Ele há vontades e vontades

Advertidos de que se trata de uma mini-série baseada em factos reais, vemos desfilar pelo ecrã as histórias cruzadas de Sophie e Ameer. Ela loura e australiana, nascida em berço de ouro, passa por agruras tais, em família e fora dela, que vê como única hipótese de sobrevivência deixar-se deter pelo SEF lá do sítio, depois de usurpar a identidade de uma cidadã alemã. Acaba detida num campo para candidatos ao estatuto de refugiado do seu país, a Austrália, tentando provar que é a mulher a quem roubou o passaporte – que depois atirou ao mar, após ter memorizado os dados.


Ameer é um refugiado afegão que foge dos talibãs e que na fuga perdeu a mulher e uma das duas filhas, por afogamento. Ele e a filha sobrevivente tentam provar quem são e ficar na Austrália. Estão no mesmo centro de detenção – na prática uma prisão – do que Sophie. Partilham com ela o mesmo objetivo – mudar de vida -, mas são contraditórios os meios para lá chegar: eles querem ficar na terra onde já chegaram, mas de que não podem fruir; Sophie quer sair da terra em que querem ficar todos os outros refugiados com quem convive, incluindo Ameer e a filha, e ir para a Alemanha. O afegão e a australiana vivem meses a poucos metros de distância mas nunca se chegam a encontrar. Só nós, público, conhecemos os seus dramas. E vontades.


A mini-série “Estado Zero”, disponível no Netflix, é um bom momento de reflexão sobre os dramas dos refugiados e imigrantes contemporâneos. E devia calar fundo em nós, portugueses, povo de emigrantes, legais e ilegais, só muito recentemente descoberto como povo de acolhimento. E que de repente parece não estar a saber lidar com essa tão rápida mudança de estatuto.


Uma parte substancial do mesmo povo que há meio século saltava fronteiras clandestinamente e ajudava a construir “bidonvilles” (bairros de lata) nos arredores de Paris, que armou barracas clandestinas um pouco por todo o mundo, hoje arroga-se o direito de querer impedir a entrada de imigrantes, sob o pretexto de que são ilegais.


Os pouquíssimos candidatos a imigrante que nos têm chegado nos últimos meses de Marrocos (para só referir os que vêm nos jornais) sofrem agruras e têm sonhos tirados a papel químico dos emigrantes portugueses de outrora. Os mesmos contextos sociais. Tratamo-los a pontapé, detemo-los e depois deportamo-los, como já fazemos a africanos aliás a africanos, asiáticos, brasileiros. Com o aplauso parcial mas substancial de um povo amnésico e mal-agradecido, que – nas redes sociais – faz figura de novo rico e despreza um estatuto social a que pertenceu ainda há meia dúzia de anos. A que pertence: entre os que se foram na ilegalidade e os legais, Portugal é um país de migrantes. Calcula-se que haja outros tantos 10 milhões fora de fronteiras.


Lá e cá, os migrantes são gente que ajuda a crescer os países de acolhimento e de que esses países precisam. Para fazer o que os autóctones recusam, para combater a erosão demográfica, para literalmente sustentar povos envelhecidos e com saldos negativos da Segurança Social. Em Portugal, só os imigrantes que trabalham por conta de outrem (tirando, portanto, os que trabalham por conta própria) contribuem com mais de 600 milhões de euros para a Segurança Social. Gente predominantemente nova, trabalhando para pagar as reformas de gente velha de um país envelhecido.


Sem eles o País nunca vai crescer: um estudo mundial da revista The Lancet saído há dias dá conta de que, a continuar esta taxa de proliferação demográfica em Portugal, em 2100 seremos… 5 milhões. Precisamos de gente nova e que faça filhos. Muitos filhos!


Tal como a Austrália, terra de imigrantes, esta terra de emigrantes e imigrantes é fértil na destruição de sonhos. Quando a classe política sonhou que podíamos estar nos primórdios de um êxodo, baseada em 20 jovens sonhadores que desembarcaram em terras algarvias no período de oito meses, vá de recambiá-los, para dar o exemplo. Um país de destruidores de vontades, por força da lei.


Esta é a semana em que ficou provado que, paradoxalmente, há vontades e vontades e não há lei nem regra que arruíne as vontades dos grandes deste mundo. Uns milhões a mais e lá se contornou a cláusula legal: Jesus voltou, graças a um acerto de vontades. Eis um migrante de luxo, daqueles que o povo do Facebook gosta!


A menina da Malveira também vai voltar ao sítio onde foi feliz. Saiu contra os limites do contrato, diz a SIC. Não faz mal, mesmo que a coisa acabe em tribunal, alguém há-de pagar, respondem os outros. E riem-se.


Ele há vontades e vontades. E só há lei para contrariar algumas delas. Para as outras há sempre saída, mais milhão menos milhão. O povo do Facebook aplaude.

João Prudêncio

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