AO: ANTÓNIO ROSA MENDES

De: Rogério Silva

Ao: António Rosa Mendes

 

Tó Mané

Nunca foi o texto escrito um modo de comunicação pelo qual dialogássemos. Que me recorde, apenas aqui há uns anos e também neste jornal, te ensaboei a tineta a pretexto do teu apoio ao actual presidente da república, na altura à compita com o Sampaio a ver quem nas urnas ganhava. Ganhou este último, como todos se lembrarão. Mas eu perdi. Na réplica levei sainete que me desqueixou a prosa, e quedou-se a pugna por aí.

Por infortúnio, é esta agora a forma que me resta para te falar, para te dizer quanto me roem o peito as tristezas que deixaste. Coisas de frouxo, pieguices, sei lá. Pois que sejam! Se mais fraca é a vontade que o impulso dos lamentos, que vençam estes e aquela lhes obedeça, pois então. Julga-me com a indulgência que tão nativa te era.

Só escrevi com a morte por motivo vão para aí uns cinco anos quando se foi outro amigo, daqueles que o peito amarra, como tu: o Bettili, crismado de il Principale, por conta do Amarcord. Nem o fiz quando morreram os meus pais. Só em lenços deixei narradas as crónicas do meu desgosto por os ter visto partir. E é a mais eloquente de todas as formas de escrita, essa que os olhos compõem. Eram quase analfabetos esses dois que me geraram. Mas tinham na alma os compêndios da inteireza e todas as gramáticas que ensinavam a amar e partilhar nas intermitências da sina em eras de servidão. Conheci-te nos sessenta, eras tu um pinto-calçudo de melena fraldisqueira e compridota emoldurando um rosto para o tisnado e bem composto em que luziam os olhos das gentes do mar do meio. Já então assentaras praça na turma, sempre escassa, dos que os livros, a história, a cultura, para o seu seio reclamavam. E daí à subversão e ao ódio à ditadura ia um passo de anão, como rezava a cantiga. Deste esse passo vital com a afoiteza informada que só nos melhores habita. Mais avançado nos anos eu – ia nove à tua frente – deu-me também a pancada e dispus-me a tomar parte no incêndio da pradaria. Ainda que mais cachopo, deste-me feio nas canelas a zurzir reaccionarices que a indigência ideológica me fazia proferir. Creio contudo que em mim vias um vero ânimo activista, pelo que continha a bordoada muito menos reprovação que afecto e pedagogia. Que esse era o teu natural: ensinar, partilhar o conhecimento, que tinhas como o único caminho para os fracos resistirem às cornadas do destino.

Eras independente e inteiro. Uma inclinação de ânimo que, se tinha achegas da família e da envolvência gregária, na sua maior porção eu achava-a visceral, genética, e por isso incontaminável, que o ofício não corrompe o que predispõe um tino quando a natureza o molda.

Por benignas circunstâncias foi em Cacela que achei o amor a que me prendi. Uma cachopa mimosa, ainda aparentada aos teus, fez com que os meus passos ansiosos aí chegassem à ternura que me completou o ser. E aí por essas paragens, muitas amizades fiz, e entre elas com os teus pais. Gente de suma grandeza, essa. Lúcida, solidária, pura. Numa pauta em que se anotasse a bonomia o nome Manuel Rosa Mendes teria lugar cimeiro. E a D. Maria Isabel também encabeçaria uma lista que classificasse a razão. Vêm-me eles agora à mente porque creio que em setenta e um, quando foste para Lisboa para a Faculdade de Direito, onde eu já então estrebuchava, confiaram-me um encargo de contingente exercício: pediu-me a D. Maria Isabel que velasse pelo Toninho para que se não extraviasse naquele meio dissoluto. Era óbvia a desnecessidade e mal amanhado o guardião, mas assegurei à impetrante o mais atento cuidado. Claro que passavam meses sem te pôr a vista em cima. Mas quando vinha cá abaixo, assegurava-lhe com fé que tinhas a mais espartana das vidas da academia. Espartana não seria, mas era comedida a estúrdia. Excessos só soube de um e com daninha sequela: eras então para o guloso, ou pelo menos foste-o na festa do meu casamento; ante a fartura de bolos que pela mesa se espalhavam parecias um criança não querendo perder nenhum; atulhaste-te de tal jeito que alguns dias depois foste parar ao hospital, com aguda hiperglicémia. É que insidiosa, até então oculta, a diabetes, que até ao fim carregaste, fez aí o primeiro dos seus estragos. Mas não te estragou a alegria .

