Dinis Dias: História da Canábis em Portugal remonta ao século XVI

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Em entrevista ao JA, Dinis Dias – consultor da área da canábis medicinal – elencou os principais passos da introdução da
canábis para fins medicinais em Portugal, abordando a sua história em Portugal e no Mundo

JORNAL DO ALGARVE (JA) – Como foi o processo político que levou à legalização da canábis
para fins medicinais ?
DINIS DIAS (DD) – A aprovação do projeto-lei que legaliza a canábis para fins medicinais data de 15 de
junho de 2018, na Assembleia da República. Mas o processo teve início algum tempo antes, com a
apresentação de projetos de lei do Bloco de Esquerda e PAN. Houve uma fase de apresentação e
discussão pública na AR. Depois os projetos foram apresentados e discutidos na generalidade. Mas nem
tudo foi pacífico neste debate. Afinal, para muitos – incluindo deputados – estava-se perante a legalização

de uma “droga”, com todo o cunho negativo que isso tinha e o anexo impacto social e mediático de tal
proposta. E é assim que essa proposta é inviabilizada por alguns partidos políticos (CDS e PCP), pelo
que teve que descer à especialidade e foi reorientada de acordo com as propostas dos partidos que se
opuseram à proposta original.
JA – Como se conseguiu aprovar o projeto de lei ?
DD – Para que isso acontecesse, foi retirado o autocultivo da proposta original, Estava prevista a
possibilidade de os pacientes poderem produzir eles próprios as plantas para poderem consumir em casos
em que a indústria farmacêutica e as farmácias comunitárias não pudessem dar resposta às suas
necessidades. O projeto foi então aprovado na especialidade e depois já na generalidade na AR a 15 de
junho.
JA – Mas antes da aprovação do projeto de lei já havia empresas estrangeiras em Portugal…
DD – A regulamentação de 2018 foi o corolário de um processo no seguimento do interesse da indústria
neste setor. Não da portuguesa, mas da estrangeira. Uma vez que em Portugal não havia interesse de
qualquer indústria em enveredar por este caminho, foram empresas de Israel e do Canadá que se
instalaram no País, ainda sem que existisse legislação para regulamentar a atividade. Tal aconteceu com
recurso a acordos diretos com o Governo português, então liderado por Passos Coelho, através da
intermediação de Ângelo Correia. A primeira empresa que se implantou em Portugal, em 2014, Terra
Verde, tinha capital israelita no início. Foi um processo intermediado politicamente, feito à medida para
aquela empresa.
JA – Foi a primeira vez que se produziram produtos de canábis medicinal em Portugal?
DD – Não, a história da canábis em Portugal não começou agora. Longe disso! Existem formas
terapêuticas de administração da canábis em Portugal desde o século XVIII. E já antes, há mais de 500
anos, o primeiro ocidental a reportar clinicamente os benefícios da planta é o médico Português Garcia da
Orta, na Índia. Ele foi, aliás, o primeiro europeu a fazer um tratado sobre a canábis do ponto de vista
medicinal. Mas a utilização médica da canábis data de há pelo menos 7000 anos, na China. Faz parte da
nossa farmacopeia nos séculos XVIII e XIX. Em Inglaterra, a rainha Vitória foi tratada pelos médicos
com óleo de canábis para atenuar as dores menstruais.
JA – Quer dizer que em Portugal já existia um historial de utilização da planta da canábis?
DD – Em Portugal, a proibição veio pela primeira vez em 1961, após a convenção de Viena sobre
substâncias estupefacientes. Mas, curiosamente, até essa altura era obrigatório plantar cânhamo em
determinadas zonas do país para a indústria têxtil, incluindo nos tempos do Estado Novo. De resto, o
cânhamo faz parte indissociável da História de Portugal, desde as cordas das caravelas, à calafetagem dos
barcos, aos velames das caravelas dos Descobrimentos, sapatos, fibras e cordas de antes da era do sisal. O
cânhamo é, aliás, a fibra natural mais resistente que se conhece. Mais do que o algodão. A campanha de
propaganda contra o cânhamo, nos anos 30 nos EUA, motivada pelos lobies do Petróleo (Nylon) e do
Algodão, levou a que toda a farmacopeia que já existia na época de 1910 e até no século XVIII ou XIX
fosse retirada das farmácias. E os médicos “esqueceram-se” que a canábis foi um medicamento durante
muitos anos.
JA – Quando a canábis retorna como potencial terapêutico em 2016 (primeiros contactos para
produção de canábis) em Portugal afinal trata-se do ressurgimento de uma cultura agrícola que era
antiga ?
DD – Em primeiro lugar é preciso explicar a diferença entre cânhamo e o que hoje se denomina canábis
medicinal. O que se plantava historicamente em Portugal era cânhamo, sobretudo nos vales e lezírias do
Tejo e do Mondego. Na realidade, embora se tratem de plantas muito diferentes em termos de
composição química, trata-se da mesma espécie em termo taxonómicos e legais. Isto causa uma enorme
confusão na população e até nas autoridades, que convém esclarecer. O cânhamo é uma sub-espécie da
canábis que foi cultivada durante milénios para produção de sementes para alimentação, fibra para
roupas, cordas e papel. O cânhamo (antigamente conhecido como linho-cânhamo) não tem propriedades
psicotrópicas, ou seja, não dá “pedra”, embora as sementes e o óleo feito a partir destas seja altamente
nutritivo e rico em Proteína, fibra, Ómega 3, 6 e 9 e em aminoácidos, é até considerado um super
alimento. É uma questão de tempo até entrar em força na indústria alimentar. Outra coisa completamente
diferente é o que chamamos canábis medicinal, vulgarmente utilizada como substância recreativa ilegal,

