Da senzala ao bairro social

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Quinze dias depois do assassínio de um homem negro com quatro tiros à queima-roupa, disparados por alguém que reiteradamente já o tinha insultado com frases de cariz racista, a calçada enche-se de gente clamando que Portugal não é um país racista.


Muito menos gente, diga-se, do que aquela que em várias cidades saiu para a rua a condenar o crime de ódio racial. Não dizendo que Portugal é racista, mas reafirmando – como se fosse preciso e não bastassem os tiros e os factos (os violentos, os sociais e os outros) – que há racismo em Portugal.

Haver gente racista em Portugal, no sentido mais violento do conceito, não torna Portugal um país racista. Mas se alargarmos a noção para lá da violência física, oral, ou apenas conceptual dos seus atores, este país, como muitos outros países, pode-se considerar racista.


Um país racista não é um país onde a generalidade da população branca anda aos tiros aos negros (ou vice-versa), nem sequer um país onde os imigrantes com diferentes cores de pele são expulsos, ou apenas maltratados, ou simplesmente têm a vida dificultada.


Um país racista é um país onde a ascensão social não chega a certos estratos sociais em função da cor da pele. Onde os avós pretos, os pais pretos, os netos pretos e depois os bisnetos passaram gerações a limpar as cozinhas dos brancos, as casas dos brancos, as piscinas dos brancos, os escritórios dos brancos. Como antes, ainda escravos, já tinham limpado a Casa Grande, tarefa obrigatória para os filhos da Senzala.


Quase toda uma sociedade branca evoluiu, dos pais emigrantes, ou trolhas, ou camionistas, ou empregados de escritório, ou pequenos comerciantes, até aos filhos licenciados, engenheiros, médicos, enfermeiros. Os negros, salvo raras exceções, foram ficando. Os filhos dos pretos, tal como seus pais, continuam a levantar-se às cinco para começar às seis a limpar os escritórios dos brancos, que entram às nove, dez horas.


À parte os raros que logram chegar ao “elevador social” do futebol, do atletismo, ou das forças de segurança, faltam aos negros fatores de nivelação social desde sempre acessíveis aos brancos: o ascensor da herança fundiária, dos “cobres” da família, da “terra”, do casamento. Mas também, sobretudo, falta ao negro um ponto de partida semelhante: são ainda as mesmas as famílias de negros pobres que há quatro décadas enxameavam as bordas das vias rápidas junto a Lisboa. Agora vivem em bairros sociais nos mesmos arredores da mesma Lisboa, só isso mudou. Nada que permita grandes, ou mesmo pequenos, impulsos sociais. Para a generalidade dos negros, o trampolim não existe.

É este o racismo de que Portugal é feito. Quanto ao mais, um país é uma entidade abstrata. Uma composição de gente de muitas cores, credos, crenças, estatutos, estratos, sensibilidades, afetos, tendências de toda a ordem. É reducionista, para não dizer estúpido, dizer que um país “é” isto ou aquilo, enquanto somatório de indivíduos, como é imbecil dizer que Portugal marcou um golo. Há portugueses de costas para o jogo.


Não, não somos racistas como entidade coletiva., no sentido de desdenharmos, desprezarmos ou violentarmos o outro porque tem uma cor de pele diferente. Sim, somos racistas, como entidade coletiva abstrata no sentido de não compensarmos, enquanto sociedade, as diferenças que existem à partida, e se mantêm intergeracionalmente, em função dessa cor de pele. Mas dá jeito à sociedade branca ter uns pretinhos sempre à mão. Na limpeza de escritórios, nas obras de construção civil, nos esgotos, no alcatroamento de estradas. São os pretos e imigrantes que fazem hoje o que os filhos dos antigos indiferenciados brancos já não fazem.


O desvario esquizofrénico de um certo deputado oportunista é querer trocar as voltas a essa realidade. “Há minorias que se acham acima da Lei”, disse ele, cuspindo para cima, mas mais do que sabedor de onde ia cair o cuspo.


Sim, deve ser por isso que essas minorias continuam a lavar as escadas da Casa Grande. E a viver no Bairro Social. E da Jamaica.

João Prudêncio

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