Felicidade antes e depois da pandemia

Temos vivido numa sociedade que cria a ilusão de que a felicidade plena é possível. Herança ilusória de um discurso neoliberal de um mundo capitalista. Uma felicidade que aparenta sustentar-se em objetivos alcançáveis: um melhor cargo na empresa, melhor carro, a fama, o status… A crença de que a felicidade mora nessa produtividade incessante, faz com que o indivíduo de hoje tenha apostado todas as suas fichas, gasto todo o seu tempo, tempo precioso para quem vive sem a garantia do amanhã. Tudo em prol e consequência do Mercado, que justifica o consumismo e a competitividade. Competitividade que separa, que segrega. Como diz António Quinet no seu livro Psicose e Laço Social: “discurso que sobrepõe o mercado à sociedade, ao sujeito, aos laços sociais. Um discurso sem lei, paradoxalmente um discurso fora-do-discurso, onde não é possível o laço social”. Como disse Freud em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1920-1923): “o pânico nasce pela intensificação do perigo que afeta a todos, ou pela cessação dos laços afetivos que mantêm a massa coesa”. Será este pânico generalizado que vivemos a nível mundial uma mistura dos dois? Um verdadeiro perigo que nos assola em forma de pandemia, mas também os nossos laços sociais enfraquecidos? Paralelamente a esse discurso que exclui o outro ouve-se cada vez mais falar em termos como “pessoas tóxicas” e o culto ao desapego. O outro sempre como ameaça, como se a toxicidade estivesse sempre fora, ou nesse laço, esse único capaz de nos salvar de discursos totalitários. Será o laço social uma ameaça ao discurso capitalista e por isso mesmo por ele a evitar?

Então surgem as narrativas de auto-ajuda e as técnicas milagrosas que garantem a iluminação. Princípios que sustentam a afirmação de que é possível viver sem angústia. O outro dia uma paciente dizia-me: não entendo porque não sou feliz como as outras pessoas. Eu lembrava-a que ela já havia referido momentos felizes na sua análise e ela concluía: sim, mas isso acontece em alguns momentos específicos! Como ser feliz passou a ser algo obrigatório e que nos afasta diariamente da nossa condição humana. A psicanálise vem contrariar este discurso e citando mais uma vez António Quinet: “coloca-se como a única modalidade de tratamento do mal-estar que considera o outro como um sujeito. O discurso do analista (a psicanálise) constitui a saída do discurso capitalista, forma contemporânea do discurso do mestre”. A atual pandemia põe em xeque a tão desejada “normalidade” enferma. Uma crise que faz atravessar-se no nosso caminho a tão temida e evitada angústia, que mostra que o individualismo é alienante e ilusório, que somos parte de um sistema e que sozinhos não sobrevivemos. Um vírus que ao poder alojar-se no próprio ou no outro revela o paradoxo de que mesmo no facto real de que o outro possa ser uma ameaça e vice-versa, a nossa sobrevivência recai sobre esse laço onde cada um de nós cuida da vida do outro.

Como disse Freud em Mal-Estar da Civilização (1930) a massa mantêm-se unida graças a algum poder e questiona se esse poder poderia ser outro senão o de Eros, que mantém unido tudo o que há no mundo. “E tal como no indivíduo, também no desenvolvimento da humanidade inteira é o amor que atua como factor cultural, no sentido de uma mudança do egoísmo em altruísmo” (Freud, 1930).

Pergunto-me se o vírus apela portanto ao amor como saída para a reinvenção de uma felicidade outra, onde o indivíduo se reconheça e identifique pelo seu vazio fundamental e criador e pela sua pertença a uma coletividade que respeita a diferença e que se alicerce acima de tudo no respeito pela própria casa, pelo planeta terra.

*Cantora e psicanalista algarvia Susana Travassos, membro do Centro Português de Psicanálise – Associação Lacaniana Internacional

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