Pouco depois veio Abril. O livro da liberdade, com um prefácio de flores. Lemo-lo em todas as páginas, pensando que para o povo era o futuro em botão. Fomo-nos ao materialismo histórico, Marx, Engels e Lenine com fartura, viramos e reviramos os conceitos e a doutrina, pusemos a política no comando e o proletariado à frente, criámos a aliança operário-camponesa, desancámos o social-imperalismo e o seu representante interno – o PCP – e decidimos que a revolução estava na ordem do dia, só faltando uma vanguarda que guiasse os oprimidos até ao senhorio do mundo. Criámos, nessa dinâmica, o Lutar no mar lutar em terra, mas, num rasgo de sensatez, nunca nos afiançámos como os depositários do destino. Apenas nos propúnhamos, com modéstia, colaborar no estudo da luta de classes e tomar parte nela e assim contribuir para a formação dessa vanguarda, combatendo a burguesia, aquilo a que chamávamos o social-facismo, o que apodávamos de guevaristas e românticos, enfim, dar o nosso contributo para acabar com os amos. Aí tinha eu um pedigree que impunha reverência: era filho de proletários. E isso era tido em conta. Tivesse eu o teu saber e com essa legitimidade era eu quem vocês punham a guiar a classe operária, ainda que na altura a esta nem lhe aflorassem à cabeça semelhante maluquices.

Cultivavas, já então, um humor desconcertante que remetia à desgraçaquem a jeito se pusesse. Conduzias uma vez, pelas ruas de Madrid a tua discreta 4–L. Levavas a Bruxelas três parceiros em visita a um camarada ali fixado e tido por sumidade ideológica. Nenhum conhecendo a rota, um deles, num cruzamento, viu a placa indicativa e gritou com excitação: Rosa Mendes, vira aqui! Abrandaste a tua marcha mas era tardio o aviso. Seguiste pois pela rua buscando via de retorno. Censurou-te o camarada sem obter resposta. Reencontrada a saída, já então na rua certa, exclamaste em tom compungido: qualquer dia desfaço-me deste carro; o cabrão nem um golpe de rins faz…

Fartou-se a revolução de tanto Lenine avulso, a reclamar, cada um, toda a vermelhidão para si e remetendo os demais aos lodos da linha negra, aos sacos de lixo da História. Apagaram-se os faróis e acolheram-se a outras luzes os que nas diversas turmas pelos seus feixes se guiavam. Repudiaram os sonhos alguns dos que mais enamorados se diziam. Pelos céus das utopias ficaram outros voando, que são substância alada tais anseios e não há bezerro de ouro capaz de lhe atar as asas. Atiraste-te ao ensino, à cultura, à História, à investigação, com o ardor humanista que te enformava o ser, nos tempos que se seguiram. E obteve a comunidade, todos nós, desse ofício, muito maior benefício que da intervenção política. Talvez não te tenha dito, mas sempre desconfiei, quando estavas no PSD, que a chama do outro tempo nunca se apagou em ti. E que ainda se movia, clandestina, nos recantos mais profundos, à bulha com a razão, ganhando na intimidade, perdendo na assembleia, que a dialéctica assim dispõe as coisas. Na forma como abordavas as questões, nos métodos que usavas na análise, na ética, nos gostos estéticos que evidenciavas, muito presentes me pareceram sempre os ensinamentos do materialismo histórico. Na política, uma particularidade de que me lembro e para alguns será surpresa era a do iberismo que defendias e que aí pelo século dezanove teve muito, ilustres cultores e a desaprovação veemente do Alexandre Herculano. São águas que também me lavam e nas quais julgo que nado pelos meus braços, tendo-me sentido orgulhoso quando percebi a consonância.

