Viver entre barragens mas beber do furo

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A viver entre as barragens de Odeleite e Beliche e a mirá-las a partir de suas casas – cerca de 1000 pessoas de 32 aldeias do concelho de Castro Marim nunca tiveram água canalizada. Esquecidos e abandonados, recorrendo a furos e depósitos, vão ter agora a oportunidade de beber água potável diretamente das torneiras das suas habitações, graças a uma obra da Câmara Municipal de Castro Marim, agora concluída. O investimento aproximado foi de 5 milhões de euros

“Da minha porta vejo a barragem de Odeleite, que fizeram já há alguns anos e eu nunca me servi dela. Quando estou em casa e quero beber água, tenho que ir buscar ao depósito, na rua. E temos de estar assim, até que eles queiram. Dizem que há-de ser, e nunca mais chega. Continuo à espera”, lamenta ao JA José Pedro Pereira, de 88 anos, residente em Choça Queimada, que ainda desconhece a mais recente obra da Câmara Municipal de Castro Marim, que vai levar água potável às torneiras, através de pontos de entrega da Águas do Algarve.

José Pereira residente em Choça Queimada
José Pereira continua à espera que a água potável chegue à sua torneira


Quando o JA informou José Pereira acerca da conclusão das duas primeiras fases da obra e que a água potável ia correr na sua torneira em breve, o morador da aldeia afirmou que “isso já vai ajudar”.


“Já vai fazer três anos que começaram as obras. Assim já não preciso de ir buscar água ao depósito e bebo diretamente da torneira”, refere José Pereira, encostado a um muro, na companhia da sua bengala, no centro da aldeia, vazia.

Uma vida à espera da rede, entre duas barragens


“Estou uma vida toda à espera da rede, entre duas barragens”, lamenta por seu turno António Domingos ao JA, de 76 anos e natural da aldeia de Casa Branca, uma localidade onde vivem cerca de uma dezena de pessoas.


Sentado entre a sua casa e o seu terreno agrícola, Domingos, como gosta de ser chamado, refere que usa água do depósito abastecido pela autarquia “para fazer comida e beber”, mas lamenta os problemas que o furo daquela localidade está a causar neste momento.
Aquele furo “não secou no verão”, mas Domingos pediu à Câmara Municipal para resolverem o problema, pois “quando houve recentemente uma trovoada, deve ter havido alguma complicação e agora não funciona”.


Para beber, enche garrafões, mas há pessoas que querem água “para meter num tanque ou para lavar roupa nas máquinas, com as bombas para criar pressão, mas se não há água, não podem trabalhar”.


No seu terreno, cultiva “uma mão cheia” de cebolas, batatas e couves “para passar o tempo”, que é regado através de um furo “que trabalha duas horas por dia: uma de manhã e outra à tarde”.

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Antonio Domingos. créditos Gonçalo Dourado
Antonio Domingos junto ao depósito de água potável


Em relação à nova rede de abastecimento, Domingos, que vive em Olhão mas passa entre quatro e cinco dias na Casa Branca, refere que “só falta ligarem às casas e já há quem tenha feito a requisição dos contadores”.


“Agora com a nova rede ficará mais fácil, mas vamos ter de puxar pela carteira. Temos de pagar a água, o lixo e as outras taxas. Fica um bocado mais caro”, confessa, principalmente agora, quando se gasta mais água porque “temos de lavar as mãos mais vezes devido ao bicho” da covid-19.


No entanto, continua a questionar: “Agora quando virá essa água da rede?”. É para breve, garante a autarquia.

Uma obra que já deveria ter sido feita


A água canalizada do sub-sistema central vai chegar em breve à casa de 32 povoações, abastecendo cerca de 1000 pessoas do interior do concelho de Castro Marim, através de uma obra que já deveria ter sido feita quando foram construídas as barragens de Odeleite e do Beliche.


“Em muitos destes aglomerados consegue-se ver as barragens, aumentando a angústia e a revolta nas pessoas”, destacou ao JA a vice-presidente da Câmara Municipal de Castro Marim, Filomena Sintra.


As duas barragens foram uma obra da Administração Central e, naquela altura, “não houve a preocupação” de levar água canalizada potável às localidades daqueles territórios.


“Na minha opinião, o mínimo exigível é que as aldeias e aglomerados confinantes, em contrapartida dos efeitos do impacto negativo da barragem, fossem recompensadas”, acrescenta.


Filomena Sintra destaca as barragens como “as duas principais reservas de água de abastecimento para todo o Algarve” e que os residentes destas aldeias “ficaram sem os seus terrenos mais férteis, nas zonas mais baixas e nunca foram recompensados de alguma maneira”.


“Sinceramente, faço uma critica à gestão política entre o município e a Administração Central”, confessa a vice-presidente, destacando que “é o município, paupérrimo em termos financeiros, com o seu orçamento municipal, que tem de construir a rede”.

