Como Boone manipulou a dívida portuguesa (e lucrou)

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Peter Boone, o influente economista, não terá qualquer parentesco com Pat Boone, o famoso cantor (e já falaremos dele no final deste artigo), mas também nos pode ter dado música quando, em 2010, publicou uma série de artigos anunciando o colapso da dívida pública portuguesa. Não porque estivesse errado, como saberíamos em 2011. Mas porque lucrou com a queda que ele próprio, ao anunciar, pode ter ajudado a provocar. E isso é um crime de mercado: manipulação. Um crime de que ele agora é suspeito. Peter Boone foi constituído arguido pelo Ministério Público em Portugal.

A informação foi revelada esta quinta-feira à noite em comunicado da Procuradoria-Geral da Distrital de Lisboa: “O Ministério Público requereu o julgamento de um arguido de nacionalidade canadiana e residente em Londres, pela prática do crime de manipulação de mercado, tendo por objeto a desvalorização das obrigações do tesouro portuguesas”.

“Trata-se de acusação por crime com contornos inéditos”, declara a Procuradoria, que atenta “contra as regras da livre concorrência e a confiança do mercado”.

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Boone era administrador de uma consultora de investimento e de gestão de carteiras ligada a um fundo de investimento especulativo (“hedge fund”). E “tinha interesse na desvalorização da dívida portuguesa e na subida dos yields”. “Com esta finalidade”, diz a Procuradoria, Peter Boone “publicou vários artigos em blogs, sendo um deles associado a um jornal de referência mundial, no período compreendido entre Fevereiro e Abril de 2010.” Ora, numa negociação da dívida soberana portuguesa, esse fundo obteve “uma mais-valia de cerca de 819.099,82 euros através da desvalorização dos títulos de tesouro respectivos.”

Manipulação, dizem eles

O artigo em causa, um entre vários, foi publicado originalmente no blog Economix, do “New York Times”, e teve ecos em diversos jornais no mundo, incluindo em Portugal. “O próximo problema global: Portugal” foi publicado por Peter Boone, investigador da London School of Economics, e Simon Johnson, antigo economista-chefe do Fundo Monetário Internacional.

Comparando Portugal com a Grécia, que estava então à beira do seu primeiro resgate, o artigo postulava: “Ambos os países estão, economicamente, à beira da falência, e cada um parece muito mais arriscado do que parecia a Argentina em 2001, quando entrou em incumprimento”. E prenunciava: “Os políticos portugueses nada mais podem fazer do que esperar que a situação piore e, nessa altura, exigir o seu pacote de resgate também”.

Um ano depois, em abril de 2011, Portugal pediria de facto um resgate financeiro. Mas a questão agora em apreço não é se este artigo, entre outros, estava certo. Mas se um dos seus autores o usou para lucrar.

“Os artigos de opinião tiveram impacto nas yields da dívida pública portuguesa”, diz a Procuradoria Geral Portuguesa, “influenciaram os investidores, até porque o arguido era um académico prestigiado, doutorado em economia pela universidade de Harvard e os artigos foram publicados em contexto de grande instabilidade financeira, de receio de contágio com a dívida grega, estando os mercados em situação de elevada susceptibilidade.”

Como recorda hoje o Negócios, “logo após a publicação do artigo, a taxa de juro das obrigações portuguesas a 10 anos iniciou uma subida vertiginosa. Passou de 4,395% para um máximo de 6,285%, a 7 de Maio”.

Naquela altura, o artigo teve grande impacto e, lembra ainda o Negócios, o então ministro das Finanças, Fernando Teixeira dos Santos, criticou o artigo em comunicado: “Num mundo de expressão livre também se podem escrever disparates sem fundamentação sólida, reveladores de ignorância quanto às diferenças existentes entre os países da zona Euro”.

Mas Teixeira dos Santos não foi o único a movimentar-se. A CMVM topou uma venda a descoberta feita por aquele fundo e participou o caso ao Ministério Público.

Como se ganha dinheiro?

Uma venda a descoberto (“short selling”) permite ganhar dinheiro com a desvalorização de ativos financeiros. Neste caso, com obrigações. A prática, legal, é uma forma de diluição de risco, mas é com frequência alvo de especulações.

Simplificando, numa venda a descoberto, o investidor A pede emprestado ao investidor B um título cotado por exemplo por €100, ficando de devolver-lhe o título alguns dias depois em troca de uma comissão, de por exemplo €1. O investidor A vende esse título em mercado por €100. Apostando na desvalorização desse título, dias depois o investidor A compra o título em mercado por, por exemplo, €90 e devolve-o ao investidor B. E pronto, a transação está concluída: o Investidor A ganhou €9 (a diferença entre o preço de venda e o de compra, menos a comissão) e o investidor B não só manteve o título original como ganhou €1 (a comissão).

Este tipo de transações acontece todos os dias, e torna-se lucrativa em mercados ou em ativos que estão a desvalorizar. Só que, no caso de Peter Boone, a suspeita é de que, com os seus próprios artigos, o economista tenha provocado a queda do título em causa: obrigações do Tesouro portuguesas.

Tutti Frutti

A notícia sobre a constituição do arguido está em vários jornais portugueses desta sexta-feira. Peter Boone volta pois a ser citado, evocando o nome do famoso cantor americano citado no início deste texto. “Womp-bomp-a-loom-op-a-womp-bam-boom” é a tradução de uma batida de bateria que Little Richard inventou, e que faz refrão na famosa música “Tutti Frutti”, dos anos 50. A música foi cantada por vários cantores, como o próprio Little Richard, Elvis Presley e Pat Boone. Numa das rimas, a música fala de uma rapariga chamada Sue, “que sabe bem o que fazer”. Em inglês, Sue não é apenas um nome próprio feminino, é também o verbo processar. É o que Peter Boone agora enfrenta, um processo judicial. Esta é uma história de especulação, que pode ter tido repercussões sobre a dívida de um país inteiro, Portugal. E que agora pode avançar para os tribunais. “Womp-bomp-a-loom-op-a-womp-bam-boom”.

Pedro Santos Guerreiro (Rede Expresso)

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