Região já tem 11 vacas de raça algarvia

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Chegaram a ser 20 mil exemplares, há mais de 40 anos. Mais de dois terços das vacas que pastavam na região eram de raça algarvia. Depois veio o decréscimo abrupto e a extinção completa. De há 20 anos para cá, executaram-se programas de recuperação da raça bovina algarvia, mas as interrupções têm sido muitas. Anda-se a passo de caracol. Duas décadas de esforço e ensaios científicos pariram 11 vacas, pelo menos no Algarve. É pouco, mas melhor do que no início do século

É trágica e feita de muitos avanços e recuos a história recente da vaca algarvia, uma raça singular que durante milhares de gerações ocupou os campos mais verdejantes da região, apurada durante séculos pelo carinho e labor de homens e mulheres.
Os registos mais recentes são do século passado: em 1870 pastavam no Algarve 15975 animais, presumivelmente todos daquela raça, e quase um século depois, em 1955, o número quase duplicou, para 28123 espécimes, 70% dos quais de raça algarvia.


Daí para cá, foi sempre a descer: com a chegada da mecanização, do Turismo e da democratização do consumo de carne, chegaram ao convívio dos algarvios espécies que vieram substituir o animal dócil, precoce no cio e na gestação, de corno distinto característico, pêlo avermelhado, musculado, de força, que puxou arados e forneceu leite e carne a gerações inteiras de gentes do sul. As francesas charolesa e sobretudo a limousine chegavam à região de contrabando no dealbar dos anos 70, animais de carnes cheias e engelhadas, mais atreitas a bifes espessos e tenros do que as robustas fibras das algarvias.


Hoje, dos 19.878 bovinos de raça algarvia cadastrados nos anos 50 restam 11, depois de a raça ter sido dada como extinta e ter sido feito um trabalho de recuperação, como já se disse com muitos avanços e recuos, tragédias e sucessos.


Em fevereiro de 2001, quando o JORNAL do ALGARVE (JA) procurou exemplares da raça nos campos da região, não encontrou: foi preciso zarpar a terras do Baixo Alentejo, nas planícies de Castro Verde, onde um criador detinha uma dezena de espécies, adquiridos 20 anos antes numa quinta de Odiáxere, Lagos. A espécie algarvia desaparecera do Algarve. Era oficial e factual.


Cerca de um ano depois do trabalho do JA, muito depois de a raça ter sido dada como extinta, ainda nos anos 80, a Direção Regional da Agricultura e Pescas (DRAP) faz uma primeira avaliação “à séria” do efetivo existente. Tal como o JA uns meses antes, foram descobri-lo sobretudo no Alentejo. Analisaram, através da utilização de marcadores genéticos, a diversidade morfológica e genética de 43 fêmeas e 4 machos, que lhes foram indicados por antigos criadores da raça algarvia, em explorações da região e do Alentejo, apresentando características morfológicas próximas dos critérios que definiram, no passado, o padrão bovino algarvio.

Exemplar da raça Vaca Algarvia no início dos anos sessenta

Os filhos da extinta geração de 2005


Os resultados do projeto “confirmaram a existência de uma população bovina autóctone, com um nível importante de variabilidade e polimorfismo, a nível morfológico e genético, quer entre animais pertencentes à população, quer em relação a animais de outras raças”, de acordo com um documento sobre o projeto a que o JA teve acesso.


Desse trabalho de recenseamento, que envolveu 257 fêmeas e 72 machos de várias raças, foram encontrados um total de 21 animais da raça autóctone algarvia, ou muito próximos desse ideal de pureza: 18 fêmeas e 3 machos, que se consideraram como bons candidatos enquanto núcleo de partida de recuperação da raça bovina Algarvia.


Segundo o documento, ficou assim demonstrada a existência de uma população bovina Algarvia, que apesar da diversidade morfológica encontrada, apresentou resultados que mostraram claramente que os machos e fêmeas estudados constituíam um grupo distinto e independente.

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O trabalho foi implementado com a preciosa ajuda do professor Alfredo Cravador, especialista em genética da Universidade do Algarve, que acabou por liderar tecnicamente o processo.


O documento reconhece que “infelizmente, o projeto não teve continuidade, nem foram implementadas medidas/ações no sentido da recuperação desta raça, chegando-se à situação presente (2020), em que estão identificados apenas 11 animais, pertencentes a 2 explorações na região, localizadas no concelho de Lagos e Silves”.


