Crónica do tempo que passa, aquém e além da Emergência Covid19

Escrevo sobre o tempo que passa. Não o tempo que passou, e que retorna, nem o tempo que advém e tarda em chegar. Mas no súbito intervalo, causado pela atual experiência do confinamento por que passamos, neste estado de emergência.

Este tempo que agora passa, começou antes desse intervalo de uma vida suspensa e confinada, do medo da exposição ao contágio do outro, do estranho. A vida, como a escrita e a leitura desta crónica perdurará para além da Emergência.

São boas e más notícias, que não cessam de não se escrever. O que se inscreve, apaga esse passar indelével do tempo. Por vezes, apenas os números se registam, numa espécie de contagem mórbida, onde só contam os números grandes ou díspares. Números de mortos, número de novos infetados, número de recuperados.

São esparsos os sinais, que nos indicam uma saída, uma direção. Um impasse, implica uma perceção, um vislumbre. Mas não há ainda luz ao fundo do túnel, sem que a marcha inexorável do tempo, o comboio do tempo nos ameace trucidar de um lado ou do outro da via única ou da passagem estreita. A paragem desse trem, não é possível, nem que dure para sempre. Sabemos que uma paragem por demasiado tempo, poderia ser igualmente perigosa, numa espécie de paralisia mortal ou de suspensão indefinida dos sinais vitais.

A dificuldade em lidar com situações catastróficas resulta num primeiro momento do impacto do evento intempestivo que desencadeia uma certa estupefação, que nos leva a duvidar daquilo que está a acontecer, por que aparentemente não devia acontecer e depois tal como as crianças pensamos: e porque ninguém nos avisou disto?

As notícias do vírus potencialmente mortal começaram a chegar de longe, mas pensamos primeiramente, isto deveria ser coisa que afetaria só asiáticos, ou quanto muito aqueles que têm hábitos alimentares estranhos. Depois soube-se que alguns viajantes poderiam ter transportado o vírus para outras paragens, e que alguns turistas endinheirados estavam retidos em cruzeiros. Coisa que não dizia respeito em quem não embarca nessas viagens luxuosas por zonas exóticas.

O estigma que as doenças contagiosas transportam de infetado para suscetível, foi passando de grupo étnico, transmitindo o vírus do medo para outras regiões e comunidades, progressivamente mais próximas, reativando fronteiras e zonas de exclusão e confinamento. Quando demos conta, dentro das nossas fronteiras aparentemente seguras da fortaleza Europa, os sistemas de saúde de países como a Itália e a Espanha, ameaçavam colapsar. Quando os nossos próximos começaram a correr o risco de contágio, sentimos que o perigo era real. Não apenas o perigo da doença, mas o risco social e político que estava subjacente.

Ao nível do discurso, o que imperou numa primeira fase foi a declaração de guerra ao vírus. Como se este fosse um inimigo identificável e que pudesse unir a comunidade humana. Mas como a guerra dividiria em dois campos os partidários de diferentes causas, esta retórica foi abandonada, em favor de um estabelecer de um estado das coisas, global, caracterizado pelo tempo da exceção.

No nosso país, como em grande parte do mundo foi declarado o estado de emergência, que na prática representa uma forma moderada de Estado de Exceção em que alguns direitos constitucionais estão restringidos. No entanto como foi assinalado na altura, muitas das medidas que decorreram do estado de exceção, tinham já sido adotadas antes de tal imposição. A expectativa de que dentro de alguns dias seja levantado o estado de emergência, não significa que a crise sanitária tenha terminado. Significará apenas que formalmente essa figura constitucional da exceção já não se considera necessária, porque de algum modo já tornou a norma.

Vivemos tempos excecionais, pelo que se torna plausível a ocorrência de fenómenos estranhos. A aceleração que a vida contemporânea impunha como norma, está agora sujeita a uma travagem brusca de ritmo e alguma reflexão se torna imperiosa, no tempo que passa: o que queremos e para onde queremos ir enquanto sujeitos e comunidades?

Descobriremos, aqui e agora uma comunidade humana com um certo grau de maturidade que desconhecíamos?

Precisamos, no entanto, de estar alerta, não apenas para os riscos para saúde individual e coletiva que o vírus veio por a nu, como também para o modo como gerimos as nossas vidas, quer na dimensão da subjetividade humana, quer no quotidiano das decisões e opções com implicações globais. O confinamento, veio trazer a possibilidade de um tempo interior, e da abertura para uma ecologia de espírito, no relacionamento connosco próprios e os outros. O vírus, veio trazer-nos uma aguda perceção da precaridade da vida e da necessidade de cuidar, dela. Da vida de cada um e de todos, que é preciosa.

A vida é um tempo que passa, e agora sabemos que a notícia do fim do tempo chega sempre antes do fim.

Jorge Gravanita

Psicólogo e Psicanalista

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