Aí pelo meio da década de noventa aprofundamos o convívio, até então mais espaçado. Concluíras a licenciatura em direito e a amizade trouxe-te ao meu escritório para o estágio do ofício. Nunca soubeste (ou talvez soubesses, que a ti pouco te escapava do que em cada alma amiga fluía) como ufano me sentia nesse tempo, em que sobre esse ponto instado, declaravas com apreço: o meu patrono é fulano. Xaringavas-me o juízo com uma farsa que inventaste sugerindo despotismo por parte do formador: rara era a sexta à noite, em que a tua fala vulcânica dissimulando a gaguez, não arengasse no bar ao resto do nosso bando – vocês nem fazem ideia do que eu sofri naquele estágio; aquilo era, todo o dia, moço, vai-me buscar um cântaro de água; moço vai para ali e para acolá… e no fim, sabem a melhor? Adoeceu de propósito no dia do meu exame para não ter que me acompanhar. Mas eu também não era de me ficar. E um dia apresentei- te a um juiz, dos que eu tinha em boa conta, com devastadora certidão: este é o doutor Rosa Mendes, meu estagiário; inscreveu-se na faculdade em 1971; terminou no ano passado… Eras já, por esse tempo um tipo culto e agudo, por cuja actividade se ia escrevendo o nome na história da região. Sempre cultivaste, e não só na conversa trivial, o uso do sotaque e de pormenores da fala da vila pombalina (sim, eu sei que é cidade) afirmação de uma pertença orgulhosa, de quem diz sou algarvio, sou dali. Divertia-me ouvir-te começar um relato com a locução – olha, eu te vou dizer a ti uma coisa… Tem a cagança cultores com fartura. A ti provocava-te asco, e era antes na humildade que procuravas sustento. Não enjeitar o sotaque era parte dessa busca. Também isso, e a graça que lhe encontrávamos a morte nos subtraiu.

Radicaste-te praticamente em Olhão. Um gabinete meio esconso no meu arcaico escritório, repassado de fumarada dumas cigarrilhas pretas cujo cheiro até as baratas almareava, serviu-te de ancoradouro para a advocacia esparsa a que te ias dedicando por fora do teu ofício de docente e historiador. Ia-te eu apoiando com algum conhecimento que a experiência me vem conferindo, enriquecias-me tu com os saberes doutras áreas em que já eras artífice consumado, e que me seduziam também. Desde logo o entendimento da História, baseado na pesquisa e interpretação dos factos. Pelo que respeita a Olhão, por exemplo, existiam em monografias e estudos de autores diversos, uns mais outros menos ilustres, dados e recensões sobre os factos mais relevantes da origem e evolução deste lugar singular. Mas ninguém tinha proposto a singularíssima tese, que o teu espírito extraiu dos factos que se conhecem e com fundamentação tão sólida: Olhão fez-se a si próprio, como efeito da luta das suas gentes contra a opressão de Faro e dos franceses, luta travada por pescadores, mareantes e demais arraia miúda, que grada aqui não havia, sem caciques ou manda-chuvas a que devessem obediência, guiados unicamente pelo sentido de alforria que lhes moldava o carácter e pela inata vontade de ser donos do seu destino. O que em 2009, em livro com aquele título, narraste com a sabedoria que a alma te inspirou, fica como um dos mais belos dos textos de historiografia até hoje publicados, até pelo primor estilístico que abrilhanta a narrativa. Tinhas um pendor teimoso pela busca da perfeição. E pelo que respeita à escrita defendias com firmeza ser o estilo o que mais importa na valia da literatura. É também por aí que eu ia, emparelhando-nos o gosto quanto aos nossos ficcionistas: Aquilino à frente de todos. Lembro-me de um dia distante em que falávamos de livros me teres recomendado que não perdesse de ler O milagre segundo Salomé, do Miguéis, que era no teu parecer o mais belo dos romances escritos em português, pelo menos nos últimos dez anos. Li e disse para comigo: porra, este gajo é certeiro. Por esse tempo, já eu albardava uns textos assim em jeito de contos com que aspirava à glória. Deixava-te na secretária para que os lesses, o que fazias sem demora. Não me davas opinião pois sabias que não a queria. Pudores velhos, de aldeãos. Mas recordo-me que uma vez desrespeitaste essa regra de silêncio: era uma crónica que apelava à comoção, um drama sobre um pardal cego. Quando me encontraste, após a leitura, aconselhaste-me a retirar do texto a última frase, dizendo que era um lugar comum e estragava a tensão dramática, que era intensa. Assim fiz e fiquei muito menos descrente da qualidade da prosa.

