“Descalças” mas com um Natal feliz

ouvir notícia

As Irmãs não dispensam o bacalhau com todos, na ceia de Natal, o convívio, a música, a troca de presentes e até mesmo um pezinho de dança. O único pecado são mesmo os doces. As Irmãs do Carmelo de Nossa Senhora Rainha do Mundo, ou Carmelitas Descalças, vivem no único convento habitado do Algarve, situado perto de Faro. Numa rara abertura ao mundo, receberam o JA, que ali foi procurar mais sobre as tradições, costumes e rituais de um convento na época natalícia.

“Como será o Natal num convento?”. Foi este o ponto de partida para uma reportagem, que se revelou uma surpresa. Daquelas que nos aquecem o coração (e a alma). Para lá das portas do Carmelo de Nossa Senhora Rainha do Mundo, localizado na localidade de Patacão (Faro), encontrámos sorrisos, alegria, generosidade, liberdade, devoção a “um Deus de amor” e uma felicidade quase palpável. Encontrámos pessoas, ou melhor, mulheres, livres e felizes com as suas escolhas. Percebemos que as Irmãs não estão num convento para fugir do mundo. O seu “recolhimento de amor” é sim “pelo mundo, pela Igreja e para a Igreja”.

A Irmã Maria da Ressurreição, que conta já com 93 primaveras (41 deles passadas em recolhimento), recebeu-nos com carinho e com um sorriso que, de certa forma, nos tranquilizou e, em bom português, nos pôs “mais à vontade” para o início da conversa.

- Publicidade -

Da comunidade das Carmelitas descalças deste Carmelo, que congrega a ordem teresiana preconizada por Santa Teresa de Jesus e São João da Cruz no século XVI, fazem parte 12 freiras. A mais nova tem 19 anos, e a mais velha, a Irmã Ressurreição, está na plenitude dos seus 93 anos. À conversa com o JA, estiveram presentes, ainda que separadas dos visitantes por uma barreira de grades, a Irmã Maria da Ressurreição, a Irmã Lúcia Maria e a Irmã Júlia Maria, ainda noviça, e com apenas 19 anos.

A comunidade das Irmãs do Carmelo de Nossa Senhora Rainha do Mundo.

Tradições, costumes e rituais

No Carmelo, os preparativos da época festival coincidem com o Advento de Natal, o primeiro tempo do Ano Litúrgico. O Advento inicia-se quatro domingos antes do Natal e culmina no dia 24 de dezembro. Uma das tradições de Natal no convento é feita durante este período. O “Papel do Ofício Espiritual” é um sorteio, em que a cada Irmã é atribuído um “ofício de Natal”, que acaba por ser um paralelismo para com “as necessidades espirituais que existem no mundo”, segundo as Irmãs. É à Irmã Júlia que cabe, este ano, “embalar o Menino Jesus” durante a quadra.

Presépios e estátuas do Menino “estão por toda a parte”, confirmou a Irmã Júlia, entre risos. Cada Irmã decora um presépio, sempre com o cuidado de “taparem” o Menino, que ainda não nasceu, com o véu transparente que o resguarda até “ao nascimento” – outra das tradições natalícias. Para as Irmãs, fazer o presépio “é algo muito belo”, e que ajuda a potenciar a presença de Deus.

O presépio existente na Igreja do Carmelo

Para além dos presépios, as decorações de Natal, entre velas, pinhas, flores, laços, troncos e outros enfeites simbólicos do catolicismo, espalham-se pelas salas de ofício, zonas comuns (como a biblioteca, o refeitório ou a sala da recreio), corredores e até mesmo em pequenos recantos do Carmelo.

As decoração resultam das doações que a comunidade vai fazendo, e que as Irmãs vão guardando, apesar de elas mesmas criarem as suas decorações de Natal com materiais como esferovite, madeira, cortiça, pedras, conchas, tal como nos descreveu a Irmã Lúcia (que curiosamente trabalhou durante 13 anos no Banco de Portugal). Em termos de criatividade, e a propósito, pode dizer-se que o céu é o limite. A Igreja das Carmelitas também é decorada a preceito e nela pode ser visto um presépio de grandes dimensões, coroas de flores, velas coloridas e plantas.

Na véspera de Natal, 24 de dezembro, tal como em qualquer outra família, a Ceia é um “momento muito íntimo e de alegria” entre as Irmãs, e onde não falta o amor, a partilha, a confraternização e a animação. Ao contrário de outros dias, em que a refeição é feita em silêncio, estes são dias de festa e convívio.

Também há presentes de Natal no convento

Seria impossível falar do Natal sem referir as iguarias da época. As Irmãs do Carmelo revelaram ser fiéis às tradições gastronómicas da quadra, não podendo faltar na mesa o típico bacalhau com todos e os incontornáveis doces, que no caso das Irmãs, na sua maioria naturais da região Norte, seguem os seus costumes com a confeção das rabanadas, da aletria e dos por ali tão apreciados “formigos”, doce nortenho à base de pão de ló, ovos e açúcar.

