Cartas à senhora ministra da Saúde

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Faro, junho 2019

Exma Senhora Ministra da Saúde

Queira aceitar os meus melhores cumprimentos
Sou médico com já há largos anos de carreira hospitalar completa.
Tenho 73 anos e, com alguma pena o digo, que já estou reformado há mais de dez anos do “nosso” SNS. Não vou estender o meu curriculum até porque hoje concluo que não tem qualquer interesse salvo para algum hospital privado que rejeito.

Com todo o respeito explícito que sempre optei pela dedicação exclusiva como “especialista” de medicina Interna e daí a razão da reforma “precoce”. Felizmente ainda estou vivo e a trabalhar numa IPSS que fundei sem qualquer tostão do erário público até hoje do que creio poder orgulhar-me embora continue a não entender qual a razão. Há médicos assim e pode crer que não são poucos … assim os considerassem e soubessem aproveitar.

Tenho bem noção que quando aceitou esse pesado cargo e nas actuais circunstâncias o assumiu com necessária coragem, e, permita-me especular um pouco… numa perspectiva a todos os títulos elogiosos de se juntar aqueles que queriam ainda poder salvar o SNS ou o melhor ainda possível numa perspetiva do “testamento que Arnaut e o meu saudoso amigo e colega João” nos legaram. E as suas primeiras entrevistas fizeram-me acreditar que ia nesse sentido. Estávamos na altura em que o PS acertava (ou não?) algo de muito positivo que ia de acordo ao que Arnaut e Semedo haviam deixado esperançados que alguém tivesse a coragem de não só os ler e entender mas assumir o compromisso de levar à prática. E, acredite, julguei que era a pessoa necessária não só por ser jovem mas por me ter convencido que tinha uma perspetiva não superficial de todo o processo evolutivo do SNS.

As reviravoltas que o partido do governo deu e voltou a dar entretanto os porquês e o que adiante se virá… confesso que me ultrapassam mau grado ter naturalmente as minhas interpretações.
Creia que entendo as suas dificuldades na posição em que ficou. Também já passei por algo semelhante pese embora a um nível menos ou muito menos significativo.

A minha experiência diz-me que só há três alternativas:

  1. Renegar (ou fazer de conta) o que julgávamos que íamos conseguir fazer… esquecer e passar à frente e… etc e tal.
  2. Ponderar a demissão e… caminhar nesse sentido contra tudo e contra todos… o que sei ser muito difícil… e assumi-la como única e coerente posição.
  3. Tentar dourar a pílula a todos os momentos com os subterfúgios mais estapafúrdios… o que, infelizmente parece já estar a acontecer!
    Apesar de as circunstâncias serem muito diferentes continuo a crer ter sido a atitude certa ter a seu tempo optado pela segunda e não estou nada arrependido e muito de bem comigo!!!
    A finalizar, creia, com toda a sinceridade, que não gostaria de forma alguma vê-la como bode expiatório último deste maremoto que vem destruindo pedra a pedra a maior maravilha da nossa democracia.
    Queira aceitar os protestos da minha admiração e simpatia.
    Eurico Dias Gomes

Teria a esperança de, a seu tempo, ter tido alguma resposta mesmo que circunstancial. Mas, como quase sempre, nada… o que me entristece e continua a pesar. Lamentei e lamento…

Faro fevereiro 2020

Exma Senhora Ministra da Saúde

Em meados do ano passado tentei fazer-lhe chegar uma simples missiva que ainda poderá ponderar caso haja para tal arquivos e paciência.

Infelizmente estes seis últimos meses encarregaram-se de provar qual o estado de degradação a que o SNS havia chegado. Havia há largo tempo quem o soubesse e sentisse todos os dias e por todos os meios o tentasse denunciar. Não foi possível e quer V Exa saber porquê? Porque os que o percebiam e sabiam da poda foram durante os últimos largos anos sistematicamente afastados de lugares de decisão e chefia… foi mais importante colocar em lugares de destaque e pagar favores a “personalidades” dos dois principais partidos… ora de um, ora de outro… ou do mesmo que entretanto mudava. Inventaram a palavra gestor com toda a propriedade para os hospitais… de saúde sabiam tanto como eu de lagares de azeite. Os administradores hospitalares que para tal formados foram arrumados e os diretores clínicos e subsequentemente os de serviço passaram a ter tanto poder de decisão como, com toda e admiração e respeito, as empregadas de limpeza.