que tem propriedades psicotrópicas – dá pedra. A “pedra” deve-se a um composto químico presente
nestas variedades de canábis denominado THC (Delta9 – Tetrahidro Canabinol), que por outro lado, tem
inúmeros efeitos terapêuticos e usos medicinais. No entanto, recentemente descobriu-se o potencial
terapêutico de outro composto químico, o CBD (Canabidiol), que tanto existe no cânhamo como na
canábis medicinal, e cujo extrato (na forma de óleo ou cápsulas) tem também propriedades medicinais.
Isto levou à sua venda em lojas de dietética, ervanárias, etc como produto alimentar, uma vez que era
produzido a partir de cânhamo, a planta que não dá “pedra”.
JA – E esse óleo de CBD vende-se em Portugal ?
DD – Em Portugal, vendia-se óleo de CBD como suplemento alimentar nas lojas Celeiro e outras lojas de
suplementos alimentares e de dietética. Mas as pessoas perceberam que aquele suplemento alimentar
tinha uma ação terapêutica e começaram a consumi-lo enquanto tal. Ora segundo a legislação nacional,
um produto medicinal não pode ser vendido como produto alimentar, nem pode estar no circuito
alimentar, tem que estar regulado pela entidade que regula os medicamentos: o Infarmed. Devido às
concentrações por vezes elevadas de CBD no óleo, a Agência Europeia de Segurança alimentar decidiu
que o CBD não estava classificado como alimento seguro, proibindo a sua utilização como suplemento
alimentar. Assim, para voltar a estar disponível no mercado, terá que ser comercializado como
medicamento, em farmácias.
JA – Cerca de um século depois a canábis está, portanto, perto de regressar às farmácias?
DD – Dos anos 1930 até 2000 a canábis para fins terapêuticos ficou soterrada por toneladas de campanhas
de desinformação, que foram levantadas nos EUA mas depois propagadas pelo mundo ocidental e
chegaram a Portugal. Isso levou a que toda a farmacopeia que já existia na época de 1910 e até no século
XVIII ou XIX e fosse toda retirada das farmácias. E os médicos esqueceram-se que a canábis foi um
medicamento durante muitos anos. Em 2018/2019 saem os primeiros medicamentos para o mercado
mundial (antes já saíra o Sativex, desenvolvido por uma farmacêutica britânica para doentes com
esclerose múltipla) e que vai legalizar pela primeira vez a canábis como um medicamento formatado e
estandardizado para a indústria farmacêutica. Agora será uma questão de tempo até que a indústria
farmacêutica comece a desenvolver soluções.
JA – Como é que chegámos até aqui?
DD – Neste momento, o uso terapêutico está legalizado no Canadá, mais de metade dos estados dos EUA,
Uruguai, México, Argentina, República Checa, Polónia, Portugal, Alemanha, Reino Unido. Em Portugal,
a Associação Portuguesa de Estudos sobre Canábis surgiu ainda em 2017, tendo como objetivo divulgar
informação credível e revista pelos pares científicos. Houve um trabalho para fazer informação a nível da
sociedade civil, documentários, reportagens. Os media começaram a interessar-se pelo tema e ele torna-se
especialmente mediático quando se percebe que existe uma doença rara em Portugal, a síndrome de
Dravet, que tem a ver com epilepsia refratária. Um tipo de epilepsia que ataca sobretudo na infância mas
se pode manifestar toda a vida e não reage a qualquer tipo de medicação contra a epilepsia. Pode dar 70 a
90 crises de epilepsia diárias e condicionar fortemente o desenvolvimento cognitivo dos doentes, que
normalmente têm uma esperança de vida muito mais curta. Quando o paciente toma um produto com óleo
de canábis, passa a ter 1, 2, 3 por dia. Retoma o desenvolvimento cognitivo, embora de forma limitada,
volta a ter alguma qualidade de vida. Uma melhoria abissal para quem passava o dia entre crises de
epilepsia e um estado de sono profundo provocado pelo esgotamento físico das crises epiléticas.
JA – Como é que as multinacionais estrangeiras chegam a Portugal?
DD – O grande “boom” da canábis em Portugal começa por empresas estrangeiras, já que as portuguesas
nunca tiveram interesse. Em 2014 chega a Terra Verde, em 2016/17 chega a Tilray, sediada em
Cantanhede, que conseguiu aprovar regulamentação a nível político. As primeiras empresas chegaram
atraídas por 3 principais fatores: Portugal tem condições climáticas excecionais para o cultivo da planta,
está dentro da União Europeia, dando acesso ao mercado europeu, e tem mão de obra altamente
qualificada a preços altamente competitivos, sendo apenas batido pelo norte de África. Quando os
empresários portugueses se começam a aperceber de que existem operadores internacionais a radicar-se
em Portugal, apercebem-se do filão com potencial económico que estará à sua disposição quando houver
regulamentação. Quando se produz para exportação, começa a haver uma apetência para a indústria
portuguesa entrar no setor. Sobretudo atraída pelos altos lucros prometidos por esta indústria. A
regulamentação da lei de 15 de junho de 2018 só ficou pronta 7 meses depois de publicada a lei, já em

