Centro de reprodução de Silves já libertou cerca de uma centena de linces

ouvir notícia

Muito se fala deles, mas poucos são os que tiveram oportunidade de observar um dos felinos mais misteriosos, raros e belos do planeta. Foi no Centro Nacional de Reprodução de Lince Ibérico (CNRLI), em Silves, que acompanhámos o processo de preparação de um jovem lince para o momento-chave da sua vida. Para Silves, assim batizado, e mais três (linces) (Paprika, Senegal e Sismo), fevereiro foi o mês da sua entrega à natureza

Esta foi uma semana especial para o JA. Assistimos na primeira pessoa à preparação de dois linces-ibéricos para o momento da sua introdução na natureza. Silves (macho) e Paprika (fêmea), nascidos e criados no CNRLI, foram libertados no dia 22 de fevereiro de 2022 na zona de Serpa, momento que não foi acompanhado pelos nossos repórteres por se tratarem de terrenos privados, onde os proprietários optaram por não permitir a divulgação do momento.

Felizmente, dois dias depois, acompanhámos a primeira solta de linces-ibéricos, nascidos em cativeiro, em território algarvio. Apesar de Sismo e Senegal, macho e fêmea, respetivamente, terem nascido no Centro de Reprodução de El Acebuche (Andaluzia, Espanha), foram libertados Giões, concelho de Alcoutim.

A que assistiram mais de uma centena de pessoas entre as quais o secretário de Estado da Conservação da Natureza, Paulo Catarino, Nuno Banza, presidente do Instituto de Conservação da Natureza e Florestas (ICNF), João Alves, técnico superior do ICNF e responsável pelo projeto de reintrodução do lince (LIFE Lynx Connect), diversas individualidades e alunos dos agrupamentos escolares do concelho.

Crianças das escolas de Alcoutim e Osvaldo Gonçalves libertam “Sismo”

Dias especiais para o CNRLI e para todos os centros ibéricos

O entusiasmo, a curiosidade e a alegria estavam estampadas no rostos das equipas (o JA incluído). Rodrigo Serra, veterinário e diretor do CNRLI envergava um brilho especial no olhar quando nos contou que “todos os dias que saem animais para projetos de introdução na natureza são dias muito felizes”. Apesar de ter a sorte de fazer um “trabalho entusiasmante”, com uma grande missão associada e do gozo que estes momentos em particular proporcionam às equipas, confessa que nos dias de libertação “a preocupação” é outra das emoções dominantes nas equipas, que ficam a pensar “o que lhes irá acontecer a seguir” e justifica “eles são os nossos meninos, seguimo-los pelas câmaras desde que nasceram, mas o mais importante é que terão a oportunidade de viver uma vida livre e é isso que nos move”.

O trabalho desenvolvido pelo CNRLI, que abriu portas em 2009, tem como principal missão a manutenção da genética desta espécie e a sua reprodução, em cativeiro, com vista ao restabelecimento das populações de linces na Península Ibérica, explicou ao JA Rodrigo Serra. O CNRLI alberga, monitoriza e reproduz os exemplares de lince-ibérico que permitirão assegurar a continuidade do processo de introdução no seu habitat natural. O CNRLI já libertou cerca de uma centena de animais desde que o processo de reprodução começou, no ano de 2010. Hoje, existem 16 cercados com casais linces, prontos para reproduzir, embora o número de crias nascidas tenha sofrido uma pequena redução nos últimos anos, o que pode estar relacionado com a longevidade das fêmeas do CRNLI.

Preparação para o dia D

O trabalho no CNRLI começa assim que as pequenas (e tão desejadas) crias nascem. Nesse momento, são recolhidas amostras de sangue para garantir que estão bem, procedimento que vai ainda permitir traçar o perfil genético de cada animal. A partir dos três meses, é-lhes colocado um microchip e até aos 11 meses, altura em que já podem ser libertados, os linces passam por um treino específico que os prepara para o dia em que serão libertados na natureza. Este treino é fundamental, pois tal como esclarece Rodrigo Serra, é durante estes meses cruciais que os linces adquirem competências sociais entre si e desenvolvem a capacidade de caçar e de defesa, indispensáveis na vida selvagem. Durante o treino, os técnicos garantem ainda que os linces ganham um comportamento de recusa perante humanos, que os fará, na prática, prolongar o seu tempo de vida, que em meio selvagem não ultrapassa os 10 anos. Já em cativeiro, estes animais podem viver até aos 15 anos.