Intervenção de milhões para levar água a milhares

Mapa do Sub Sistema Central de abastecimento de água de Castro Marim


Esta obra, que teve um investimento total superior a quatro milhões de euros, um investimento elegível de mais de 3,5 milhões e um contributo do Fundo de Coesão de três milhões, “representa um investimento de três ou quatro anos no concelho de Castro Marim”, onde se teve de “abdicar de muitas outras coisas, mas é uma questão de dignidade e respeito pela vida humana”.


Choça Queimada, Corujos, Sentinela, Corte Pequena, Fernão Gil e Alta Mora são algumas das localidades abrangidas por esta intervenção, cujas candidaturas foram apresentadas em 2016.


Após as duas primeiras fases desta obra estarem concluídas, está agora em execução da rede de abastecimento que vai levar água canalizada potável às localidades do Rio Seco, Pisa Barro de Baixo, Pisa Barro de Cima, Casas Novas e Matos.


Para o futuro e a aguardar oportunidades de financiamento, ficam outras áreas localizadas próximo da barragem do Beliche, como Vale do Andreu, Corte do Gago e Barreiros, ou perto da ribeira de Odeleite como os Fortes. No total serão mais 18 pequenas localidades a serem servidas pela rede pública de água.


A vice-presidente do concelho do sotavento algarvio dá o exemplo da Cortelha, “um aglomerado significativo e que tem dinâmica”, mas que ainda não foi abrangido nesta obra “porque o fundo limitava o financiamento a 3,5 milhões em Fundo de Coesão e não podíamos candidatar mais do que isso, senão era excluído. Acertámos o projeto à medida daquilo que era o fundo disponível”.


“Vamos agora ganhar força e arranjar oportunidades de financiamento”, acrescentou.


Paralelamente a este projeto, a Câmara Municipal de Castro Marim avançou com outra candidatura para aplicar medidas de minimização e poupança de água, “nomeadamente no controlo remoto dos jardins, seccionamento de condutas para que se consiga controlar e perceber em que zonas se está a perder água”.

Abandono completo

Barragem de Oldeleite . créditos Gonçalo Dourado
Barragem de Odeleite em novembro 2020


Para Filomena Sintra, o facto de não existir água canalizada em várias aldeias do concelho é “um fator de abandono completo e de despovoamento do território. Basta imaginarmo-nos a viver em condições dessas. Há pessoas nessas aldeias que vivem em condições muito difíceis”.


“Fazemos este investimento porque acreditamos que isso será um fator para se voltar a viver nestas aldeias, que estão muito próximas do litoral”, acrescentou.


Estas localidades pertencem ao interior algarvio, mas encontram-se a poucos quilómetros e escassos minutos do litoral, o que para a vice-presidente de Castro Marim pode juntar-se à “valorização cada vez maior daquilo que é um espaço para respirar e viver de forma mais saudável”, em tempo de pandemia de covid-19, tornando aquele território mais atrativo.


A vice-presidente considera ainda que “a água e as comunicações são uma condição necessária para repovoar” e revelou ao JA que a autarquia está a apostar também num projeto piloto nas Furnazinhas para melhorar a rede de telecomunicações, integrada na lista de projetos alavancadores do Algarve pós-covid-19.

As pessoas que melhor de adaptam à falta de água

Deposito e torneira de água em aldeia Choça Queimada
Depósito e torneiras de água potável localizados no centro da aldeia de Choça Queimada


“Estas são as pessoas que melhor se adaptam à falta de água no Algarve”, salienta Filomena Sintra ao JA, referindo-se aos cerca de 1000 residentes das aldeias abrangidas por esta nova obra de infraestruturas de abastecimento de água em Castro Marim.


Antigamente recorriam a poços, mas hoje usam os furos, por vezes secos, ou sem condições de exploração e os depósitos que são abastecidos diariamente pela Câmara Municipal liderada por Francisco Amaral. Mas isso vai mudar em breve.


Desde 2014, a autarquia procede a um controlo analítica da água à saída de cada um dos reservatórios e faz o seu tratamento, algo que não era feito anteriormente. Até esse ano, “não eram feitas análises, acompanhamento, monitorização nem calibragem da água”, sublinha Filomena Sintra.


“As pessoas habituaram-se. O consumo delas corresponde às perdas de água dos jardins de uma cidade, que não é nada. No litoral, em média, consumimos cerca de 300 litros por habitante, o que já é muito”, refere a vice-presidente ao JA.


Segundo Filomena Sintra, os habitantes destes pequenos aglomerados populacionais “vivem com 20 a 40 litros de água por dia e não precisam de medidas de poupança. Aqueles que têm pequenas hortas é que poderão de ter de fazer um ajustamento daquilo que é o consumo de água, porque passa a ser paga”.


Estas pessoas têm outras formas de conseguir água e outros depósitos, mas de manhã, para tomar banho, pode faltar. Ainda é outro Algarve”, concluiu.

Gonçalo Dourado

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