Cristóvão de Mendonça e os 500 anos da expedição à Ilha do Ouro

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Não podemos deixar terminar o presente ano de 2021 sem antes fazermos referência a uma expedição a partir da qual se têm vindo a construir várias teorias muito pouco consensuais entre a comunidade científico-académica. Referimo-nos, desde logo, à célebre expedição à Ilha do Ouro (frequentemente identificada com a Austrália) comandada pelo navegador Cristóvão de Mendonça em 1521, ou seja, há 500 anos. De facto, desde o séc. XIX que vários investigadores nacionais e estrangeiros têm vindo a atribuir a descoberta da Austrália aos portugueses, baseando-se na interpretação de fontes manuscritas, cartográficas, arqueológicas e antropológicas, sendo a última destas polémicas teorias da autoria do jornalista Peter Trickett. Porém, e independentemente das teorias em torno das navegações secretas e das interpretações sempre discutíveis que podemos fazer a partir da leitura do registo arqueológico e das fontes cartográficas, o que realmente nos dizem as crónicas sobre a expedição de Cristóvão de Mendonça à Ilha do Ouro?

Brasão de armas dos Mendonças in Livro do Armeiro-Mor, de João do Cró (1509). A.N.T.T., Casa Real, Cartório da Nobreza, liv. 19, f. 59v

Ora, de acordo com o cronista João de Barros, foi em Abril de 1519 que D. Manuel enviou para a Índia uma armada composta por 14 naus e comandada por Jorge de Albuquerque, onde seguia “Christovão de Mendoça filho de Diogo de Mendoça Alcaide mór de Mourão” (Da Ásia – Década III, Pt I, III, Cap. IX). Esta armada, que apenas chegou ao destino em 1520 por motivo de invernada em Moçambique, levava ordens do rei para que o governador Diogo Lopes de Sequeira escolhesse alguém da sua confiança para ir à descoberta da Ilha do Ouro, incumbência que acabou por recair sobre Cristóvão de Mendonça (Ob. Cit, Pt I, IV, Cap. III). A documentação conhecida mostra-nos que Cristóvão se encontrava em Goa, em Janeiro de 1521, e que zarpou de Cochim em 4 de Maio de 1521 acompanhado por Jorge de Brito, que ia para as Molucas, onde deveria construir uma fortaleza e interceptar Fernão de Magalhães. Se seguirmos a Relação dos navios que servem na Índia (1522 Maio 11), apercebemo-nos de que a armada comandada por Mendonça e destinada a descobrir a Ilha do Ouro era constituída por quatro navios: o navio São Cristóvão, em que o próprio viajava; a caravela Rosário, comandada por Pedro Eanes Francês; o bergantim Santo António, comandado por Francisco Poles; e um parau comandado pelo Gonçalo Homem.

Esta armada terá chegado à Ilha de Samatra por volta de Junho. De facto, a primeira referência à expedição de Cristóvão de Mendonça aparece aquando da sua passagem pelo porto de Pedir, onde encontrou Rafael Catanho, que então regressava de Achém, no extremo noroeste da ilha de Samatra. Cristóvão de Mendonça rumou então a Pacém, onde se deveria reabastecer de mantimentos para dar continuidade à expedição à Ilha do Ouro. Porém, ao chegar a este ponto da narrativa, diz-nos João de Barros que “o tempo não era da monção pera onde cada hum havia de ir, principalmente a de Christovão de Mendoça, que era já passada” (Ob. Cit, Pt I,V, Cap. III). A acrescentar ao facto de o navegador ter perdido os ventos de monção, acresce que o capitão de Malaca, Jorge de Albuquerque, se encontrava em Pacém a construir uma fortaleza destinada a proteger uma feitoria, cujo principal objectivo consistia na recolha de pimenta que se produzia na região. Foi nesse sentido que Jorge de Albuquerque determinou que todos os capitães que se encontravam em Pacém ali permanecessem em “favor daquela fortaleza em quanto ella não estava em estado pera se poder defender” (Ob. Cit. Pt I, V, Cap. III). Vemos, deste modo, que a expedição de Cristóvão De Mendonça rumo à Ilha do Ouro foi interrompida em função da necessidade que os portugueses sentiram em se fortificarem naquele ponto da ilha de Samatra. Aliás, é o próprio cronista a referir que a presença de Cristóvão e dos outros capitães foi providencial para que a fortaleza se pudesse construir, já que os adversários os atacavam de forma sistemática.

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Capa da separata Cristóvão de Mendonça, navegador no Oriente e capitão de Ormuz – um desconhecido comendador de Arenilha, de Fernando Pessanha

Finalmente, terminada a empreitada, Cristóvão de Mendonça voltou a partir para Malaca, onde já se encontrava em finais de 1521, e de onde a caravela Santa Maria do Rosário recebeu mantimentos, em 10 de Dezembro, para poder seguir para Pacém, enquanto a nau São Cristóvão apenas os recebeu em 10 de Janeiro de 1522, para depois seguir para Ormuz. Quer isto dizer que Cristóvão de Mendonça não terá tido tempo suficiente para chegar à Ilha do Ouro e regressar nesse ano de 1521.

Resumidamente, não encontramos elementos nas Décadas da Ásia que nos permitam afirmar que este navegador português terá prosseguido viagem para o sul de Samatra no ano de 1521 e encontrado a mítica Ilha do Ouro. Ainda assim, têm sido vários os historiadores, como Armando Cortesão, a defenderem não haver motivo para se duvidar de que Cristóvão terá seguido com a exploração de que fora incumbido no ano seguinte, aproveitando a monção do princípio de 1522. Note-se que o próprio Luís de Albuquerque, ainda que avesso a esta teoria, não deixa de estranhar o facto de as Décadas da Ásia não referirem quais os serviços especiais prestados por Mendonça que justifiquem a sua nomeação para a rentável capitania de Ormuz. Sabe-se agora que, após o seu regresso ao reino, Mendonça não foi só premiado com esta apetecível capitania, como foi igualmente agraciado com rendas, mercês e uma honrosa comenda da Ordem de Cristo: a vila de Arenilha, na foz do Guadiana. É caso para dizer que a problemática em torno das navegações de Cristóvão de Mendonça continua a levantar muitas dúvidas e poucas certezas… Para eventuais interessados no tema recomenda-se a leitura da separata “Cristóvão de Mendonça, navegador no Oriente e capitão de Ormuz – um desconhecido comendador de Arenilha”, originalmente publicado no 2.º volume da e-Strategica – Revista da Associação Ibérica de História Militar.

Fernando Pessanha

*Historiador

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