Dias de revolta na Venezuela

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Dulce Maria não consegue falar baixo. Grita para que todos a escutem, mas não para de olhar à volta como se ao mesmo tempo tivesse medo que a ouvissem. Os miúdos sentados num dos bancos, entretidos a abrir sacos e a mexer nos telemóveis, olham-na sem saber bem o que pensar. A professora Dulce Maria Bermudez Bolívar para, acalma-se e depois volta a gritar. “Aqui não há futuro para os jovens.” Estão todos, ela de pé e eles sentados, numa ilha de árvores e passeio cercada de trânsito. Estão no epicentro dos violentos protestos que, há mais de um mês, agitam algumas das principais cidades do país. Estão na Praça Altamira, em Caracas, na Venezuela. Mas à volta de Dulce e dos miúdos, a vida corre como sempre correu. Simplesmente complexa.

Dulce não vai ficar até à noite. Nem ela nem as outras mulheres que todos os dias aqui chegam com sacos de roupa e caixas de comida. Mais tarde, os carros que agora abrandam e abrem as janelas para entregar mais sacos carregados de roupa e comida e água já não vão parar. Ao fim da tarde, início da noite, a praça será dos miúdos, quase todos estudantes universitários. Um deles, com um tablet na mão, aproxima-se e quer saber quem são os dois tipos parados à sua frente. “Portugueses? Muito bem, muito bem. Temos de ter cuidado, há muitos polícias infiltrados e disfarçados. E depois acontece isto. Queres ver?” O vídeo no tablet não arranca à primeira, nem à segunda. O rapaz parece não dormir há dias. Demasiado magro, tem feridas na cara, a roupa suja. “Mira, mira.” A imagem treme, mas não é preciso ver bem para perceber a história que mostra. É de ontem, mas será igual hoje. “Se quiseres mando-te por email.”

Vista de cima, de onde manifestantes e polícia parecem iguais e igualmente pequenos, Caracas é uma enorme metrópole com mais de oito milhões de habitantes, presa num vale, com prédios enormes, um trânsito sempre caótico e cercada de favelas, os “barrios”, por todos os lados menos um, o do enorme monte Ávila. A qualquer hora, enormes aves negras voam lá no alto em círculos por cima da cidade. São zamuros, uma espécie de abutre que se alimenta de animais mortos e carne putrefacta. “Feios, porcos e maus”, dizem deles os caraquenhos, que preferem outras aves, mais vistosas e pequenas. Mas os zamuros, aos milhares, não os deixam nunca e agradecem as barricadas feitas de lixo que amanhecem nas ruas desertas. São bichos territoriais, que encontraram nos protestos uma forma de ganhar mais espaço para viver. Que se alimentam e aquecem de uma brasa que vai ardendo sem mostrar a chama.

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As araras, que aqui se chamam guacamayas, há vários dias que voaram para longe da Boulevard Cafetal. O fumo dos incêndios e o gás disparado pela polícia empurraram para longe, para os espaços verdes distantes, as aves mais queridas dos moradores. Também já não vale de nada por comida à janela dos prédios de Chacao, do outro lado do rio Guayre. Elas não aparecem para a apanhar e para se deixarem fotografar (como fez em janeiro, num tweet famoso, o ministro do turismo). “As guacamayas deixaram de voar aqui no centro e ninguém sabe quando voltarão”, explica Carmen Cabello, presidente da Audubon, uma sociedade de estudo e defesa das aves venezuelanas. Esta é a pequena dúvida. A maior é saber que país irão encontrar os pássaros quando regressarem.

(Ler mais na edição do Expresso)

RE

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