Remate Certeiro: E num repente caiu-me o céu em cima.

E num repente caiu-me o céu em cima. Agora faço limpezas neste escritório…

Sempre pensei que nunca tinha falado com aquela mulher, e só com o nascer da conversa e a sua confirmação que de facto me conhecia, é que me despertou para a renovação de um tempo bem distante…


Olhei para ela e se a tivesse encontrado na rua, no outro lado da rua, eu teria dado um salto para o passeio onde ela estava para vê-la mais de perto.


Atraente, bonita, olhar que parecia sereno, mas uma enorme impaciência no caminhar. Um caminhar curto, entre uma secretária e outra, tirando o pó nesta e acariciando as flores em plástico, na outra…

Fez este ritual durante uns minutos e até num bem desenhado curvar com elegância, pegando depois num velho tapete colocado por debaixo de umas das secretárias, e abrindo a janela num leve gesto, tão leve como o roçar de uma asa, sacudiu-o duas ou três vezes e nestes movimentos eu descobri cansaço, desilusão, revolta e um pouco do mesmo corpo de antigamente.


Esta negativa afirmação, este movimento de cansaço e desilusão que acabara de descobrir puxou-me para a conversa, já que antes, disfarçadamente, lia ou fazia que lia, uma velha revista, tão velha que ainda trazia fotos do ano em que o meu Benfica, que agora todos tratam por SLB, este numa final europeia, procurando desta forma saber mais coisas sobre esta mulher.

Mas quem será esta mulher, que ainda lhe sobra tanta elegância? Que idade terá? Quem é ela? Que recordações me traz? Terás filhos? E netos? Quarenta anos? Cinquenta? Não sei! Sei que parece mais nova ou talvez não…


Nenhuma indicação, embora saiba que os laboratórios da chamada central das rugas, são especialistas em manter e fortalecer a beleza. Mas não vejo nela, nem tempo, nem vontade, nem disponibilidade financeira, porque até os cremes são caros, para andar a pagar a alguém que lhe restaure todos os traços de beleza…

-Então! como vai ser o seu fim-de-semana? – perguntei.


Ficou no silêncio. Quem sabe se na «euforia» do trabalho, nem sequer me ouviu.

Nesse fim de tarde já há muito que o verão tinha avançado pelo Outono, mas o sol ainda era claro e vivo e de uma das vidraças, via-o escorregar como serpentinas para lá dos montes, tornando, neste desaparecer, o olhar daquela mulher mais brilhante.


E enquanto não acontecia o momento de entrar no gabinete do “dono daquela casa», mas que é paga por todos nós, para lhe fazer uma entrevista, voltei à carga agora com uma atitude diferente, quiçá mais pertinente e mais corajosa.

– Está à porta mais um fim-de-semana!

– É verdade! – respondeu.

Para mim os fins-de-semana, são sempre iguais. São iguais aos outros dias, mas têm sempre algo que os distingue dos outros dias.


Fala com fluidez. Sabe o que diz, mas parece contar cada palavra, para ter a certeza de que tudo o que diz está bem-dito, e pouco depois remata, sem deixar de executar as suas tarefas.

– A minha vida deu um trambolhão e agora com a pandemia, os desastres económicos, a falta de trabalho, tudo piorou e a vida tem sido madrasta para mim. Casei muito nova, tinha pouco mais de 17 anos.


Quando chega o fim-de-semana fico presa a uma grande angústia. Estou melhor a trabalhar do que em casa.

– De repente, como se eu tivesse recuperado a memória, dou comigo a olhar e a conversar com esta mulher há trinta anos. Cabelo da mesma cor, alourado e sem pinturas, como então era na origem. Agora um pouco diferente, parece clareado pelas aguarelas dos laboratórios que rejuvenescem…

Autor/a desconhecido, mas que simboliza o tempo que passa e oxalá a vacina para combater o covid19, seja determinante para apagarmos esta frase


Tal como há muito tempo, contínua com o cabelo preso, quiçá pelo mesmo elástico, embora tivesse ganho ancas e se apresente de sapato raso. Imagino a sua postura se uns saltos altos estivessem a suportar o seu metro e setenta. E ela volta á conversa.

– Divorciei-me. A vida do meu marido era jogo e mulheres. Tenho cinco filhos e seis netos. O mais novo dos meus filhos tem 15 anos e com ele ainda tenho outro com 17 anos que também anda a estudar. Os outros fizeram-se à vida. Têm o seu trabalhinho e a sua casinha. Mas eu carrego a minha cruz e as minhas angústias.


De repente atrás de mim abre-se uma porta por onde passa um rapaz.

