Bullying: Crianças e jovens gritam em silêncio

ouvir notícia

Foram eles os mais afetados pela pandemia. O isolamento social, a instabilidade e a imprevisibilidade dos tempos, o aumento da violência familiar e o excesso de horas em frente aos ecrãs agravaram as vulnerabilidades dos jovens. Quisemos retratar esta realidade a nível regional e fomos investigar junto de escolas, organizações, psicólogos e alunos, com o objetivo de perceber o que se está a fazer para evitar o sofrimento físico e psicológico dos jovens de hoje. Os adultos do amanhã

“Se antes da pandemia me faziam mal na escola, quando fui para casa a minha vida tornou-se ainda pior”. O testemunho de Pedro (nome fictício), vítima de bullying e cyberbullying entre os 13 e os 14 anos (agora com 15), tem tanto de corajoso, por ter aceitado partilhar a sua experiência com o JA, como de contraditório e explicamos porquê.

“Se antes da pandemia me faziam mal na escola, quando fui para casa a minha vida tornou-se ainda pior”. O testemunho de Pedro (nome fictício), vítima de bullying e cyberbullying entre os 13 e os 14 anos (agora com 15), tem tanto de corajoso, por ter aceitado partilhar a sua experiência com o JA, como de contraditório e explicamos porquê.

- Publicidade -


O bullying, enquanto fenómeno social, alimenta-se da convivência juvenil e acontece presencialmente. Falar de bullying é falar de atos de violência física e/ou psicológica sobre uma criança ou jovem praticados reiteradamente. Ora, se o Pedro (como tantos outros jovens) foi para casa quando o País entrou em confinamento, estaria à partida mais protegido dos ataques dos agressores. Mas não foi isso que aconteceu…


Tal como nos explicou Inês Andrade, presidente da No Bully Portugal, uma associação sem fins lucrativos, fundada em 2016 para “prevenir, parar e resolver” o (cyber)bullying, “a casa dos jovens deixou de ser um porto seguro porque basta um telemóvel para que a violência continue a acontecer”, o que nos leva ao conceito do cyberbullying, que por sua vez pressupõe a violência exercida através de meios digitais (telemóvel, computador) e que pode acontecer 24 horas por dia.


No ano de 2019 (antes da pandemia), estiveram em acompanhamento pela Comissão de Proteção de Crianças e Jovens no Algarve (CPCJ) 19 situações de bullying. Entre 2020 e 2021, a CPCJ Algarve acompanhou, formalmente, 48 crianças que assumiram comportamentos desviantes relacionados com o bullying (incluindo o cyberbullying). Uma vez que o Relatório Anual da Atividade das CPCJ em 2021 só estará concluído em maio de 2022, deixamos a nota de que os números relativos ao ano de 2021 são dados preliminares, facultados pela cortesia da Equipa Técnica Regional (ETR) da CPCJ. Para além disso, sabe-se que muitos são os casos que ficam por denunciar e que levam as vítimas a sofrer em silêncio. Já a PSP, através do Programa Escola Segura (PES) do Comando Distrital de Faro, dá conta de um total de 108 ocorrências registadas em âmbito escolar no ano letivo 2020/2021:

67 criminais e 41 não criminais.
A história de Pedro, acabou por ter um final feliz e sem crimes pelo meio, o que não invalidou as “feridas” psicológicas que lhe causaram e a mudança forçada de escola. “Essa acabou por ser a melhor decisão que os meus pais tomaram”, avalia o adolescente. Saída que Pedro foi adiando por se achar “cobarde”. Só mais tarde percebeu que “começar de novo”, romper com a escola e “sair das redes sociais” eram mesmo as melhores opções.

Maioria das vítimas de bullying sofre em silêncio

Bullying no Algarve tem a maior taxa de incidência do País


Em 2019, o Algarve foi a segunda região, a nível nacional, com maior taxa de incidência de crianças e jovens com comunicações à CPCJ (uma média de 4,49), ficando apenas atrás de Beja. Já no ano de 2020, o Algarve foi a zona do País com maior taxa de incidência de crianças e jovens com comunicações à CPCJ (uma média de 4,71), acima de áreas metropolitanas como Lisboa ou Porto.