Pretendia eu que fosse, este escrito, exercício de homenagem que a gratidão exigia. Ensombrado pela saudade, escasso no ornamento, vai ainda assim comprido, mais do que eu gostaria se o lesse de outra mão. Mas sei que não te importarias, e por isso o vou estender ainda com mais umas coisas. Nunca te presumiste sábio. Chumaços só nos casacos, não no ego. Andavas em contracorrente da tropa que nestes tempos busca no faz-de-conta endrominar a matula… e vai levando a sua avante, pois que afinal o postiço só o é para quem o topa.

Convidado com frequência para apresentações de livros, palestras e outros eventos, nunca dizias que não. Julgo que estavas há muito marfado com este advérbio e nunca quiseste as pazes. E daí que, fosse ele dissertação sobre o movimento histórico na mais solene aula magna ou lançamento de folhinha do secretário da junta na sede da freguesia, se to pedissem, lá estavas e em ambos com o mesmo empenho. Alguns dos nossos amigos (e, já agora, também eu) achavam que esses actos, na segunda das vertentes, por tolos ou possidónios, te apoucavam o prestígio. Julgo agora, melhor pensando, que não era esse o caso. As manifestações do espírito, viessem de onde viessem e fossem chãs ou eminentes tinham em ti um partidário. Algumas eram ridículas, convocavam a galhofa, sendo paspalhices petulantes de asnos analfabetos armados em canelas-de-chibo. Mas creio que em grande parte eram exercícios sãos de gente com sensibilidade a que apenas a iliteracia e vidas encenadas pelos padrões de fancaria bem parecida da moda, das novelas, da publicidade (que engole sem dar pelo engano) confina o sentido estético aos males do coração na voz de cantores “românticos” ou aos livros da frioleira de devotos do lugar-comum. E por essa boa razão tu, sem pompa nem paternalismo, lá ias, sabendo ser pedagógico, sem que nunca quem te ouvia se achasse em subalternidade.

Tinhas o raio de um carácter com uma outra componente que a ciência certamente explicará, mas escapa ao meu entendimento, que é o do sujeito comum: uma empatia evangélica, regida por lei gravitacional sem os dados matemáticos da do Newton, mas tão poderosa que só podia ter origem cósmica. Quem entrasse no campo magnético que se criava à tua volta sentia-se atraído a um cativeiro afável de bonomia e franqueza de que nunca mais saía por não lho pedir a vontade.

Antes do início do teu estágio informei uma colega, hoje amiga dedicada, de que também fui patrono e por aqui se mantém, do que se ia passar. Mulher de esquerda, do Barrocal como eu, desconfiou que iria o escritório sofrer contaminação das pestes infecciosas que aguerridamente assacava à burguesia liberal. E disse-mo. Respondi-lhe à filósofo de vão de escada: não julgue sem ouvir o réu. Tempos idos, muito poucos, chamavam primo um ao outro, com entranhada amizade. Haverá mais gente assim. Mas tornava-te singular o facto de que contigo, a regra não tinha excepção. Quem de ti se aproximasse ficava amigo de infância e umas horas de conversa eram tempo suficiente para criar esses laços (que me absolva o Jorge Amado, que está no céu da Baía, pois fui buscar esta imagem a uma sua novela).