Quem não quer vislumbrar que isto não foi obra do acaso não percebe nada no que diz respeito a evolução do SNS.
Podem dizer que tudo foi fruto da evolução natural.
Eu, pelo contrário, creio que foi obra de toda uma política devidamente urdida e com finalidades bem definidas em direção a algo que ainda não referi.
— O advento do privado.

Não tenhamos dúvidas que tudo isto era necessário para que o privado florescesse… e de que forma!
Claro que não passava do empurrão necessário… o essencial estava como sempre no “dinheirame”! E, aí, não há Pai.
E assim, caríssima, chegamos a esta desgraça… que alguns médicos meus amigos hoje ainda mas com todo um conhecimento com mais de 50 anos previram comigo aquando da reforma já lá vão vários largos anos.
Lamento dizê-lo hoje que o SNS tal como o conhecemos e que preencheu toda a nossa vida de médicos… acabou definitivamente!!!

“Mudam-se os tempo… mudam-se as vontades”… naturalmente.!!!!!
Mas, creia, temos pena… Porque muito muitíssimo mais se poderia ter feito… e continuado… e havia gente da saúde disposta a isso com sacrifícios tal como já vinha fazendo.

Senhora Ministra: – para nós médicos e outra profissionais de saúde creio não haver dúvidas que foi o (des)poder político que tudo fez para boicotar o verdadeiro SNS. Não tenhamos dúvidas sobre isso. Mais… que o fez numa perspetiva de permitir ou “abrir campo” à outra medicina lucrativa chamada, mal, “medicicina privada”
Porque as despesas com a saúde são enormes e… o Estado tem que poupar? Sem maior dúvida!!!
Que não há nada a fazer? Estamos sem alternativa?
Então, meus caros, assumam-nos e procuremos outras formas… Mas quais?
Assumam-nas… não é preciso mais nenhum curso de gestão em Harvard!!!

Senhora Ministra
A seu tempo tive o cuidado, graças a minha experiência, de tentar alertá-la para o “drama” a que chegou o SNS… com o devido respeito.
Creio que tem a consciência de que não chega meter milhões e contratar milhares para resolver o problema.

Se tiver tempo ou se esta missiva lhe chegar às mãos – do que tenho as maiores dúvidas – tomaria a liberdade de a aconselhar em primeiro lugar a constituir uma equipa de que fizesse parte significativa por exemplo o Prof Saklarides, por razões que me dispenso de elaborar, com coragem para substituir tudo que soe a “gestorocracia” por administradores hospitalares cursados de cima a baixo. Na minha opinião as ARS são verdadeiros sorvedouros e que nestas situações não têm qualquer justificação… geridas como são. Farão sentido numa perspetiva outra regional e devidamente fundamentadas orientadas por profissionais competentes das diversas áreas da saúde e não só da clínica geral mas nunca por mais uma vez pseudo gestores e nunca sobrepondo-se a estrutura hospitalar.

Por outras palavras, deram a volta a tudo.
Inclusive as imprescindíveis carreiras e concursos sem o que desde os fins do século dezanove se percebeu que só assim os hospitais funcionavam minimamente. Chamava-se e bem (!) porque a única com justificação – hierarquia técnica de competências – que obstaculizava um outro hierarquizar independente de concursos públicos e de avaliação pelos seus pares.

Convenhamos que é fácil, muito mais fácil, arrumar tudo isto com meia dúzia de gestores que de saúde nada sabem nem nunca quiseram saber e atirar lá para cima com alguns milhões de euros .
Com toda a simpatia me permito (quem sou eu?) sugerir formar uma equipa subjugada a uma hierarquia técnica de competências e que tenha conhecimento mínimo da evolução de todo o processo (repito inc hospitalar) dos últimos largos anos porque aí é onde reside o conhecimento… apesar de tudo!
Com todo o respeito, se assim não for, caminharemos rapidamente como infelizmente já hoje acontece claramente para uma saúde para ricos e outra para pobres particularmente em idosos e doentes graves… e que ninguém se atreva a desmentir!!!!

Senhora Ministra da Saúde
Com toda a sinceridade e porque nunca acreditei em milagres compreendo que já nunca será possível reverter aquilo que foi o SNS e naturalmente que entendo que tudo ou quase tudo é anterior e muito anterior a todo a sua intervenção em todo este processo… que lhe caiu em cima.

Queira aceitar os protestos da minha simpatia e desejando-lhe toda a força e maiores êxitos

Eurico Gomes
Médico Chefe de Serviço em Medicina Interna Presidente e diretor clínico da AEDMADA (IPSS para a saúde)

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