Comem uns os figos…

Pedro Constantino nunca tinha consultado um médico, não queria nada com essa gente. E não lhe pedissem razões para a aversão, porque não as dava. Não gostava, e pronto, não havia lugar a mais explicações. Pergunta-se a um cão porque não gosta do enxofre? A um gato porque embirra com a água? A um polícia porque marra nos ciganos? Ao rabo porque odeia a injecção? Não, e não se pergunta. São antagonismos estúpidos, avessos à lógica das coisas, juízos sem nexo, mas que, ganhando força de pecha crónica, não há como deles escapar. Pedro era um homem já entradote, não se sabia de clínico que mal lhe tivesse feito, mas encasquetara naquela e havia que ter isso em conta se doença o acometesse.


Num dia pardo de Inverno, o tio Constantino (era assim que o nomeavam) levantou-se pela manhã com queixas de que lhe doía a cabeça, dor que nunca sentira. Tia Maria das Dores, a mulher, nunca o ouvira lastimar-se fosse de que maleita fosse. E salvo as gripes, resolvidas com mezinhas em que avultava a aguardente milagreira, se outro mal se lhe apegou ficou incógnito e nem mesmo ele o soube.


Tinha estado na América, em Providence, trabalhando como pescador, e nem nessa terra postiça de gangsters e de cabrões – era assim mesmo sim senhor! – faltou ao mar algum dia por moléstia que se lhe pegasse. De modo que a companheira começou a inquietar-se ainda mais porque lhe via no rosto contracções de sofrimento, ali como que deslocadas, em feição incompatível com a dor, e porque o pobre do homem clamava que aquela porra estava cada vez mais forte. Decidida como era a Tia Maria das Dores rejeitou fatalidades ou ajudas de santos, sempre fortuitas: ligou para o 112 e quando ele deu por ela tinha uma ambulância à porta para o levar ao hospital. Saiba-se que o tio Constantino nem sequer recalcitrou, assustado como estava com a brusca macacoa, tão fora do seu costume. Um para-médico do veículo, sem a contenção que se impunha alvitrou poder ser um aneurisma, pelo que pediu ao enfermo que ficasse sossegadinho, não falasse e não mexesse a cabeça. Não mexer a cachimónia tudo bem, era ordem levezinha, obedecia-se sem esforço. A parte do não falar é que era mais bicuda. Mas enfim, ordens são ordens. O diabo foi que o tio Constantino, mal a dor amainou um pouco, na viagem, lavrou a ordenação de que, se tinha que ir a um médico, que o levassem ao Dr. Pais, que tinha conhecido na América e era gente de confiança, exortação que repetiu com vários não se esqueçam, ahn! até que o despejaram na Urgência do hospital.


Carlos Pais era urologista, estivera nos Estados Unidos no início da carreira, Pedro Constantino fora-lhe certamente apresentado em evento da comunidade lusa como comprovinciano, era um tipo afável e caloroso que encantou o então obscuro pescador, mas que muito dificilmente deste conservaria alguma recordação. E por disposição do acaso, especialista em desencontros, encontrava-se de folga nesse dia em que a doença o vergou.


A triagem confirmou o prognóstico do tripulante da ambulância: era de facto um aneurisma. Mas, por fortuna, localizava-se na zona fronto-parietal, à esquerda, em local onde era possível operar sem grande risco. Com a dor mitigada por analgésicos, mas meio aturdido com as TACs e encefalografias a que foi submetido, ainda assim tio Constantino ia perguntando a todo o homem de bata que dele se acercasse, se era o Dr. Pais. E face às respostas negativas, já na enfermaria onde seria internado tentava subornar a enfermeira sussurrando-lhe: encontre-me lá o Dr. Pais, menina, que eu pago bem.