Uma vez aptos do ponto de vista comportamental e clínico, tal como aconteceu no caso dos juvenis Silves e Paprika (libertados no dia 22 de fevereiro em Serpa) e de Sismo e Senegal (libertados dois dias depois em Alcoutim), os lince estão prontos para enfrentar a Mãe-Natureza e todos os desafios que os esperam. Por norma, é entre os meses de janeiro e fevereiro que são feitas as capturas, de forma a que os técnicos, através da anestesia, verifiquem que os animais não vão transportar doenças para o campo e que não serão (mais) um fator de risco para as populações que estão na natureza. A colocação dos colares de seguimento (com sinal de rádio e GPS) é o último passo. Estes rastreadores irão acompanhá-los na sua jornada selvagem, por vezes solitária, ainda que o olhar atento dos técnicos seja uma espécie de “anjo da guarda” para estes admiráveis seres. Em função do perfil genético, e depois de libertados, o lince decide se permanece nas redondezas do local da solta ou se parte em busca de outros territórios, sendo estes animais capazes de fazer milhares de quilómetros durante o seu tempo de vida.

- Publicidade -

Quem melhor conhece os linces do CNRLI são os etólogos, que estão 24 horas à frente das câmaras a ver tudo o que os linces fazem. Contudo, é importante sublinhar que nenhum técnico tem contacto direto com os animais (à exceção do momento em que são colocadas as coleiras, ou quando se vai verificar se as crias estão de boa saúde). Rodrigo Serra esclarece que estes “são bichos selvagens que não podem ter contacto com humanos, apesar de não verem o Homem como fonte de alimento. Até porque em duas ou três gerações, caso se estimulasse o contacto com os humanos, isso iria traduzir-se na perda de diversidade genética e na perda de reportório comportamental, o que iria influenciar negativamente o futuro das populações selvagens”. João Alves, entende a curiosidade e o misticismo em torno da espécie, mas acrescenta que “quanto mais pessoas entrarem no CNRLI, a probabilidade de poderem transportar agentes patogénicos é muito grande e daí este espaço não ser visitável. O CNRLI não é um zoo”.

Os desafios que a espécie enfrenta

O processo de extinção do lince-ibérico começou em meados do século XX. A perseguição direta pelos humanos e a destruição do habitat contribuíram para essa realidade, mas o que realmente dizimou as populações de linces nos dois países foram duas pandemias de doenças virais que afetaram o coelho-bravo, a principal fonte de alimento desta espécie. O lince ficou sem presa e a falta de alimento “foi o grande golpe” para a queda das populações, no ponto de vista de Rodrigo Serra. Contudo, também o furtivismo e os atropelamentos continuam a ser grandes ameaças para a espécie.

O lince-ibérico é o mamífero conhecido com menor diversidade genética. Essa falta de diversidade, segundo os especialistas com quem falámos, traduz-se na frequência de doenças genéticas que atingem esta espécie. A epilepsia juvenil ou da criptorquidia (quando os testículos não descem ou a ausência de um ou dos dois testículos na bolsa testicular) são doenças que comprometem a reprodução e continuidade da espécie.

Para inverter a grande consanguinidade da espécie que existia na transição do século XIX, que era sinónimo de doenças fatais e deficiências nas crias e que comprometiam, uma vez mais, a continuidade da espécie, os quatro centros ibéricos de reprodução de linces asseguram o intercâmbio dos animais, com o objetivo de aumentar a sua diversidade genética, conservar e fazer reproduzir aqueles que apresentam uma genética mais rara. Para o responsável pelo projeto LIFE Lynxconnect, outro dos grandes objetivos dos CNRLI é diversificar a população o mais possível e “introduzir os animais com a genérica certa, nos sítios certos e onde faz falta”.

O lince-ibérico fez parte da Lista Vermelha da União Internacional para a Conservação da Natureza e dos Recursos Naturais (UICN) como espécie “criticamente em perigo” até 2015. Hoje, graças ao trabalho conjunto dos quatro centros ibéricos de reprodução e conservação da espécie (três em Espanha e o CNRLI, em Portugal), o lince é considerado uma espécie “em perigo”. Um dos objetivos do CNRLI para os próximos anos é que o lince-ibérico passe a categoria de espécie “vulnerável”, adiantou Rodrigo Serra. João Alves acredita que os linces-ibéricos possam sair do estatuto de espécie ameaçada entre 2035 e 2040, altura em que estarão numa situação de conservação favorável, isto caso se consiga alcançar um objetivo: a existência de 750 fêmeas reprodutoras em território ibérico, que garantirão a sustentabilidade da espécie.

