“Escondia livros num pombal, para a PIDE não os apanhar”

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Libânio Santos Jorge vende livros há mais de 50 anos. Esteve na Imprensa Nacional Casa da Moeda, na Central Distribuidora Livreira, na Lello, na Grolier Portugal, onde foi o melhor vendedor do país durante três anos consecutivos, e na Caminho, da qual foi cofundador e responsável pela livraria de Santarém. Abriu a sua primeira livraria em Alvalade (Lisboa), um espaço que era frequentado por muitos ilustres da literatura portuguesa que aí conseguiam adquirir, clandestinamente, alguns dos livros proibidos pelo antigo regime. Mais tarde instalou-se no Algarve, na zona de Loulé, e em 2001 abriu a Livraria Lusíada em Vila Real de Santo António

DOMINGOS VIEGAS

O que é que o levou a enveredar pelo negócio dos livros?
Em primeiro lugar, porque gosto muito de livros. Gosto mesmo muito. E também gosto de proporcionar às pessoas a possibilidade de terem acesso ao livro, que é uma coisa que me preocupa desde muito novo. Trabalhei para várias editoras e depois avancei com o meu próprio negócio.

Onde é que começou por sua conta?
Abri a minha primeira livraria em Lisboa, em Alvalade. Aí conheci muitos escritores. Era frequentada por Urbano Tavares Rodrigues, José Vilhena, José Gomes Ferreira e muitos mais. Depois fui para o Bairro Alto, onde tive clientes como Batista Bastos, Luís de Sttau Monteiro, Mário Soares, Maria Barroso, Vasco da Gama Fernandes, Jorge Sampaio… Estaríamos aqui todo o dia se lhe dissesse todos os nomes. A livraria de Alvalade era um espaço pequenino, mas era uma referência. Naquela altura havia coisas que era necessário divulgar, e que as pessoas tinham muita dificuldade em adquirir, porque não era permitido vender tudo. E eu tentava fazer-lhes chegar esses livros.

Quando fala na “dificuldade em adquirir”, refere-se à Censura do antigo regime?
Exatamente. O 25 de Abril de 1974 ainda não tinha chegado. A Censura proibia tudo o que cheirasse a mexer com costumes, com hábitos, com evolução e com a liberdade de pensamento. Simplesmente não permitiam a venda desses livros.

Então vendia-os às escondidas?
Às escondidas e com muito cuidado, porque era preciso guardar a vida. Vendia livros da Seara Nova, da INOVA do Porto, da Estampa, tudo editoras que lançavam coisas boas, mas que eles não gostavam. A PIDE visitou muitas vezes a minha livraria, mas nunca conseguiu apanhar um único livro desses. Nunca. O Barata, na Avenida de Roma, era o mais sacrificado, porque tinha um género de barracão atrás da livraria e eles entravam por ali dentro e faziam o que queriam.

O que é que fazia para não ser apanhado?
Eu escondia os livros num pombal. Ainda hoje dá-me um gozo enorme quando recordo isso. Os inspetores da PIDE e as senhoras que iam disfarçadas à procura dos livros entravam e, depois, eu via-os sair muito aborrecidos, porque eles sabiam que eu tinha livros proibidos mas não conseguiam encontrá-los.

Como é que surgiu a ideia de abrir uma livraria em Vila Real de Santo António?
Isso já foi muito mais tarde, em 2001. E devo-o aos professores da Escola Secundária. Quando fazia venda direta visitava os estabelecimentos de ensino e pedia autorização para ir às salas de professores. Nesses contactos, eles incentivaram-me a abrir uma livraria. Antes, ainda tive uma livraria em São João do Estoril. Na altura que vim para cá já estava instalado na zona de Loulé, onde criei a feira do livro de Vilamoura. Gostei muito de Vila Real de Santo António, acabei por comprar um apartamento e instalei-me aqui.

Recorda alguma história curiosa desses primeiros tempos?
Lembro-me de várias… Por exemplo, o padre passava à porta da livraria e nunca entrava. Era o padre Miguel, que agora está na Câmara. E eu queixava-me às catequistas: então o padre passa aqui todos os dias e não entra? Tem medo que isto lhe caia em cima? Um dia ele parou, eu estava à porta, e disse-me que já sabia o que eu andava a dizer. Confirmei e reforcei: é verdade, agora mesmo está aí à porta e ainda não entrou, mas pode entrar. Então o padre disse-me: como é que o senhor quer que eu seja seu cliente se o senhor não é meu cliente. E eu respondi-lhe: como é que o senhor sabe que eu não sou seu cliente? Já perguntou ao seu patrão? Depois perguntou-me por uma Bíblia ilustrada pelo Gustavo de Ourique, compro-a e, posteriormente, já comprou um ou outro livro.

Quem é que compra livros? Qual é o perfil do seu cliente?
Ao contrário do que se possa pensar, consigo contar com os dedos as pessoas com algum conhecimento, com saber e com formação académica que me compram livros. Se calhar tenho doze ou treze clientes nessas condições. Também noto pouca presença de professores. Tenho uma grande consideração por esta classe, trabalhei com eles muitos anos de norte a sul do país, e sinto a sua falta na livraria. Porém, e curiosamente, a maioria dos meus clientes são pessoas humildes, com menos possibilidades económicas e com menos habilitações. E também estrangeiros.

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Estrangeiros?
É verdade. Tenho muitos clientes espanhóis que procuram autores portugueses. Compram estes livros porque estão a estudar português e também há professores espanhóis que compram para eles e, por exemplo, para escolas de línguas. Também tenho clientes de outras nacionalidades. São ingleses, franceses ou alemães que, provavelmente, também estão a aprender português e procuram autores portugueses. Uma parte significativa das minhas vendas é feita como estes clientes. São estas pessoas que mantém esta casa.