Os centros urbanos de Faro, Loulé, Portimão e Olhão reúnem o maior número casos de bullying na região, comparativamente a Monchique ou Aljezur, onde o número é menor. Contudo, em 2020, segundo o Relatório Anual de Avaliação da Atividade das CPCJ Vila do Bispo foi o concelho algarvio com maior taxa de incidência de crianças acompanhadas pela CPCJ. Os especialistas que ouvimos confirmam que aos rapazes é atribuído um comportamento mais físico e direto que pode culminar na agressão física. Já as raparigas exercem um bullying mais relacional, levando-as a excluir ou a diminuir colegas do sexo feminino, por norma.

As chamadas “bocas” são comuns entre jovens e é muitas vezes a partir daí que florescem casos dramáticos de violência psicológica. É a partir de questões relacionadas com o namoro, a aparência ou o vestuário que tudo começa. As provocações e brigas com motivações xenófobas são também cada vez mais comuns, quer nas escolas, quer na esfera digital que estes jovens partilham. O medo, a baixa autoestima, a retração social, o desenvolvimento de distúrbios alimentares e a ansiedade são alguns dos indícios de quem é perseguido. Muitos acabam por evitar ir à escola.

Escolas e entidades apostam na prevenção


Em Portimão, Vítor Coutinho, subdiretor do Agrupamento de Escolas Manuel Teixeira Gomes, garantiu ao JA que a problemática do bullying está, por aquelas bandas, “permanentemente debaixo de olho”. A organização de ações de sensibilização para os alunos (online ou presenciais), promovidas pela Escola Segura e a presença de técnicos especializados do município ou de entidades parceiras “são recorrentes ao longo do ano”, num Agrupamento que “não esconde ou camufla os problemas dos alunos”. Nas escolas de Portimão, tal como noutras autarquias da região, a disciplina de “Cidadania e Desenvolvimento” faz parte do programa curricular a partir do 2.º Ciclo. Sendo este um Agrupamento multicultural, uma das temáticas mais trabalhadas nas aulas intitula-se “Gentes e Culturas”, com vista a cultivar a empatia, a aceitação e a “acolher e aceitar o próximo e as suas diferenças”. Para Vítor Coutinho, nestas situações, o mais importante é “envolver, responsabilizar e fazer com que as escolas e os encarregados de educação sejam parte da solução”.


Em Faro, falámos com Ana Sofia Lopes, psicóloga clínica e técnica de intervenção local no âmbito da saúde mental no Agrupamento de Escolas João de Deus. A intervenção é mais incisiva junto do 2.º e 3.º Ciclos e do Ensino Secundário. Para a psicóloga, a maior aposta do Agrupamento está na prevenção, sensibilização e intervenção dos comportamentos desviantes, pelo que todas as escolas têm investido em ações e projetos que promovem comportamentos positivos, não só na escola, como na sociedade. “Conversar nos corredores e fomentar a proximidade entre psicólogos, professores, funcionários, diretores e alunos é também fundamental” na sua perspetiva.


No secundário existe um grupo de trabalho focado na educação para a cidadania – Grupo de Cidadania – que tanto organiza ciclos de cinema para consciencializar os alunos, como debates ou campanhas de autoconfiança para mitigar os efeitos do bullying. Exemplo dessas campanhas é o projeto “Embaixadores da Autoestima”, que preencheu os corredores e o chão desta Escola com frases motivadoras e positivas que acompanham os alunos diariamente. Numa escola onde o bullying “é levado muito a sério”, há um grupo de teatro que promove “desabafos entre professores e alunos”, momento em que surgem por vezes, segundo a técnica, testemunhos e pedidos de ajuda. O Agrupamento dispõe ainda de uma educadora para os Direitos Humanos que colabora com o Grupo de Cidadania. Os serviços de psicologia e orientação estão sempre disponíveis para toda a comunidade escolar, mas também para os encarregados de educação e existe um e-mail de emergência, disponível para facilitar os pedidos de ajuda, (tanto para as vítimas como para os observadores).


No Algarve, as forças policiais (PSP e GNR) têm um papel preventivo e proativo e levam a cabo, durante todo o ano, iniciativas relacionadas sobre a temática. Promovem ações de sensibilização focadas em temas relacionados com a “Violência”, “Internet Segura”, “Cidadania e Não-Discriminação” e “Direitos Humanos e das Crianças” nos quais são especificamente tratadas as diversas formas de violência. As ações são desenvolvidas desde a idade pré-escolar até ao 3º Ciclo. No ano letivo 2020/2021, o PES realizou 306 ações grupais de sensibilização nas escolas algarvias e 257 de contacto individual.