O ponto de viragem

Na Península Ibérica, até ao anos 60, os linces eram considerados uma espécie nociva e até uma praga, isto porque a destruição do habitat, a perseguição das populações rurais e doenças nos coelhos levavam a que estes animais se alimentassem de espécies domésticas como as galinhas ou o gado. Felizmente, a partir da década de 70, a perceção da opinião pública mudou e os censos, articulados entre Portugal e Espanha, confirmaram que esta era uma espécie ameaçada, não existindo dados de populações residentes na transição do século na Península Ibérica. As pressões e movimentações das ONG ‘s, ambientalistas e de entidades como a União Internacional para a Conservação da Natureza uniram-se no início do século XXI para recomendar a Portugal e Espanha medidas concretas de conservação que impedissem a extinção da espécie.

No âmbito da XIX Cimeira Luso Espanhola (2003), os responsáveis pela tutela do Ambiente e Conservação da Natureza de Portugal e de Espanha acordaram que o lince-ibérico seria uma das espécies alvo da colaboração em termos de conservação da natureza. Nesse âmbito, foi assinado, em 2004, um Memorando de Entendimento entre os dois países para a cooperação sobre o lince-ibérico, processo coordenado pelo ICNF e pela Direção Geral para a Biodiversidade do Ministério do Meio Ambiente (Espanha). A partir daí foram assinados outros protocolos até que meses antes de vir para Silves a primeira fêmea – Azahar -, emprestada por Espanha, foi assinado um último protocolo sobre a cedência de exemplares de Espanha para Portugal, com vista à reprodução.

O papel dos caçadores e das populações locais

O trabalho de sensibilização com caçadores e populações locais começou a ser feito ainda antes da primeira libertação, em Mértola, que aconteceu em 2014. Na ótica de João Alves, “um dos aspetos que tem que ser avaliado é a aceitação por parte das populações que residem ou que têm atividades económicas nos territórios que nós identificamos terem características próprias para acolher o lince”. Nesse sentido, reconhece que os gestores das zonas de caça “são e têm sido uma peça fundamental pela gestão ativa e efetiva desses territórios para favorecer a prosperidade do coelho-bravo, pois o lince está onde está a presa”. O técnico do ICNF, que acompanha a vida do CNRLI desde o primeiro dia, afirma que os caçadores e os locais reconhecem o efeito positivo que a presença do lince tem. Para além de desempenharem um papel ligado à limpeza sanitária do território (por se alimentarem de coelhos doentes), estes animais repelem outros pequenos predadores que são conhecidos pelos prejuízos que causam aos agricultores, como o caso das raposas, dos gatos bravos ou das genetas.

A espécie prospera no Vale do Guadiana

A monitorização de 2021 da população de linces-ibéricos, reintroduzida no Vale do

Guadiana (no âmbito do projeto LIFE Iberlince) desde 2014, revelou recentemente que há 70 novas crias de um total de 24 fêmeas reprodutoras. São mais 10 nascimentos e mais seis fêmeas reprodutoras comparativamente ao ano anterior. Sete anos após o início do processo de introdução, são agora referenciados cerca de 200 linces distribuídos por um vasto território que se estende entre os concelhos de Serpa e de Tavira (e mais de mil na Península Ibérica). Um dos aspetos mais relevantes de 2021 foi a consolidação da população em território algarvio, onde agora residem cerca de 22 exemplares e onde ocorreram nove nascimentos, existindo ainda um amplo território que poderá vir a ser ocupado pela espécie. Estas áreas estão agora a ser consolidadas, ampliadas e interligadas no âmbito do projeto LIFE Lynxconnect, liderado pela Centro de Cria de La Olivilla (CAGPyDS) da Junta de Andaluzia, iniciado em setembro de 2020 e que, em Portugal, congrega como parceiros, para além do ICNF, a Comunidade Intermunicipal do Baixo Alentejo (CIMBAL) e a Infraestruturas de Portugal.