Foi operado de urgência. Tendo-se apercebido de que o doente não conheceria bem o médico cuja assistência exigia, face à inquirição difusa, a desenvolta enfermeira sugeriu que se lhe dissesse para ficar descansado porque era o Dr. Pais quem o iria operar, como forma de amansar a agitação. E o “Dr. Pais” – um colega que se prontificou à batota com o nome – aviou obra asseada, logrando uma cirurgia eficiente que em pouco tempo reconduziu o velho Pedro Constantino ao seu quotidiano de lidas e regabofes e às recordações da Amerca.


Tio Constantino era um arraçado. Nos papéis de uma alfândega estado-unidense nunca o designariam como branco, caucasiano na nomenclatura ianque. Levaria um hispânico, ou um árabe, consoante desse na cabeça de um funcionário gordo, sobranceiro e ignorante, do império do artifício. E também quanto aos preceitos sociais era duplo o seu procedimento: muito faz-de-conta na religião e no negócio, prodigalidade sem fundo comc a família e camaradagem. Uma prescrição de bom costume tinha ele inscrita na mente, firme como tábua de lei: a covinda, a oferenda com que o povo agradecia ou demandava a intervenção de um graúdo em questão emaranhada. E meditou que se alguém merecia essa fineza era o Dr. Carlos Pais, pelo asseio do seu trabalho, deixando-lhe como que novinha em folha uma mioleira avariada que podia tê-lo levado para a aldeia dos pés juntos se não têm acudido a tempo.


Preparou, pois, uma bolsa com um litrinho de medronho, um bom punhado de figos cheios e um tassalho de muxama, ligou para o hospital para se assegurar de datas em que o clínico lá estivesse e postou-se na sala de espera que lhe indicaram, aguardando. Quer no bloco operatório quer na enfermaria sempre o doutor lhe aparecera de máscara cirúrgica e óculos, pelo que não seria fácil reconhecê-lo. Mas a coisa simplificou-se porque o médico apareceu à porta e, tendo visto um rosto vagamente familiar, inquiriu-o, confirmando que era quem o procurava, e fê-lo entrar num gabinete de consultas onde se sentaram.


Carlos Pais nem precisou de perguntar ao consulente o que o trazia, sendo certo que ninguém o tinha informado da alicantina com o seu nome. O tio Constantino desatou a língua (que ninguém facilmente amarraria) e lá lhe foi perguntando se ainda se lembrava dele, se alguma vez voltara a Providence, se o paizinho ainda era vivo, e outras mais trivialidades a que o pobre médico ia respondendo com simpatia mas de modo maquinal. O pior foi quando o fabiano lhe disse ao que ia tirando de dentro da bolsa as iguarias que eram uma pequena lembrança para o senhor doutor, por tão bem o ter tratado no diabo da operação.

Não fazendo a mais pequena ideia de que é que se trataria Carlos Pais relacionou o assunto com alguma intervenção da sua especialidade, agradeceu a oferta, debitou duas ou três lérias amáveis e despediu-o com forte tanganhada e a peremptória abonação de que a sua próstata está aí fina para as iscas.


No caminho para casa, confuso, tio Constantino perguntava à tia Dores: mas olha lá, o gajo também me operou ao cu?

Rogério Silva

Deixe um comentário

Exclusivos

Veículos TVDE proibidos de circular na baixa de Albufeira

Paolo Funassi, coordenador da concelhia do partido ADN - Alternativa Democrática Nacional, de Albufeira,...

Algarve comemora em grande os 50 anos do 25 de abril

Para assinalar esta data, os concelhos algarvios prepararam uma programação muito diversificada, destacando-se exposições,...

Professor Horta Correia é referência internacional em Urbanismo e História de Arte

Pedro Pires, técnico superior na Câmara Municipal de Castro Marim e membro do Centro...

O legado do jornal regional que vai além fronteiras

No sábado passado, dia 30 de março, o JORNAL do ALGARVE comemorou o seu...

Deixe um comentário

Por favor digite o seu comentário!
Por favor, digite o seu nome

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.