Depois de 2005, houve um deserto de seis anos que nos trouxe dos então 21 animais – cinco dos quais foram adquiridos aos então proprietários – aos atuais onze. Da geração de 2005 já não sobram animais, todos morreram. Mas os 11 atuais são descendentes deles.


João Santana, um dos técnicos da DRAP à frente do projeto de recuperação da raça, é crítico do papel do Estado no processo. E considera-o minimalista: “Houve um funcionamento para se fazer o estudo de 2005 e depois terminou por ali, não houve continuidade. Do meu ponto de vista, o Estado devia assumir esta situação, mas o Estado não quer, tudo o que tinha libertou para as associações”, disse o especialista ao JA esta semana.


O seu colega João Cacinello, também técnico da DRAP, corrobora: “Nestes anos houve quase uma nebulosa. Em 2005 os animais que foram identificados deviam ter sido adquiridos pelo Estado e começar a partir daí neste plano de salvaguarda. Esses animais foram-se perdendo, a maior parte deles deviam estar no Alentejo, mas perdeu-se-lhes o rasto”.

As vacas da quinta pedagógica


A associação algarvia é a ASCAL – Associação de Criadores de Gado do Algarve, a quem foi atribuído um papel preponderante no processo. Desde 2011, a associação é responsável pelo Livro Genealógico da Raça Algarvia, e está atualmente a implementar um programa, no âmbito do PDR 2020, que inclui a colaboração da Estação Zootécnica Nacional e da Faculdade de Medicina Veterinária de Lisboa (conservação de sémen e transferência de embriões), que deverá ser integrado no Plano de Ação de Salvaguarda da Raça Bovina Algarvia, de forma a ser assegurada a preservação da raça.


Mas do efetivo de 2005 alguns animais foram abatidos, outros morreram de doença ou velhice. Os machos foram para transportados para o Banco Português de Germoplasma Animal, em Santarém, e foi-lhes retirado esperma, para futuras inseminações.


É o próprio presidente da ASCAL – e proprietário da quinta onde se encontram atualmente nove dos 11 exemplares existentes –, António Figueiras, que conta o que aconteceu depois de 2005: “Havia umas vacas e a coisa não se resolveu. Alguns animais foram sendo abatidos, outros morreram, porque eram velhos. A ASCAL foi buscar cinco vacas. Recuperaram-se essas vacas, que já eram muito velhas, já não eram gestantes. Na associação não conseguíamos ter um pastor para quatro ou cinco vacas e eu acabei por ficar com os animais. Essas duas vacas tiveram duas vitelas, que eu tenho lá ainda. A Isabel Soares [ex-presidente da Câmara de Silves] insistiu e eu dispensei-lhe uma vaca, já com uns 18 anos, que acabou por ter aquela que existe agora na quinta pedagógica de Silves. Além disso, está lá um novilho que eu vendi para lá, criado por inseminação artificial. A vaca de Silves está prenha, já tem uns 7 ou 8 anos”.


O proprietário enfatiza que todos os 11 animais que atualmente pastam na sua propriedade de Vila do Bispo e na Quinta Pedagógica de Silves provêm de dois rebentos, gerados pelo contingente inicial de cinco vacas, adquiridas em 2005 – em conjunto com os dois touros que então fizeram o seu papel de dadores de esperma.

António Figueiras, proprietário da quinta onde pastam nove vacas

Um touro e duas vacas para um vitelo


Do alto dos seus 78 anos de muitas experiências feitos, sempre com a “carolice” da defesa da raça algarvia em pensamento, António Figueiras é capaz de explicar as origens de todos os 11 animais que hoje pastam no Algarve, num emaranhado confuso de avós, pais, filhos e netos, ainda mais complicado com a existência da inseminação artificial.


Embora continue a procriação baseada na cópula natural, é o recurso a essa inseminação que explica o (muito) lento mas sustentado crescimento da raça nos últimos anos, processo explicado por João Santana: “O esperma, retirado do touro com recurso a uma espécie de vagina artificial, é congelado em azoto líquido. Uma ejaculação dá para cerca de 2000 doses de semen. Isso é feito lá em cima, em Santarém. Retira-se a palhinha que contém o espermatozoide e põe-se no útero de uma vaca dadora e depois retiram-se os óvulos. A fecundação é feita depois in vitro e esse óvulo é colocado numa vaca que pode nem ser algarvia. Pode ser de leite ou de carne, uma qualquer. Introduz-se lá. É a que vai dar à luz”, explica o técnico da DRAP.