Após a confraternização da Ceia, e depois de uma celebração animada da Missa do Galo, cuja organização está a cargo das Irmãs (desde as flores decorativas aos cânticos e instrumentos), o grupo reúne-se para a “hora do chá”, onde ainda há espaço para (mais) uma fatia de Bolo-rei. O leitor pode estar a perguntar-se: “então e as prendas?”. Sim, as Irmãs trocam presentes entre si. Segundo a Irmã Ressurreição, existe uma tradição na qual cabe às noviças oferecer prendas simbólicas às restantes Irmãs, feitas manualmente, e de acordo com a “arte” de cada aprendiz. Para além disso, a Madre, “a mãe espiritual e a guia das almas”, com o auxílio da comunidade, faz questão de deixar “um saquinho bonito com coisas úteis” para as Irmãs.

Pela noite dentro, nos corredores do Carmelo e em visita aos presépios espalhados pelo convento, as Irmãs dançam para celebrar o nascimento de Cristo, ao som das pandeiretas e tambores, e ecoam cânticos alusivos à quadra. Noutros tempos, “quando a idade o permitia” – confessa a nonagenária Irmã Ressurreição, sempre sorridente – dançava “a noite inteira a cantar e a dançar ao Menino Jesus”. Nas suas palavras, e em conformidade com os escritos da Santa Madre, “não é boa carmelita aquela que não rompe umas sandálias a danças toda a noite”, garante-nos, animada.

No dia de Natal, as orações são cantadas e as refeições continuam com o mesmo ingrediente: a união, a partilha e o amor. Nos dias 24 e 25 de dezembro, as Irmãs revelaram que existe “maior liberdade para conversar, confraternizar e comemorar o nascimento do Salvador.

As Irmãs em reunião numa das salas do Convento

Pensar na pandemia e nos governantes

O Natal no Carmelo é “um momento muito forte, especial e de grande encanto”, isto porque, como nos explicou a Irmã Lúcia “um Deus que se fez Homem, igual a nós, que se faz humilde na ternura e na vulnerabilidade de uma criança é algo que desarma e nos ajuda a tomar consciência do abismo do amor de Deus”.

Nesta época de espiritualidade singular, as Irmãs aproveitaram para deixar os seus desejos de Natal para a Humanidade – anseios partilhados de “paz, amor e fraternidade entre todos”. Aos 19 anos, a noviça Júlia reza para que “todas as pessoas se sintam amadas e sintam o poder do amor, que é o poder de Jesus…porque isso resolve tudo”, concluiu. A acrescentar a isto, a Irmã Lúcia Maria, fez questão de expressar a sua vontade para que “daqui a um ano estejamos com outros horizontes para vida do mundo e para a vida concreta das famílias”, afetadas pelo flagelo da pandemia. A Irmã foi até mais longe, e apelou, sobretudo “aos governantes”, para que “tudo isto possa alterar a maneira de pensar, a economia, a sociedade… Que o vírus nos tire as máscaras e nos dê mais consciência cívica e uma oportunidade de conversão”, terminou em tom esperançoso.

O Carmelo de Nossa Senhora Rainha do Mundo foi inaugurado a 15 de outubro de 1980, dia em que se celebra a Solenidade da Nossa Madre Santa Teresa de Jesus. Situado na localidade de Patacão, a cerca de 7km de Faro, o Carmelo das Carmelitas Descalças é o único convento de vida contemplativo, habitado, no Algarve.

Joana Pinheiro Rodrigues

Vida no convento

Todas as missas do Carmelo são preparadas pelas Irmãs; Durante o dia, existem dois momentos de maior intimidade com Jesus: a eucaristia e a oração silenciosa (uma hora pela manhã e outra pela tarde); Ao longo do dia, a carmelita reza várias vezes a Liturgia das Horas. As Irmãs passam apenas duas horas a conversar e em momentos de partilha. Fora isso, a carmelita mantém-se em oração trabalhando, em silêncio e a sós.

Para além das tarefas domésticas, os seus trabalhos, são muito diversificados: desde os bordados, restauros, confeção de hóstias, passando por traduções, artesanato, pintura até à agricultura; À exceção da Madre, e da Irmã Ressurreição, responsável por comunicar com o exterior e tratar de assuntos como ir ao banco, ao supermercado ou estar presente em compromissos da Igreja, as restantes Irmãs apenas podem sair por dois motivos: por motivos de saúde ou para exercer o seu direito de voto;

Por norma, a informação é consultada semanalmente, através da Agência de Notícias da Igreja Católica em Portugal (Ecclesia), de revistas missionárias de várias congregações, ou do e-mail, a que apenas algumas Irmãs têm acesso; As visitas de familiares acontecem mensalmente, e é permitido o contacto telefónico, sempre que necessário.

J.R.

- Publicidade -

Deixe um comentário

+Notícias

Exclusivos

Deixe um comentário

Por favor digite o seu comentário!
Por favor, digite o seu nome

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.