– É o meu filho mais novo, o João. Todas as sextas-feiras, vem ter comigo para irmos juntos para casa.


– Oh mãe! Mas eu conheço este senhor. Deve ser importante, porque no outro dia eu vi-o num jornal que estava lá na Escola!


Olhei para o João. Agradeci o entusiasmo como me considerou importante só porque apareci no jornal e depois dele ter dito tudo o que tinha para dizer, acrescentei:


– Aparecer no jornal não significa que sejamos importantes. Os jornais às vezes até trazem fotografias de senhores a sorrir, mas que não têm importância nenhuma, são pessoas vulgares, mentirosos e alguns até roubam. Nem tudo o que aparece nos jornais é importante.

Após uma curta pausa, acrescentei:

– Em que ano é que andas?

– Estou no 10.º senhor. Estou bem. Aplico-me muito. Quero ajudar a minha mãe. Tive um trabalhinho no verão a distribuir pizas e ganhei algum dinheirinho que está guardado num mealheiro para abrir perto do Natal.”

– Porquê só no Natal?”


O João olha para a mãe, como se pedisse autorização para falar e acrescenta:

– O ano passado tivemos um Natal muito mau. Nós nem queríamos prendas, mas sim uma mesa onde pudéssemos comer aquilo que os outros comem. Quando meu pai estava em casa era diferente. Ele não passava o Natal connosco, mas não faltava nada dessas coisas.

A mãe, fez várias tentativas para o interromper, mas o João estava numa direcção e não quebraria o seu rumo.

– O ano passado fomos cantar a algumas casas e não nos deram nada. E numa veja o senhor que nos aconteceu. Quando comecei a cantar com o meu outro irmão e o nosso vizinho Ricardo, atiram-nos com uns baldes de água de cima da varanda. Fiquei muito triste. Chorei toda a noite.

Trabalho artístico brilhante do Dr. Francisco José, médico pediatra, em cujo presépio exposto durante o período natalício no Restaurante Afonso III, em Loulé (tio do autor), se pode ver o menino a ser
amamentado pela mãe


A minha avó Matilde, que mora na nossa casa, às vezes contava-nos histórias sobre o Natal e eu escutava tudo com muita atenção, mas nas histórias dela, nunca entrou nada daquilo que se passou connosco.

O Natal que a minha avó contava era um natal de amizade, de paz, de amor, de sentirmos as coisas, de compreendermos que uns têm mais que os outros, mas não se faziam maldades, como aquela que me fizeram a mim, ao Ricardo e ao meu irmão».


João, falou, falou, e enquanto isso, eu continuava em busca daquela mulher, viajando pelo meu passado. Queria lembrar-me onde teria conhecido aquela mulher. Afinal, quem era ela. Afinal, que angústias marcavam o seu fim-de-semana…


E vendo a minha hesitação, olhou para mim e disse-me:

– Eu sou a Lurdes. Estudámos juntos. Já foi há muitos anos. Lembro-me de um artigo que fizeste para o jornal do Colégio, o “Topa Tudo” onde dizias que a terra tinha a forma de uma pêra”. Sorrimos ambos.

– Mas tu não…”, preparava-me para lhe perguntar

– Sim casei. Tinha uma vida linda. Meu marido caprichou que a sua vida se repartia entre o jogo e o Brasil, e numa das últimas viagens já não voltou. Fiquei só com cinco filhos, mas acabei por criá-los.


A vida foi madrasta para mim. Tinha tudo. Trabalhei dois ou três anos. Ele não queria que eu trabalhasse. E num repente caiu-me o céu em cima. Agora faço limpezas neste escritório e limpo a casa de mais duas senhoras, a quem amigas minhas recomendaram.

Hoje só o covid 19 me poderá empurrar para o lamaçal, porque o resto, e cabeça sempre no lugar, são coisas que me tornam na mulher forte que sempre fui. E vou continuar a lutar para que os meus filhos, olhem para mim com o sempre me olharam e tenham orgulho da mãe que nunca os abandonou e tudo tem feito para que com todas as limitações sejam felizes.


Olha, gostei de te ver – disse-me ela, com vontade de me perguntar: o que é feito de mim…

Mas ela já não conseguiu, porque ao abraçar-me, vi que duas lágrimas vestidas de tristeza lhes rasgaram as faces. Cumprimentei-a como antigamente, com um beijo no rosto. Estava a chegar a hora da entrevista e ainda ouvi o João dizer: “Senhor, este ano, apesar desta pandemia, nos estar a fazer a cabeça meia avariada, vamos ter um bom Natal…”


Oxalá seja mesmo assim, no coração de todos nós…

Neto Gomes

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