Acrescenta que uma vaca algarvia (a primeira vaca, ou vaca dadora) pode dar um número variável de óvulos, que pode exceder as duas dezenas, já que os técnicos recorrem à super-ovulação, com base numa hormona que introduzem no animal. “Depois faz-se a fecundação, de que nasce um embriãozinho e vamos colocar na vaca recetora”, explica, enfatizando que a operação, a que chamam “transferência de embriões”, tem a vantagem da rapidez: uma mesma vaca dadora pode produzir dezenas de óvulos que, depois de fecundados, podem ser introduzidos em várias vacas gestantes em simultâneo, parindo todas mais ou menos na mesma altura. E tudo isto pode ser feito em fresco ou com recurso à congelação, nas diferentes fases do processo, o que permite a programação das ações.


“Duma vez tirámos 25 embriões a uma vaca. Com as vacas dadoras que já existem, que são cinco que se pode tirar já, destas cinco podia-se arranjar 50 ou 60. O problema é que nem todo o ano se pode fazer este trabalho. E estamos dependente de um só veterinário, que vem de Lisboa para aqui e tem muitos serviços. Às vezes falha o inseminador”, lamenta João Santana, tentando explicar porque não se anda mais depressa.


Reconhecidamente longe da rapidez desejada, esta recuperação da raça algarvia não se baseia só na afetividade. Um dos objetivos últimos será o lucro, mesmo que ele só chegue daqui a muitos anos e por muito que António Figueiras reclame: “Eu às vezes pergunto à minha secretária técnica ‘tenho lá um boi com 24 meses, afinal qual é o meu papel? Se há semen para que o quero? Já devia estar lá em cima [Santarém]. E eu estou a aguentar com o animal’. Só me está a dar prejuízo. Para recebermos dinheiro elas têm que parir num espaço de 18 meses. Se não parirem não se recebe aquele subsídio. Há subsídio para estas raças. Se se esperar pelas vacas e não se fizer a inseminação, além de não receber aquele prémio dos 18 meses também não tenho direito ao outro. Mas também não tenho isto para enriquecer”.

A futura Carne Algarvia


Mas voltando ao lucro, o técnico João Canicello aponta para longe: “No futuro, os animais têm que ser identificados e evoluir para uma vertente de transformá-la numa raça autóctone, que venha justificar em termos produtivos a incentivar a exploração destes animais. Tem que haver sempre um interesse económico e neste caso é a carne, tal como a carne mirandesa, barrosã.

Há um dinamismo e especialmente aqui na nossa região, em que a restauração terá que evoluir para aproximar dos consumidores aquilo que existe de genuíno no Algarve”. Contudo, ressalva que “para chegar ao patamar da carne ainda falta muito. A urgência agora é a recuperação e a manutenção e a DRAP está muito empenhada neste plano de ação para a salvaguarda da raça bovina algarvia”.


Antes da transformação em bifes – como aconteceu com as vizinhas mertolenga e alentejana e, mais longe, com a barrosã – e do Turismo, o projeto passa ainda pela disseminação dos atuais e futuros exemplares por várias propriedades da região: “O senhor Figueiras tem dificuldade, porque tem que ter estes animais separados, para não haver miscigenações. E queríamos criar um centro de recuperação da vaca algarvia. O objetivo não é ter muitos animais, mas sim salvaguardá-los, para os distribuir pelos produtores que queiram. O sr. Figueiras tem que ter animais separados e não há condições para isso, tem que ter uma pessoa para os guardar”, explica João Santana, asseverando que, em 2019, a DRAP fez uma apresentação desse projeto aos produtores, alguns dos quais ficaram recetivos em acolher exemplares da raça.


“Além disso, ficaram entusiasmados que o centro possa ficar aqui, no barlavento. Há um espaço em Vila do Bispo e esperamos que ele possa receber fundos no âmbito do quadro comunitário 2020-2030”, conclui João Santana, apaixonado pelo projeto mas simultaneamente apreensivo com a periclitância do estado atual do projeto: “Temos muita urgência, é um risco trabalhar com os poucos animais. Basta a doença de um animal para deitar tudo a perder. Ou que a gestação não pegue. A vaca de Silves ainda não pariu, tem oito anos e não conseguia ficar gestante. Agora felizmente parece que ficou gestante”.


Se ficar, o centro pedagógico de Silves ficará com três animais. Que se juntam aos 9 da propriedade do presidente da ASCAL. O Algarve terá então levado 15 anos a parir 12 vacas. Muito pouca evolução para uma raça que, ainda há pouco mais de 40 anos, tinha 20 mil exemplares pastando.

João Prudêncio

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