2019.
JA Quantos medicamentos estão atualmente autorizados no mercado português?
DD – Neste momento, o Infarmed só autoriza uma marca, o Sativex, que custa 500 euros por caixa.
Quando comparticipado, fica em 300 euros, mas o paciente precisa de uma caixa, ou caixa e meia, por
mês. Quem tenha um vencimento médio não tem acesso ao medicamento. Essa é a razão porque as
pessoas procuram alternativas no mercado dos suplementos alimentares. O CBD (canabidiol) foi
recentemente proibido como suplementos alimentar em Portugal, por ordem da DGAV e intervenção da
ASAE, com o argumento de que a Agência Europeia para a Segurança Alimentar ainda não classificou o
CBD como uma substância segura. Portanto a substancia não pode ser vendida como suplemento
alimentar, porque é considerado um novo alimento. Todos os pacientes portugueses que estavam a utilizar
o CBD através de óleos que compravam como suplementos alimentares perderam acesso à substância
terapêutica.
JA – Segundo os críticos, o estado condena os pacientes portugueses, desde essa altura, a viverem
em dor e sofrimento permanente. Por entre tanto avanço, deu-se o recuo?

DD – É Verdade. Na minha opinião é uma situação que revela alguma descoordenação a nível político-
partidário e até institucional. Todos os partidos sabiam ao aprovar a Lei – e digo-o porque tive

oportunidade de abordar esta questão na comissão de especialidade na A.R., onde estive a convite da
mesma – que não autorizando o auto-cultivo ou a venda como suplemento alimentar, ia existir um período
de tempo relativamente longo em que os pacientes estariam sem qualquer alternativa de tratamento legal
no mercado regulado. Isto tem uma explicação simples: para colocar um produto no mercado existe um
roteiro que tem que ser cumprido, que segue determinadas regras de segurança impostas pelo Infarmed e
pela comunidade farmacêutica internacional e demora 7 anos (medicamentos) ou 2 anos (caso de
substâncias terapêuticas). Desde que a lei foi aprovada, a 15 de junho de 2018, e que a regulamentação
saiu, a 15 de janeiro de 2019, houve um período em que não existiam regras para colocação do produto no
mercado e o produto alimentar também não podia ser vendido. Só a partir daí as empresas podem
candidatar produtos à homologação e começam a correr os tais 2 a 7 anos necessários para a legalização.
Neste momento, além do já legalizado Sativex, há dois outros produtos que aguardam ACM (Autorização
de colocação no mercado) do instituto do medicamento. O Sativex é um produto da britânica GW
Farmaceutical e tem distribuidora em Portugal.
J.P.

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