Eletricidade não aumenta velocidade nem passageiros

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Depois de vários atrasos, a eletrificação da Linha do Algarve deverá estar concluída no final de 2023, mas as obras poderão não implicar a conquista de passageiros para o comboio, um meio de transporte que no Algarve não logra vender mais de 2 milhões
de bilhetes por ano para percursos regionais, o que é considerado manifestamente insuficiente para uma exploração rentável da linha.

O valor estimado de investimento na eletrificação da linha do Algarve, cujas obras deverão começar nos próximos meses, é de 65 milhões de euros, com comparticipação dos Fundos de Coesão Territorial da União Europeia. Atualmente está em fase de conclusão o processo de Avaliação de Impacte Ambiental, prevendo-se que durante o 4º trimestre do corrente ano serão lançados os concursos públicos para as varias empreitadas. “Estima-se que no final de 2023 seja já possível percorrer a Linha do Algarve em comboios com tração elétrica, numa infraestrutura modernizada e com enormes melhorias”, disse ao JA fonte da Infraestruturas de Portugal. Ainda é desconhecida a solução para o material circulante, que deverá ser substituído, de forma a permitir a tração elétrica. Fontes ligadas à ferrovia adiantaram que a CP poderá recorrer a material em segunda mão das linhas de Sintra e Cascais.


Nos últimos 30 anos chegou-se a propor a deslocação da linha para sul, a chegada do comboio ao aeroporto e universidade, a retirada da ferrovia do centro de Faro e até a expansão da rede a Espanha, mas nos últimos anos as autoridades nacionais decidiram-se pelo minimalismo dos investimentos. Isso implica vários tipos de continuidade: a velocidade, os tempos de espera e de percurso, a frequência dos comboios e, com tudo isso em banho-maria, o número de passageiros não deverá crescer, conforme disseram esta semana ao JA várias fontes ligadas à ferrovia do Algarve.


“As pessoas não vão passar a utilizar a linha só porque é eletrificada. Há um ganho ambiental mas até ele é diminuído, porque ele seria muito maior se retirássemos pessoas que usam a viatura para as colocar no comboio. Só não há défice de exploração entre Olhão e Faro. Porque são 10 minutos”, disse ao JA o deputado social-democrata Cristóvão Norte, que há alguns dias inquiriu sobre o assunto o ministro das Insfraestruturas, Pedro Nuno Santos, em sede da comissão parlamentar de economia, obras públicas e inovação.

“Em ‘off’ ele acabou por me dar razão. A linha do Algarve não vai beneficiar em nada desta remodelação, do ponto de vista de trazer passageiros para a via férrea”, confidenciou ao JA o deputado algarvio.
Segundo ele, a ideia de intervir na linha do Algarve “é por ser uma alternativa ao modo rodoviário. Para isso, há várias coisas que têm que ser feitas: menos supressões, melhor material circulante, intercidades de cariz regional, que possa fazer trajetos muitos mais rápidos do que os que há hoje: faz-se o percurso Lagos/Faro em 1h40 e toda a linha 3h00”.

Haver ou não havercurvas para ganharvelocidade


“Ninguém está a propor que se invista numa via férrea de um lado ao outro, gastar mil milhões de euros. Mas o problema são algumas curvas que são mais pronunciadas e com pequenas alterações de traçado havia ganhos de velocidade de 20 a 30 km hora. Esbater 4 ou 5 curvas de um lado e do outro. Elas estão identificadas e há mais do lado do sotavento do que do barlavento. Há uma diferença entre andar entre 70 ou 80 km/hora e andar a 120 ou 130. É diminuir 30 minutos. E se de Lagos a Faro passar a ser uma hora, em vez de 1h40, atrai-se passageiros”, enuncia o deputado eleito pelo círculo de Faro, lamentando que “não se conquiste nem mais um passageiro” com a eletrificação, que se limita aos troços Faro/VRSA e Tunes/Lagos, uma vez que o troço Tunes/Faro foi eletrificado em 2004.


“O problema é que os benefícios aqui, para o dinheiro que se está a investir, são mesmo muito curtos. Se ganhássemos 20 ou 30 mil pessoas já era razoável, mas nada, ganhamos zero”, enfatiza o político.


O especialista em mobilidade Alexandre Domingues, técnico da CCDR, concorda que o tempo de percurso entre Portimão e Faro é demasiado alto e adjetiva-o até de “terceiro-mundista”, mas descarta que o problema seja o traçado da linha: “Não há relevo, não há montanhas, pode haver uma ou outra curva que possa ser aparada. Foi o que se fez em 2004 com o Euro. Mas o grande problema da velocidade são os cruzamentos das composições. Pode haver sempre correções de traçado de forma a aumentar a velocidade, mas o problema não passará por aí. Mas há taludes, passagens de nível, material circulante, não haver pontos de cruzamento das várias composições”.

