Austrália. Testemunhas de Jeová ‘eliminam’ meio século de abusos sexuais

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Max Horley

Narrogin, que deve o seu nome a um termo indígena, está longe de ser uma daquelas cidades da Austrália que todos os estrangeiros sonham conhecer um dia. Esta semana, o nome da terra saltou para as páginas da imprensa internacional por causa de um crime de abuso sexual que envolve três pessoas e a congregação local das Testemunhas de Jeová.

A vítima é apresentada como BCB, uma mulher de 47 anos que foi abusada no final da década de 1980, quando ainda era uma menina. O agressor chamava-se Bill Neill e era um ancião da congregação daquela cidade do sul da Austrália. A chave deste longo segredo é o homem que destruiu o relato das queixas de BCB: Max Horley, um dos líderes da congregação de Narrogin das Testemunhas de Jeová, a quem BCB confiou as suas queixas.

Horley esteve esta semana perante a comissão que investiga crimes de abuso sexual na Austrália e as suas declarações abriram a porta para perguntas que ainda não têm resposta. Porque é que um ancião a quem uma adolescente de 15 anos conta que foi vítima de abuso sexual pede à menina que se cale e não comente nada no interior da célula religiosa? Porque é que um homem com responsabilidades morais numa comunidade religiosa destrói os registos com as queixas dessa adolescente, para evitar que no futuro as mulheres dos outros líderes possam ter conhecimento do que passava? Porque é que esse mesmo homem não comunicou o crime às autoridades?

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Os factos

A Austrália tem 22 milhões de habitantes. A maioria da população que assume ter uma religião é cristã, de várias confissões, embora a laicicidade seja dominante. Narrogin, a cidade onde aconteceu o crime que levantou uma teia que esconde outros casos de abuso de crianças, tem quatro milhões de habitantes.

De acordo com o site da SBS [rádio e televisão], há 68 mil Testemunhas de Jeová no sexto maior país do mundo; estes crentes estão distribuídos por 817 congregações de diferentes núcleos urbanos, que em princípio reportarão a uma estrutura central daquela igreja na Austrália.

Atualmente, estima-se que existam oito milhões de Testemunhas de Jeová em todo o mundo, o que só por si mostra que esta igreja de inspiração cristã é uma comunidade minoritária a nível global.

O triângulo BCB/Horley/Neill revelou que ao longo das últimas seis décadas [desde 1950] as Testemunhas de Jeová na Austrália tomaram conhecimento de 1006 casos de abuso sexual. Nunca reportaram nenhuma destas denúncias às autoridades, procurando sempre resolver [ou não] os crimes no interior da comunidade.

O depoimento de Max Horley na comissão de investigação sobre abusos sexuais permitiu saber que foram destruídos todos os registos para evitar que “caíssem em mãos erradas”, dentro ou fora da comunidade. Acresce dizer que eram os veteranos de cada congregação que tinham o poder arbitrário de decidir o que eram/são mãos erradas, atuando assim à margem da lei.

Funcionamento interno

Ancião é um líder religioso no interior de uma congregação; deverá ser alguém a quem a comunidade reconheça qualidades morais para julgar, aconselhar e prevenir. No caso de BCB, o falhanço deste método foi total. Neill era um ancião e Horley, o homem a quem ela confiou os seus temores, também. O voto de silêncio que lhe foi imposto por Horley fez com BCB carregasse um enorme sentimento de culpa e vergonha durante 32 anos.

Nos últimos anos, tem sido transversal a denúncia de casos de abuso sexual no seio de várias confissões religiosas e instituições de acolhimento de menores. A Igreja Católica não escapou a este drama e só recentemente deu sinais de querer punir os abusadores.

No caso das Testemunhas de Jeová, uma confissão de reduzida dimensão quando comparada com a Igreja Católica, que tem procurado ‘recrutar’ fiéis pelo exemplo dos seus crentes e pela [hoje em desuso] persistência da missionação porta a porta, um crime de abuso sexual seria mais do que suficiente para fazer perder a face de toda uma comunidade.

Bruno Vieira Amaral, autor do ensaio “Aleluia” [editado este ano pela Fundação Francisco Manuel dos Santos], diz que é preciso apurar “quem tinha conhecimento deste e doutros casos de abuso na Austrália: se a congregação local, se a estrutura nacional das Testemunhas de Jeová.

Normalmente, “uma congregação tem três ou quatro anciãos” que de certa forma regulam e administram a vida dos crentes no interior da comunidade local, e a igreja tem uma “estrutura nacional” em cada país, explica Amaral. O suposto era que os anciãos reunissem com a pessoa que cometeu o pecado, e que a procurassem orientar no sentido da expiação desse pecado e da reinserção.

Esta questão é fundamental, porque coloca uma pergunta: os anciãos encaram o abuso sexual de menores como crime ou como pecado? Se o encaram apenas como pecado podem ser tentados a tentar resolver o assunto no interior da congregação, contribuindo assim para que o abusador fique impune perante a lei.

“Há pessoas que são desassociadas das suas congregações”, diz Bruno Vieira Amaral, explicando que desassociado é o termo utilizado para a exclusão de um crente da sua comunidade religiosa por este se ter desviado do padrão moral exigido. “Não é vedada a entrada nos locais de culto” ao desassociado, mas “os outros crentes não podem falar com ele; as próprias famílias são aconselhadas a não falar” também.

O desassociado torna-se assim um ‘pária’ da sua comunidade, que o exclui por ser pecador mas não aciona os mecanismos necessários para que venha a ser punido por crimes cometidos. A noção de pecado sobrepõe-se à de delito.

O desassociado pode ser readmitido na congregação “se mostrar arrependimento genuíno”.

É provável que o falecido abusador tenha sido repreendido pelos seus pares. No entanto, é preciso saber porque é que os outros “anciãos de Narrogin não denunciaram o crime de Bill Neill às autoridades?”. E é esta a pergunta para a qual Bruno Vieira Amaral quer uma resposta.

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