A Águas do Algarve é a empresa responsável pelo Projeto Ambiental da Herdade das Santinhas, onde se localiza o CRNLI. O contrato de comodato entre a Águas do Algarve e ICNF é válido até 2025, ano a partir do qual terão de ser renegociadas as condições de permanência do CNRLI em Silves, que todos acreditam ser renovável. De acordo com João Alves, o gasto anual do Centro está balizado entre 800 mil e um milhão de euros, valor que inclui as despesas com o pessoal, alimentação dos linces, gerência, conservação do espaço, medicamentos e utensílios veterinários, entre outras necessidades, asseguradas pelo ICNF e pelos fundos europeus. A Águas do Algarve suporta o projeto com o montante de 300 mil euros ao ano.

O futuro da espécie

“Apesar dos projetos e dos números que temos conseguido, não estamos livres de perigo, de num futuro relativamente próximo haver um colapso das populações, caso o controlo da genética não seja assegurado. Ainda há muito trabalho pela frente”, alerta o diretor do CNRLI.

Durante a solta de Sismo e Senegal, Nuno Banza anunciou que o objetivo do projeto ibérico de recuperação do lince-ibérico é chegar ao “reequilíbrio do ecossistema” para “deixar de haver uma necessidade de reintrodução permanente”, com a criação de uma “comunidade de animais que seja sustentável e viável do ponto de vista genético”. Quando isso for possível, explicou, o projeto passará a “apenas recuperar animais que possam ser magoados em atropelamentos ou armadilhas ou que possam ter algum problema de saúde”, passando os centros “a ter mais trabalho de recuperação e apoio à existência da comunidade do que propriamente de reintroduções”. O diretor do ICNF sabe qual é o caminho a seguir e refere que a meta será “ter uma comunidade saudável e sustentável que possa ir sendo alargada e que ocupe a verdadeira função do lince, que acaba por caçar os coelhos mais frágeis, mais doentes, e acaba por ter uma função de regulação ecológica do sistema”, acrescentou.

O sucesso da introdução do lince, verificado ao longo destes anos, resulta de um esforço ibérico em que associações de caçadores, agricultores, proprietários, ONGs, autarquias e entidades governamentais se uniram para resgatar e reverter a tendência de evolução de uma espécie que caminhava para a extinção. Apesar de todos os esforços, é de lamentar que o lince-ibérico continue a ser uma das espécies mais ameaçadas do mundo e o carnívoro em maior perigo na Europa.

Foi com entusiasmo que diversas individualidades acompanharam a operação de libertação de Sismo e Senegal, entre os quais Osvaldo Gonçalves, presidente da Câmara de Alcoutim, João Fernandes, presidente da Região de Turismo do Algarve, Mário Dias, diretor regional Adjunto de Agricultura e Pescas do Algarve, entidades e associações ligadas ao ambiente e conservação da natureza, entidades públicas, técnicos, guardas da natureza, alunos do Agrupamento de Escolas de Alcoutim, professores e os proprietários dos terrenos onde a solta se realizou. Simbolicamente, foram quatro crianças do Agrupamento de Escolas de Alcoutim que abriram as portas das duas gaiolas onde aguardavam os linces.

Joana Pinheiro Rodrigues

Deixe um comentário

Tem uma Dica?

Contamos consigo para investigar e noticiar

- Publicidade-
- Publicidade-
- Publicidade-

Autarca de Tavira garante que Plano de mobilidade tem “as melhores soluções”

O estudo do Plano de Mobilidade Sustentável da cidade de Tavira, encomendado em 2019...

Extrema-direita é primeira força política na região

A vitória do Chega no distrito de Faro, com 27,19% dos votos, foi a...

Água lançada ao mar pelo Alqueva daria para encher barragens algarvias

A Empresa de Desenvolvimento e Infraestruturas do Alqueva (EDIA), com sede em Beja, anunciava...

As expetativas dos algarvios para as eleições legislativas

As perguntas Quais são as expetativas que tem para estas eleições legislativas? Tem acompanhado os debates?...

Lagoa inicia substituição de mais uma conduta adutora

O município de Lagoa iniciou a obra de substituição de uma das principais condutas...

PJ detém dois jovens por homicídio tentado em Faro

A Diretoria do Sul da Polícia Judiciária (PJ) deteve, esta quarta-feira, dia 27 de...

Especialistas vão começar a desenhar recomendações para a ‘long covid’

Os especialistas que se vão reunir na primeira conferência internacional sobre ‘long-covid’ pretendem começar...

Silves recebe visita do comissário do Plano Nacional das Artes

O município de Silves recebeu, no passado dia 6 de março, a visita oficial...

Deixe um comentário

Por favor digite o seu comentário!
Por favor, digite o seu nome

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.