Quando as escolas e as autoridades não conseguem dar resposta às situações mais graves, os casos são delegados à CPCJ. O trabalho de intervenção técnica dentro da Comissão passa, numa primeira instância, por perceber se os pais “têm competências parentais para lidar com as situações” ou se têm “noção de que os filhos são vítimas ou agressores”. NA CPCJ, o foco incide sobre as práticas e competências parentais no que toca à promoção e proteção de crianças e jovens, pois acreditam que “se há crianças com comportamentos desviantes significa que não foram devidamente acompanhadas pelos seus progenitores ou por quem cuida, ou seja, a parentalidade não está acautelada”, defende Fátima Gonçalves, do Núcleo da CPCJ de Faro. Perante estas situações, o papel da comissão é “educar, intervir de forma positiva e alterar comportamentos’. Trabalhamos no sentido de as situações serem cada vez menos e menos complexas”, assevera. Para que isto aconteça é imperativo que exista uma “comunicação articulada entre as escolas, as forças policiais e a CPCJ, o que tem acontecido pois esta Comissão está muito atenta e as intervenções são quase imediatas”. O trabalho em rede que existe no Algarve “dá segurança aos pais”, conclui.

Projeto algarvio combate bullying em todo o país


Tânia Paias, psicóloga clínica, especialista em Neuropsicologia e Mestre em Saúde Escolar é a fundadora e diretora do Portal Bullying, um centro de ajuda online, criado em 2010 com o intuito de incentivar os jovens a falar sobre as suas experiências, a denunciar, a dizer não e a trabalhar comportamentos de risco junto dos alunos algarvios. Este projeto trabalha em parceria com escolas, municípios e associações de pais em todo o Algarve (e um pouco por todo o País). O foco do projeto está na prevenção de qualquer tipo de violência logo a partir do pré-escolar e do 1.º Ciclo (prevenção primária), alargando a intervenção a outras faixas etárias. Parceira do concelho de Lagoa há seis anos, Tânia aposta na formação de professores e funcionários para a problemática do bullying, organiza ações interativas junto das turmas e implementou em várias escolas a iniciativa “voluntários das amizades”, jovens escolhidos nos vários agrupamentos para assegurar um ambiente saudável, empático e de entreajuda entre alunos. “Ensinar as crianças e os jovens a pensar e a sentir as emoções” é uma das missões do trabalho de Tânia que, com base na sua experiência, afirma que “os nossos jovens estão em sofrimento e precisamos de os ajudar… O medo é um dos maiores vírus que existem.”

O papel das redes sociais


“As redes sociais não são a causa do bullying ou do cyberbullying ,mas sim um meio que os jovens podem utilizar para o que quiserem”, esclarece Inês Andrade. O facto de numa fração de segundo todos poderem ver uma fotografia ou um vídeo partilhado sem consentimento “mexe muito com a dinâmica individual dos miúdos e com a sua estabilidade e segurança”, segundo Tânia Paias, que nestes casos acredita que a solução pode estar na educação ao nível da literacia digital, mas também da literacia emocional. Educar os pais “para conhecerem melhor as plataformas em que os seus filhos circulam” torna-se também essencial nestes casos, de acordo com a fundadora do Portal Bullying, que perante a utilização das redes sociais defende o lema “Educar em vez de proibir”. As redes sociais veiculam a omnipresença dos agressores na vida das vítimas, que durante a pandemia acabaram por se sentir “asfixiados e sem saída”, tal como nos descreveu Pedro.

Maus-tratos a menores


Em 2019, a ETR da CPCJ Algarve sinalizou e acompanhou 130 crianças e jovens vítimas de maus-tratos físicos, psíquicos ou de abusos sexuais na região. Durante a pandemia, entre 2020 e 2021, esta Equipa já acompanhou 233 casos de maus-tratos com 124 situações em 2020 e 109 em 2021. Nos últimos anos os números baixaram, o que segundo a ETR poderá ser justificado pelo facto de a pandemia ter reduzido as comunicações das entidades de primeira linha (escolas, organismos de saúde, forças policiais, Segurança Social, ONG ‘s, IPSS, etc.) à CPCJ. Para Tânia Paias, os maus-tratos a menores são “o reflexo da instabilidade emocional das pessoas” porque desde que começou a pandemia, seja por motivos financeiros ou de saúde, “estão mais em sofrimento”.