Do teu labor cultural, do que falaste e escreveste, escuso de adiantar mais. Amigos e colegas teus, da academia, já fizerem recensões que bastam à divulgação. O texto que aqui redijo é mais sobre a amizade, que é onde mais nos dói, aos que te éramos chegados.

Era gente singular, esta que se reuniu tendo Olhão como seu pouso.

Fundámos uma editora: tu, o Paulo, o Cabrita, o Carlos Lopes e eu. Não fizemos qualquer estudo. Qual mercado, qual carapuça. A nossa desmedida ambição era a de não perder dinheiro a publicar prosa e poesia que o merecesse. Publicámos coisas boas, tuas, da Teresa Rita Lopes, do Cabrita, do Campaniço, nomeadamente, e outras assim-assim. E o que perdemos foi pouco. Foi tua a escolha do nome, claramente superior no propósito e significado a outros que se alvitraram: Gente Singular, um título do Teixeira Gomes era uma síntese perfeita do que pensávamos ser e do que queríamos fazer. Recordas-te das reuniões? Eram sempre num jantar, marcado pelo Carlos Lopes, crismado de Président Directeur Général não sei se por ti se pelo Paulo e que era quem mais se mexia. Sentia-me na obrigação, eu, com a jurisdição do mais velho, de impor regras e métodos que assegurassem eficácia. Para que houvesse um pouco de ordem e dessem frutos os trabalhos um comando era imprescindível: tomarem-se as deliberações no início do repasto que o que se tomava depois não podia ir para a acta. E a regra era acatada. Abusos e provocações de mânfios que se estimavam sem reservas eram ali inevitáveis. Mas só lá para o meio da janta assumiam proporções irrefreáveis. E tu eras dos piores, repetindo pela centésima vez uma pilhéria, mas propondo com ar seráfico: eu nunca contei isto a ninguém, e sendo o Paulo a principal vítima. Claro que também te chegavam, que nisso ninguém era santo. As histórias à volta de carraspanas e flostrias automobilísticas tendo-te como protagonista eram retruques que encaixavas com aprumo. Uma parte da direcção – aí uns sessenta por cento – desenfiaram-se para Espanha pelo menos uma vez, sem que os restantes soubessem e aí lavraram feitos que um dia a história da arte narrará em prosa épica. Houve quem fizesse o relato de tal gloriosa jornada, descrevendo o teu desempenho em termos tão encomiásticos que me induziram a crença de que se editássemos um disco era êxito afiançado. Saberás do que se trata, dizendo-te que um mariola te criou um título artístico: o rouxinol de Cacela. A ti, a quem o professor Dores, nas aulas de canto coral, remetia à última fila e pedia que te calasses… Deixando agora a anedota um testemunho eu dou: eras a nossa referência e era contigo que as pessoas que têm gosto pelos livros identificavam a editora. E dos livros que publicámos aqueles que se esgotaram eram teus.