O especialista ferroviário José Caramelo, que trabalhou durante décadas na Linha do Algarve, corrobora: “O traçado atual permite velocidades máximas entre 80 e 120 km/h. Para a natureza do tráfego existente, caracterizado por paragens muito próximas, e que deveriam, numa perspetiva de melhor servir o transporte regional, ser multiplicadas encurtando ainda mais os trajetos entre paragens o aumento de velocidade máxima deixa de ter sentido porque não teria correspondência no aumento da velocidade comercial. O “milagre” que poderá levar as pessoas a optar pelo comboio não será a velocidade, será a maior frequência das composições e a paragens próximas das pessoas. Milagre que existirá quando a decisão individual de optar pelo modo ferroviário não for inibida pelo receio de esperas longas para embarcar. Não será necessário então consultar um horário, porque se conhece qual o tempo máximo de espera”, afirma, evocando também a necessidade de carruagens mais confortáveis, existência de transportes públicos rodoviários de distribuição e de parques de estacionamento.

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“Automotoras” Expo 98 e Euro 2004 não chegaram…


Para aquele especialista da REFER, atualmente aposentado, o objetivo da eletrificação da Linha do Algarve, inaugurada, por troços, entre o fim do século XIX e os primeiros anos do século XX, resume-se a substituir o atual material circulante que é movido a diesel: “Substituí-lo por outro com tração elétrica. Como a extensão da rede ferroviária nacional só em troços residuais não está eletrificada, a CP persegue o objetivo de eletrificar para garantir a mobilidade do material circulante”, enuncia o engenheiro José Caramelo, para quem esta decisão “é pressionada pelo facto de as automotoras existentes no Algarve estarem em fim de vida e a necessidade da sua substituição ser inadiável”.

Mas, como já aqui se sugeriu, a história dos projetos para a Linha do Algarve, que desembocou na minimalista eletrificação, bem se aproxima do adágio popular “a montanha pariu um rato”: com “automotoras” de alta tração como as realizações Expo 98 e Euro 2004, houve projetos a rodos, mas todos eles – à exceção da eletrificação – ficaram na gaveta.


Integrante de vários grupos de trabalho que tinham a mobilidade como pano de fundo, Alexandre Domingues recorda como tudo se processou desde o início do século XX: “Os governos iam caindo. Cada vez que começava um novo executivo retomava-se o trabalho. Depois houve um documento final, em 2008, que previa seis cenários quanto à ferrovia. O cenário zero era não fazer nada. No outro extremo, o cenário seis propunha a eletrificação da linha, a adoção de material circulante novo, e uma visão holística, integrado com outros meios de transporte. Era um cenário mais ambicioso, que passava por um metro ligeiro. Os cenários 5 e 6 eram considerados estruturantes, sobretudo o 6 previa a tração elétrica em toda a linha”, descreveu o técnico ao JA.


O documento de 2008 ficou na gaveta durante todo o período de governação de José Sócrates, para parcialmente ser retomado no Governo seguinte, em 2014, ainda em plena crise económica, com a construção do elenco de medidas Peti3+, que tinha 59 investimentos estruturantes, a implementar de 2014 a 2020. No caso do Algarve, ali se previa a ligação ao aeroporto de Faro e a eletrificação da linha. O executivo seguinte, de António Costa, removeu a ligação ao aeroporto e, no programa Ferrovia 2020, restou a eletrificação da linha. Em 2017, apontava-se a eletrificação, que ficou atrasada depois de se ter constatado que afinal, para efeitos de eletrificação, era necessário um Estudo de Impacto Ambiental. “Com tudo isso, nunca se informou ninguém de quais eram os contornos particulares do projeto. Toda a gente supôs que nesta eletrificação estavam incluídas correções de traçado para aumentar a velocidade”, reforça Cristóvão Norte.

Pegar na linha e trazê-la para baixo


Mas voltando ao documento de 2008, Alexandre Domingues realça que a publicação já ia avisando que, na prática, nenhum dos modelos propostos era rentável, pois não traziam gente para a linha em quantidade suficiente para compensar os custos de exploração. Embora, nos cenários mais elevados (sobretudo o 5 e 6), haja uma evolução da procura.“Mas havia outras vantagens, em termos sociais e de ordenamento do território. Interessante a longo prazo, mas a curto prazo não rentável”.