A CPCJ confirma que, no caso dos maus-tratos, a falta de bens essenciais motivam estas ocorrências, em contextos em que estamos perante famílias (e pessoas) sem competências parentais. Neste sentido, o Núcleo Hospitalar de Apoio a Crianças e Jovens em Risco (NHACJR) do Hospital de Faro ultrapassou a centena de casos de maus-tratos no ano de 2021 (75% de casos por negligência, 11% por maus-tratos físicos e 10% por abuso ou suspeita de abuso sexual), o que traduz o agravar das vulnerabilidade em contextos familiares disfuncionais. O NHACJR, enquanto entidade de saúde, constitui a primeira linha de atuação. A segunda é a CPCJ e o último recurso são os tribunais e o Ministério Público.


Pelos testemunhos que apurámos, percebe-se que a conciliação familiar entre o ensino à distância, o teletrabalho ou a perda de rendimentos potenciaram situações de “burnout” parental. O isolamento das crianças, quer da família alargada, quer da escola ou de outras entidades protetoras, criou situações de grave fragilidade e invisibilidade, como retrata o Relatório Anual de Avaliação da Atividade das CPCJ 2020.

Pandemia silenciou as vítimas e os pedidos de ajuda


Fazendo um paralelismo entre os diagnósticos médicos que ficaram para trás durante a pandemia, depois de ouvirmos os agentes regionais em matéria do bullying e dos maus-tratos, percebemos que de igual forma a pandemia veio esconder situações de violência e os números refletem isso mesmo. As denúncias reduziram, as vítimas ficaram mais longe de quem as ajuda e os agressores, através das redes sociais “tiveram a vida mais facilitada”, nas palavras de Inês Andrade. Para Tânia Paias a pandemia trouxe uma série de dificuldades adicionais aos jovens: a dificuldade em compreender e aceitar o outro, receio do próximo, insegurança, revolta, ansiedade e o afastamento físico e emocional. A pandemia gerou um processo contranatura. Nas palavras de Ana, a falta de afetos e de contactos ativou as carências ao mais alto nível, o que acaba por justificar o aumento destes tipos de violência e a dificuldade em denunciar ou pedir ajuda.

Automutilação como um escape para a dor


Por consequência do bullying (e das marcas deixadas nas vítimas), têm surgido cada vez mais casos de automutilação entre adolescentes. A automutilação consiste na realização intencional de comportamentos de agressão ao próprio corpo e é considerada uma forma silenciosa de lidar com a dor emocional com a qual são confrontados estes jovens. Para os especialistas, existem vários tipos de comportamentos de automutilação. Cortes com recurso a lâminas, facas ou objetos afiados, beliscões, esmurrar objectos ou superfícies, queimaduras na pele com cigarros, fósforos ou velas, arrancar o cabelo ou tentar partir ossos do próprio corpo, são alguns dos exemplos (aterradores) que podem ser desencadeados pela vivência deste tipo de experiências traumáticas.

Gestão emocional é fundamental para “sarar” as marcas


“O bullying deixa marcas e os nossos jovens não estão preparados para gerir isto”, afirma a Ana Sofia Lopes, referindo-se às situações de intensidade emocional que o bullying crava na memória das vítimas com episódios impossíveis de esquecer. “Temos jovens em sofrimento”, adverte. Para esta especialista, corremos o risco de termos adultos mais inseguros, vulneráveis, com menos vontade de interagir, mais ansiosos, menos empáticos e tolerantes, mais desconfiados, mais isolados, caso os pedidos de ajuda não sejam feitos a tempo. Mas para a psicóloga, o importante é “o hoje, o agora, atuar de imediato, ajudar, ouvir, desconstruir pensamentos, ensinar os jovens a gerir o seu mundo interno, treinar a autorregulação emocional” e no fundo, com a ajuda de todos (pais, amigos, professores, entidades, especialistas), “aliviar as emoções negativas”.


Ana Sofia Lopes e Tânia Paias partilham a opinião de que a disciplina de “Gestão de Emoções” seria tão importante quanto o ensino do Português ou da Matemática, uma vez que o desenvolvimento de competências socioemocionais tem muito impacto no seu sucesso educativo e académico. Agora e no futuro, a prevenção, o desenvolvimento de competências pessoais e sociais, a capacitação para a empatia, resiliência, compaixão e respeito serão a chave para formar os adultos de amanhã.

Joana Pinheiro Rodrigues

Assine o Jornal do Algarve e aceda a conteúdos exclusivos para assinantes

- Publicidade -
spot_imgspot_img

Deixe um comentário

+Notícias

Exclusivos

Deixe um comentário

Por favor digite o seu comentário!
Por favor, digite o seu nome

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.