Amigos eram em multidão. Em Olhão, na Universidade, no mundo e em Vila Real aquela que é também como Olhão, uma terra singular, e eras tu quem se afeiçoava. Disse Proust (desculpa lá a citação que acharás pedantaria, mas é apenas muleta em que se apoia um coxo) que há elementos preciosos que se escondem no coração das coisas, mas que os génios sabem encontrar. Para ti era instintiva a descoberta, supondo que não tinhas ainda lido quando para Olhão vieste, aquela luminosa crónica que o Mestre Raul Brandão dedicou a esta gente, nos Pescadores. Mas viste-a exactamente como ele: desenvolta, independente, solidária, sociável. E neste povo de mareantes, nesta terra a quem trataste por madrinha, amigo era cada um, mesmo que te não conhecesse. Que os de Olhão são assim e a amizade não exige reconhecimento: é um elemento precioso que guardam no fundo da alma. E daqui, donde te escrevo (e que me desculpem os demais) um punhado de mequetrefes de que fizeste o teu bando e a quem deste a tua estima especial, uns filhos e outros também afilhados (como eu), quando lhe deram notícia de que foras internado com letal enfermidade, bradou pragas aos infernos contra tal desumanidade. E quando as pragas arderam e as desordens se foram resignando e precipitando em cinzas, soubemos a quantas dores nos condenou o teu inditoso adeus. A esse bando de vaganaus (mequetrefe é do Aquilino) atrevo-me a sustentar que os tinhas por irmãos. A mim, que era o mais velho, dedicavas uma atenção mais sóbria, um afecto que não expunha a intimidade. Mas tinhas um que era teu gémeo, parceiro dos mesmos caminhos, das letras à extravagância, confessor e confidente, sequaz e contestador. Este sentiu-se, com a tua ausência, afundado em parte incerta da razão, como se perdesse a chave que lhe abria as portas das dúvidas e dos acertos, de tão paralelos que eram em tantas coisas. Creio que deambulou, atónito e entontecido, por tudo quanto é lugar do entendimento, à procura de razões que não achou ou de culpados metafísicos que não há. É um sofrimento turvo esse, que vai perdurando nos dias, demorado, pertinaz, buscando com um vagar perverso contaminar-nos a alma até ao rés da loucura. O gajo passou por isso, pá.

E vou mesmo terminar.

Um túmulo em Cacela Velha, aberto na terra triste, acolheu o teu corpo exangue da luta contra a doença. Eram milhares as dores que ali foram despedir-se. Uma brisa delicada soprava das bandas do mar. Trazia versos – pareceu-me – versos de melancolia que se abraçavam aos prantos. Poemas mouros, talvez errando há séculos nas sombras que o passado ali deixou. Exaltações à beleza, como as de dona Sophia, enlaçadas nas saudades que já em nós alastravam? Tudo isso, tudo isso. Mas essa brisa trazia, mais que mágoas, mais que lutos, hinos à consagração de um ser que se deu inteiro e inteiro foi amado. E no futuro outras brisas, trarão de Cacela Velha sob a forma de perfumes, lembranças da tua chama que sempre se reacenderá.

O Paulo, a Isabel Maria, o Peres, o Ventura, eu e os demais, embora sabendo que nos morreste, ficamos, quando em convívio, às sextas à noite, olhando para donde vinhas, como quem espera ver-te aparecer com aquele ar franzido e sorna que fazias quando te dava para o abuso. Talvez a morte seja apenas uma mudança na vida em que se passa a viver só nos outros. Pois. Mas no dia seguinte a uma rambóia não temos quem nos pergunte eh pá, o que é que eu disse ontem à noite.

Fazes-nos falta, punhão!p>

Rogério Silva

Junho/2013

 

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2 COMENTÁRIOS

  1. Belo testemunho a um amigo. Também andámos pela Faculdade de Direito. Um abraço ao Rogério Silva que presumo seja meu colega nestas lides da advocacia. Vamos prestar-lhe uma pequena homenagem no dia 11 de Maio subindo o Guadiana e lembrando as suas crónicas e o seu rio. Espontaneamente um grupo alargado de antigos alunos do Liceu de Faro onde ele andou. Umas largas dezenas. Até dia 15 de Abril inscrições abertas. Vamos lembrar o amigo. Manuel Paleta do Carmo. Ver o grupo “Esplanada dos antigos alunos do Liceu Nacional de Faro” no facebook.Abraço.

  2. Para artigo elegíaco é demasiado extenso. Apenas (mas com o devido respeito) o li na diagonal. Este artigo melhor servirá outros propósitos biográficos por muito conclusivo. Caro Rogério Silva, eu, que tive o excelso prazer de conviver academicamente com António Rosa Mendes, revejo-me nas suas apreciações. Saudações.

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