Longe tinham ficado os tempos do PROT 1991, em que se propunham alterações profundas ao traçado da linha, sobretudo entre Faro e Portimão, onde os principais aglomerados urbanos (Quarteira, Loulé, Albufeira, Armação, Lagoa) não são servidos, “porque a linha foi feita no início do século XX, quando não havia turismo nem concentrações no litoral”, refere o técnico da CCDR. O referido PROT tinha deixado previstos alguns corredores, um dos quais passava abaixo do traçado atual da linha, que servisse todos estes grandes aglomerados. “Mas aquilo que o PROT 91 tinha deixado previsto para eventual estudo de uma linha a sul da atual ficou comprometido pela ocupação do corredor, com campos de golfe e empreendimentos. Na revisão do PROT de 2007 isto já nem é considerado por não haver espaço”, explica o especialista.


Contudo, os mais complexos cenários 5 e 6 do documento de 2008 pressupunham um sistema ferroviário ligeiro a servir Faro, o aeroporto e a universidade. Esses cenários implicam a transformação da linha num metro ligeiro “com limiares mínimos de procura que justificam a sua construção e os limiares que apuraram estão muito aquém desse mínimo. Os tais limiares de procura que foram estimados diziam que não era justificável em termos financeiros mas que a decisão, em última instância, caberia aos políticos”.


Elevar em muito a fasquia dos atuais 2 milhões de passageiros por ano parece pois um objetivo condenado à partida. A Linha do Algarve parece pois estar condenada ao fracasso de exploração. “Só os barcos na Ria Formosa levam mais do que isso. Há mais gente a andar de barco durante dois ou três meses na Ria Formosa do que em toda a Linha do Algarve. E perdeu-se a oportunidade de trazer gente para a ferrovia com a crise de 2009. Houve um ligeiro crescimento dos passageiros no sistema ferroviário, mas depois houve falha ao não se conseguir manter essas pessoas. Assim que sentiram algum desafogo financeiro voltaram ao transporte particular”, afirma o técnico da CCDR.


Com a ligação ao aeroporto adiada para as calendas gregas, está também descartada a hipótese de construção de uma grande gare de Faro fora do centro da cidade, no Patacão, solução de que se falava desde o PROT 91, há três décadas. “Essa solução, da gare do Patacão, não implicava o levantamento da linha, porque o que se pretendia era articular o serviço com o corredor de ligação a Espanha, paralelo, colado à A22 e entrar em Espanha pela ponte do Guadiana. Já o Peti 3+ propõe ligação de alta velocidade a Espanha a longo prazo, mas os espanhóis não querem”, enquadra Alexandre Domingues.

Mais Ferrovia quer comboios dentro das cidades


Dirigente do Movimento Mais Ferrovia, que pretende defender a preservação e modernização daquele meio de transporte, Cristina Grilo – vereadora da Câmara de Faro – critica a já muito defendida retirada da linha da baixa da cidade, considerando que se trata de uma mais valia para a cidade, mas defende o aligeiramento do material circulante. “ A substituição do equipamento circulante pesado, atualmente existente, por comboios ligeiros modernos, tipo metro de superfície, com tempos e espaços de arranque/paragem curtos, que têm a vantagem de permitir adotar medidas minimizadoras dos impactos negativos derivados da existência do caminho-de-ferro em ambiente urbano, designadamente em Faro e noutros povoamentos, onde soluções de reconversão paisagística e de embebimento da via ao nível do pavimento poderão ser concebidas, permitindo o seu atravessamento e dissolvendo o conceito de barreira que prevalece na opinião pública. Para além de estar associado a um transporte de elevada frequência, de elevado número de passageiros, com paragens de proximidade às populações, confortável e que contribui para a defesa de valores ambientais”, disse ao JA.


Ao contrário dos técnicos ouvidos pelo JA, o Movimento Mais Ferrovia – de que também faz parte do especialistas José Caramelo – não considera que o número de passageiros seja mínimo: “ Os comboios não circulam vazios. Em 2017, a lotação média no sentido VRSA – Faro é considerável, mesmo tendo em conta as atuais más condições de transporte, iniciando-se em VRSA com 20 passageiros, em Tavira com 35, em Olhão com 6e e terminando em Faro com 85 passageiros. Em 2017, viajaram 1,2 milhões de passageiros entre Faro e VRSA e 0,9 milhões de passageiros entre Faro e Lagos, sendo que a transferência de utentes entre estes 2 troços foi inferior a 1%, o que implícita a possibilidade de tratar separadamente os 2 troços”, justifica a dirigente, em resposta escrita enviada ao JA.


Advogando uma exploração turística da linha, o movimento, através de Cristina Grilo, reclama também uma ligação Aeroporto – Faro – Parque das Cidades, sustentando que deve haver uma ligação ferroviária ligeira que sirva o Aeroporto, a Praia de Faro, Montenegro e a Gambelas/Universidade, que, em articulação com o troço Faro-VRSA e com baixos custos ambientais, “constitua um forte fator de coesão territorial e, eventualmente, um embrião de mobilidade ferroviária, a expandir no futuro, interessando a Faro e à região.

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