
A eterna falta de higiene
Mas houve um descuido, que causou muitos problemas ao Algarve: um cidadão espanhol foi autorizado a entrar na região e apresentou-se à Comissão de Saúde Pública de Faro com suspeitas de contágio, lançando o pânico em toda a cidade.
A propagação desta doença deveu-se também à falta de higiene, principalmente no interior da região, onde os habitantes tinham o hábito de conviver com suínos no seu dia-a-dia, nas ruas.
Um médico de Lagos confirmou na altura que os agricultores e os pescadores eram as pessoas mais vulneráveis para contrair este tipo de doenças.
Os agricultores, que viviam no campo, eram contagiados por altura do verão, devido às águas estagnadas nos charcos e nos pântanos, enquanto os pescadores se contaminavam devido à sua forma poluente como preparavam e conservavam o peixe.
A pobreza e a ignorância eram também os grandes vilões destas epidemias, que começaram a fazer parte do quotidiano dos algarvios.
Todos estes fatores levaram a uma grande epidemia de cólera-mórbus em 1833, que chegou a muitas pessoas de forma fulminante, atingindo os mais velhos, as crianças e as suas mães, que os tratavam com preocupação.
Por esse motivo, os espanhóis proibiram a entrada de quaisquer pessoas e bens por Alcoutim, provenientes do Porto, onde começou o surto.
A cólera, peste do século XIX
A partir de maio desse ano, os cuidados e a vigilância da doença intensificam-se e a preocupação começa a ser Sagres, considerada na altura como uma “porta aberta” para a doença, devido à elevada entrada e saída de pessoas e bens, por via marítima.
Foi durante o verão que os casos mais assustadores de cólera começaram a surgir e o Visconde de Mollelos decide aumentar as regras de limpeza e higiene e enviar exemplares de orações à população.
Em junho do mesmo ano, o Governador Mollelos decide converter o Quartel da Atalaia, em Tavira num hospital de coléricos e mandou instalar um cordão sanitário à volta da cidade, além de ter ordenado a construção de dois cemitérios fora da localidade para enterrar as vítimas.
Em Faro, o surto intensificou-se após o desembarque de tropas liberais, levando à construção de um novo cemitério, com o nome de Campo da Esperança.
Na freguesia de S. Pedro, devido ao número elevado de mortes, foi criado um espaço para enterrar os coléricos com o nome de Cemitério do Moinho de Vento, cuja localização é desconhecida atualmente.
Apesar de ter havido um grande número de mortes a nível nacional e internacional, desconhece-se quantos falecimentos ocorreram no Algarve devido a este surto.
Os únicos números registados são os índices de mortalidade alcançados nos meses de julho e agosto de 1833 apresentados na obra, que mostram um registo da morte de 249 pessoas em 1832, 281 no ano seguinte e 146 em 1834, na freguesia da Sé, em Faro.
Falta de caixões para tantos mortos
Na freguesia de S. Pedro, também em Faro e durante os mesmos anos, registaram-se 137, 270 e 44 mortes nesses três mesmos anos.
Entre os anos 1855 e 1856 um novo surto de cólera-mórbus chegou ao Algarve, com um número de vítimas muito superior. Desta vez, a doença entrou no Algarve através dos portos marítimos de Tavira, Lagos, Faro, Olhão, Portimão e Silves, atingindo mais uma vez a população pobre e com falta de higiene.
Em Faro, apareceram os primeiros casos em agosto de 1855, numa família de pescadores, e a última vítima registada foi no mês seguinte.
Após o primeiro surto no Algarve de cólera-mórbus, desta vez os conhecimentos já eram superiores e foram adotadas diferentes medidas como o tratamento domiciliário. Nessa altura, o Dr. Lázaro
Doglioni ofereceu 100 mil réis para ajudar as famílias enlutadas, na sua maioria pertencentes a comunidades marítimas.
Lagos, Fuzeta, Tavira, Faro e Portimão foram algumas das localidades algarvias que mais sofreram com este surto, que afetou a região com mais força do que o resto do país.
Segundo a obra, em Faro morreram 2770 pessoas, correspondendo a 31,7% do total nacional. No ano seguinte, a cólera-mórbus regressa, mas desta vez com mais intensidade no sotavento algarvio.
Em 1856 morreram cerca de 8 mil pessoas, principalmente de comunidades marítimas e piscatórias.
E veio a gripe espanhola
Uma das doenças que mais recentemente atingiu o Algarve foi a gripe pneumónica, também conhecida como gripe espanhola, entre 1918 e 1919, inicialmente nos concelhos de Loulé e São Brás de Alportel, mas alastrando-se ao resto da região com muitas vítimas mortais.
Tavira, Olhão, Faro, Portimão, Lagoa, Lagos e Monchique também foram alguns dos concelhos afetados por esta gripe, que chegou posteriormente a Albufeira, Aljezur e Alcoutim.
As crianças até dois anos e adultos até aos 39 anos eram as pessoas mais atingidas por esta epidemia, desconhecida e difícil de combater, devido à falta de médicos, enfermeiros e hospitais.
Nessa altura, surge o então diretor do Conselho Superior de Higiene e diretor-geral de Saúde, Dr. Ricardo Jorge, que mobilizou médicos e obrigou à notificação obrigatória de todos os casos, o isolamento dos infetados e a proibição das migrações de trabalhadores agrícolas e forças militares, segundo uma publicação no período “Voz do Sul”, na época.
As farmácias eram obrigadas a praticar os mesmos preços e alargaram os seus horários de funcionamento, criando-se também comissões de socorro para ajudar os infetados.
Tal como aconteceu este ano com o covid-19, a gripe pneumónica levou ao encerramento de escolas, proibiu feiras e romarias e foram encerrados vários espaços comerciais e industriais por falta de pessoal, já infetado.
Nessa altura, foi também encerrada a estação de Poço Barreto e Alcantarilha, os correios e os telégrafos da região.
A população do interior tinha mais dificuldade em enfrentar a doença devido à falta de recursos médicos e houve dificuldades em enterrar os mortos com dignidade, tendo muitos sido jogados para a terra. Eram embrulhados em serapilheira, uma vez que não havia caixões para tantas vítimas mortais.
Para tentar conter a doença, as ruas eram lavadas com cal. A imprensa alertava para a falta de higiene pública.
Portugal também foi alvo de contágio de tifo exantemático, entre dezembro de 1917 e agosto de 1919, causando 1481 mortes em 9035 infetados. No ano anterior, foi a vez da varíola, cujo número de mortes é desconhecido, mas infetou os portugueses entre junho e dezembro e foi erradicada graças à vacinação.
O vírus da imunodeficiência humana, conhecido como SIDA, é ainda considerado como uma pandemia, com cerca de 0,6% da população mundial infetada, sem cura. A doença das “vacas loucas” também causou vítimas a nível mundial, tal como o H1N1 que em Portugal registou 166 922 casos de gripe A e 122 mortes.