AVARIAS: A história de uma ovelha que fazia contas de cabeça

Há uma nova tradução das “Memórias” (editora “Guerra & Paz”) de Raymond Aron. Tenho uma antiga edição, penso que da mesma “Guerra & Paz” (segundo parece, apresentava alguns problemas; devia ser motor de arranque) e é um calhamaço do caraças (são quase oitocentas páginas), que fui lendo de forma olímpica, percorrendo os assuntos que me interessavam na altura, andando para trás e para a frente, sem nunca o ter lido na íntegra; talvez seja o meu “Ulisses” de estimação. Aron foi um jornalista e intelectual francês que nasceu no início do século passado e morreu em 1983. A sua memória (muito pouca vida pessoal, muitas ideias e factos, ou fatos, como se escreve até em documentos oficiais) é um repositório de alguns dos mais importantes acontecimentos do século vinte, visto pelo olhar conservador do francês. Por lá passam os totalitarismos (o estalinismo e o funcionamento do estado soviético), a guerra do Vietname, os acontecimentos de Maio de 68 e os sucessivos altos e baixos da política francesa, que à época tinha repercussões na nossa vida, que, talvez a americana hoje não tenha. No meio desse turbilhão de acontecimentos Aron vai tecendo a ideia (e opiniões que é isso que faz do livro o que é) de um homem que situado à direita, vê os acontecimentos de uma forma quase suave, distendida (talvez obedecendo a uma das fórmulas essenciais da – sua – natureza humana) e profundamente liberal, mas sem nunca renunciar à crença do primado de uma certa musculatura das instituições: daí que se comprometa quase sempre com a tão odiada (mas tão seguida mesmo por quem a diz odiar…) “realpolitik”, quando interessava ao ocidente aplacar a influência comunista. Outro dos pontos de interesse do volume reside na natureza premonitória das suas opiniões sobre a natureza policial, concentracionária, repressiva (e criminosa em demasiadas situações) do regime soviético, na altura incensado por tudo quanto era intelectual de esquerda; premonitória por que Aron viu o que outros, sessenta anos depois, ainda não conseguiram descortinar, como se dá o caso dos nossos camaradas do Partido Comunista Português. Na altura foi acusado de falar com o poder de uma forma, talvez perigosamente próxima, por que isto de respeitar escrupulosamente distâncias e ética tem que se lhe diga. No entanto pergunto-me se um destes intelectuais terá cabimento na nossa vidinha de hoje, existindo um problema de perda de importância da política, que só os – próprios – políticos não reconhecem. Para mais, estes intelectuais que influenciam decisões, fazem-no cada vez menos pela justeza das suas ideias e mais por interesses actuais e futuros. Os comentadores (não confundir com intelectuais, mas mesmo assim arrisco a comparação) que hoje enxameiam as nossas televisões, têm dificuldade em serem levados a sério, porque muitos reconhecem neles apenas opiniões para safar A ou B (amigos e amigos dos amigos), ou para se safarem (tradução livre de “arranjar um bom tacho”) no presente e principalmente no futuro. As convicções fortes ficam guardadas para as discussões de futebol. Até quinta.

PS – digam lá se com outro título liam este texto?

Fernando Proença

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