As influências do árabe na língua portuguesa (3)

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Jose Domingos

Retomo o fio da minha narrativa inicial.


Foi no caldo de cultura da minha terra, que inicialmente descrevi, que formatei o espírito, numa idade, em que ele absorve, como uma esponja, toda a envolvência.


Toda a minha vida tem ocorrido longe, tendo deixado de estar em contacto, há mais de sessenta anos, com os termos vernáculos ouvidos na adolescência (muitos deles de ancestral origem árabe), sendo que alguns são verdadeiros fósseis linguísticos, que ali cristalizaram.

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Porém, quando, esporadicamente, lá me desloco, desço do comboio e mergulho naquele micromundo, quase parado no tempo, reconheço-o, de imediato, como meu, como um retorno às origens, assim como aquela como a minha gente e outras as leis culturais, por que me passo a reger, enquanto lá permaneço.


Logo que ponho o pé na gare da Estação de Caminho de Ferro de Messines, lamentavelmente encerrada, notável pela beleza encantatória policroma do rendilhado geométrico dos seus azulejos de inspiração islâmica ‘mudéjar’, os meus ouvidos passam a ser ‘feridos’ por uma familiar sonoridade: a acentuada pronúncia que trouxe comigo, quando sai, há muitos anos, em busca de novas oportunidades de vida.

Uma dessas características, para mim inexplicável, é o súbito aumento tonal agudo, no final de cada frase.


Outra, bem vincada, é a sistemática truncagem das vogais, designadamente nos mais idosos, com menos instrução, assim como a sistemática troca do ‘- o’ final por ‘- e’ mudo, característica curiosamente também presente na fala do general Ramalho Eanes (natural de Alcains, zona interior, no distrito de Castelo Branco).

Socorri-me, para o efeito, de algumas frases respigadas do ‘Dicionário algarvio de termos e dizeres do Algarve’, verdadeiras preciosidades, que tendem a apagar-se no tempo, reunidas numa excelente compilação efectuada por Vítor Madeira:


‘É na sei ‘. (Eu não sei)
‘Q ’ande é que lá va ‘ s ? ‘ (Quando é que lá vais ?)
– ‘É na posse’ (Eu não posso)
‘Temes c’acêfar o trigue’ (Temos de ceifar o trigo)
“É tamém quer ‘ isse” (Eu também quero isso)
“Ah, marafade môce!” (Ah, marafado moço!“)
‘Vames andande p’ra mod’ir más céde’ (Vamos andando para irmos mais cedo); este ‘p’ra mod’ir ’…, traduz-se, mais ou menos, como ‘por causa de irmos …’
‘Moce, na dás uma prá cáxa…’ (Não acertas uma …)
‘Zé, tás tode cagade’ (Zé, estás todo sujo)
‘Adés óme, pr’ónd’ é que vás?’ (Adeus! Para onde é que vais?)
‘Moces, andem todes daí e vames debulhar o trigue’ (Moços, vamos todos daí e vamos debulhar o trigo)
‘O qé q’ria ? O mé óme na tá’ (O que é que queria ? O meu marido não está)
– ‘Ah mon, tá tude bem?’ (Então, moço, está tudo bem?)
‘Eh moce, até parece que tou almariade’ (Eh, moço, até parece que estou tonto)
‘Atã na t’ assentas Jaquim?’ (Então não te sentas, Joaquim?)
‘Béqme qu’ ria parecer… É sabia!’ (Bem me queria parecer … Eu sabia !)
‘Ó Antóine, tu na m’ouves é bradar per ti?’ (Oh António, não me ouves chamar por ti ?); no ‘é bradar’ ocorre a apócope do ‘eu’, que passa a ‘é’.
‘De nôte, tenh’uma cagufa, mas de dia na tenhe’ (De noite, tenho um medo…, mas de dia não tenho.
‘Q ‘andé ser grande, face o q ‘é q ‘rer’ (Quando eu for grande, faço o que eu quiser), de notar a troca da forma verbal do infinitivo pessoal pelo futuro do conjuntivo: ‘ser’ por ‘for’ e ‘q ‘rer’ por ‘quiser’)
‘O Antóine vai sempre dermir a sesta debáxe da árve, despôs do jantar’ (De notar que ‘jantar’ era o almoço actual e tomado ao meio-dia; de referir ainda que ‘sesta’ deve ser entendida como a ‘sexta-hora’, visto que os trabalhos nos campos tinham início às 6 da manhã, sendo que até ao meio-dia – altura em que o calor já apertava e apetecia dormir um pouco – decorriam 6 horas)
‘Carles, da dêxes o fogue s’apagar! Abana isse c’u capache’ (Carlos, não deixes apagar o fogo! Abana isso com o capacho)
‘C’ oras som iste?’ (Que horas são ?)
‘O Marceline é même desgroviade.’ (O Marcelino é mesmo desnorteado)
– ‘Aqui tem a sua desmazia, Ti Maria.’ (Aqui tem o troco do dinheiro, Ti Maria)
‘É fui à praça, despôs vim’embora.’ (Fui à praça, depois, vim-me embora)
‘Eh deb, há munte tempe que já nã te via!’ (Há muito tempo que já não te via!); a partícula ‘deb’ é uma forma sincopada de ‘diabo’.
‘Manel, ósdepôs vem cá’ (Manuel, e depois, vem cá); de notar a curiosa prótese de ‘depois’, que passa a ‘ósdepôs’.
‘É na sê quem foi, más iste chêra-ma’esturre.’ (Não sei quem foi, mas estou desconfiado)
‘Ah moce, atã má que jête?’ (Então porquê ?)
‘O Manel anda a láriar a pevide’ (O Manuel anda a vadiar)
‘O Humberte é mème maline’ (O Humberto é mesmo mau)
‘Manel, atã tu partiste o cope? – Eu? Má que jête?’ (Manuel, então partiste o copo? – Eu ? Eu não fui!)
‘Mechas, que já dexê cair os oves’ (Merda! Já deixei cair os ovos); como dá para ver, ‘mechas’ é um eufemismo de ‘merda’.
‘Miga, passa-mu pão.’ (‘Passa-me o pão’); é tratamento familiar, versão reduzida de amigo ou amiga e dirigido a ambos os géneros.
‘É na dou iste fête!’ (Não consigo fazer isto)
‘A ‘nha mãe é que sabe, n’é a tua!’ (A minha mãe é que sabe, não é a tua)
‘Ó óme, na faças isse!’ (Oh homem, não faças isso!‘)
‘Ontre-dias, passou por aqui o Zeferine’ (O outro dia passou aqui o Zeferino)
‘O mé pai foi s’ embora. Má que jête, mó?’ (‘O meu pai foi-se embora. Mas porquê?’); este ‘mó’ é a abreviatura de ‘moço’ ou ‘môce’, que não têm tradução, sendo apenas partículas enfáticas.
– ‘Que jête o mé cão ter pulgas?’ (Não. O meu cão não tem pulgas)
‘Sai daí, Jaquim, tu na véz que tás-ma patiar u chã tode?’ (Sai daí, Joaquim. Não vês que me estás a sujar o chão todo?)
‘Té dieb, na’te zangues, moce!’ (‘Não te zangues!‘); a partícula ‘Té dieb’ ou ‘Té deb’ apenas enfatizam a frase.
‘Jaquim, já tem avonde de vinhe!’ (Joaquim, já chega de vinho); este ‘avonde’ tem origem no verbo ‘abundar’.
‘Comadre, agora na posse falar ca’meceia, porque tenhe que tender o pão’ (Comadre, agora não posso falar consigo, porque tenho de tender o pão); a expressão ‘ca’meceia’ é um vernáculo local de ‘com você’.

LINGUA PORTUGUESA
Gente da minha terra da ‘velha guarda’, de quando havia tempo para tudo, até para cultivar a amizade…


Aventa-se a hipótese de que a corruptela da designação latina Sinus para a árabe Sines, em que o ‘u’ latino foi modificado para o ‘e’ actual (‘u’ latino, que transitou das palavras latinas para o Português, como ‘o’), seja uma influência remota da língua árabe, na qualidade de língua-superstracto, durante os vários séculos do seu domínio, na Península Ibérica, facto que explicará tal fenómeno linguístico nalguns exemplos vernáculos acima.


A designação Sinus, “baia”, que foi atribuída pelos Romanos, deve-se ao seu “golfo” (ou “ baia”), frente ao qual a cidade se situa.


De notar que os Romanos foram o primeiro povo a fazer da sua “Sinus” um centro portuário e industrial para servir a cidade de Miróbriga, junto a Santiago do Cacém.

Estas evidências da influência da língua árabe, na zona mais meridional do nosso país, explicam, pois, a profunda e continuada herança, no vernáculo actual da minha Messines natal, a partir da ancestral Mussiene, influência que se manteve, praticamente intacta, com poucas intromissões exteriores, até meados do século passado, motivo por que ainda subsiste em tantas expressões.


Porquê até aos anos cinquenta do século XX?


Como é do conhecimento comum, a segunda metade do século anterior marcou, com especial ênfase, mais do que qualquer outra época anterior, o começo das deslocações e migrações das populações para os grandes centros, tendo como consequência, no retorno, o início de uma certa aculturação, devido a influências exógenas, com a ‘contaminação’ de algumas expressões linguísticas vernáculas locais, que se foram perdendo, realidade, a que se junta e em que pesa, igualmente, o aprofundamento da escolarização das últimas décadas.


(continua)

José Domingos

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