E o que é que mais se vende?
Além dos autores portugueses, que são muito procurados pelo cliente estrangeiro, agora também se estão a vender bem os livros fantásticos, do estilo Harry Potter e outros. Há muitos jovens e adultos jovens a comprar. Também se vai vendendo um ou outro romance histórico, alguma poesia. Mas, aqui, os mais vendidos são os que eu chamo os livros das coitadinhas.

…das coitadinhas?
São aqueles livros que contam as histórias de mulheres que sofrem, que são violadas ou assassinadas, que são queimadas vivas, algumas delas no Oriente. São livros que contam experiências vividas, de sofrimento. E os principais clientes destes livros são precisamente senhoras, a maioria sem grande formação académica.

Tem algumas explicação para isso?
Porque a violência existe, é real. E há pessoas que, às vezes, esquecem-se disso. As pessoas que compram este tipo de livros gostam de conhecer estas realidades. Outras, provavelmente, criam analogias com a sua própria vida.

A procura desse tipo de livros acontece em todo o país ou Vila Real de Santo António é uma exceção?
Comum a todo o país não será, mas acontece em várias zonas por onde eu passei. Os sociólogos poderão saber melhor se há alguma razão para isso. Mas todos sabemos que, até há poucos anos, quando uma senhora apresentava queixa às autoridades por violência doméstica era-lhe sugerido que voltasse para casa, que fosse para junto do marido e até chegavam ao ponto de lhe dizer para ter juízo. As mulheres não tinham qualquer possibilidade de se defender, porque o sistema funcionava dessa forma. O homem era o marido, o chefe de família e era quem mandava lá em casa.

Mas como é que está o negócio dos livros?
Algumas livrarias vendem menos e outras até fecham. Isto necessita é de profissionalismo. O livro é um negócio e, como em qualquer outra atividade, ou se gosta ou não se gosta. É uma coisa que dá muito trabalho, requer uma grande atenção, é preciso ler, gostar, fazer formação, incentivar. Apesar de haver muitas dificuldades, há muita gente que, felizmente, não quer deixar de ler e educa os filhos para ler. Mas também há injustiças que afetam toda a gente.

A que é que se refere? Quais são essas injustiças?
Refiro-me aos impostos, que são absolutamente injustos. Afetaram os que fecharam e está a afetar os que estão a fazer esse trabalho de incentivar à leitura. Muitas vezes sentimos que estamos a lutar contra a maré. Há países da Europa em que os livros pagam um por cento de imposto, noutros ainda menos, mas em Portugal o livro paga seis por cento de IVA. Porque carga de água? Dizem que isso não é nada, que não tem importância, mas até parece que vivemos num país que não precisa de ter pessoas a ler. E depois não é só os seis por cento do IVA, é o papel, a tinta, por aí fora… Tudo isso paga impostos e encarece o livro. E, por outro lado, o pouco apoio que as entidades locais dão ao livro.

Como é que poderia ser feito esse apoio por parte das entidades locais?
Quanto maior for a divulgação, através de iniciativas que promovam a leitura e os livros, maior será a possibilidade de haver mais gente a querer comprar livros. Por exemplo, iniciativas como o Sinónimos de Leitura, que decorreu recentemente ali na Biblioteca de Vila Real de Santo António, são importantíssimas. O apoio às feiras do livro também é fundamental, tanto para a divulgação como para a venda. Os encontros literários, as tertúlias, todas essas iniciativas são extraordinariamente importantes. E as livrarias não podem estar fora dessas iniciativas.

Mas atualmente já há muitos municípios a realizar esses eventos…
Há muitos municípios que o fazem, mas também continua a haver muitos que não o fazem ou o que fazem é muito pouco. Até percebo que alguns fazem aquilo que está dentro das suas possibilidades. Quando as bibliotecas locais e outras instituições precisam de livros, em vez de irem comprar aqui e acolá, por causa de uma diferença de 20 ou 30 cêntimos, também era bom que se lembrassem que nós existimos, para podermos viver.

E em relação ao consumidor particular? As grandes superfícies continuam a ganhar terreno às livrarias tradicionais…
Nestes meios mais pequenos, é normal que as pessoas se desloquem até aos centros comerciais e aos hipermercados para se distrair, sair daqui durante umas horas, dar um passeio… E às vezes convencem-se que vão comprar mais barato, mas não é bem assim. Eu tenho a preocupação de verificar os preços que são praticados nos grandes espaços e as diferenças são mínimas ou nenhumas.

A variedade não terá também alguma influência?
Se não tenho determinado livro aqui, no máximo, em 48 horas, salvo raras exceções, está na mão do cliente. Temos um acordo com os editores e conseguimos fazê-lo. Mas muita gente talvez não saiba disso.

Elogiou as iniciativas das bibliotecas. Quer dizer que não considera que estas representem uma ameaça às livrarias…
Claro que não. Antes pelo contrário. O mais importante de tudo é a leitura. Tomara eu que as bibliotecas estivessem sempre cheias de leitores. Se vão lá é porque gostam de ler e se gostam também sentem a necessidade de ter um livro.

…e as novas tecnologias?
Eu sou a favor das novas tecnologias. Se alguém quiser fazer uma investigação sobre um determinado tema consegue mais facilmente e mais rapidamente, por exemplo, através da internet. Mas se alguém tiver a cultura do livro, a cultura de ter o livro, de sentir o livro, de cheirar o livro, de querer ter o livro, de olhar para o livro… As novas tecnologias não podem dar isso. O livro é um objeto de prazer. Eu gosto de livros. Posso não ter grandes coisas na minha casa, mas tenho livros em todos os espaços. Hoje pego num, amanhã pego noutro, depois apetece-me ver uma quadra do Aleixo… É verdade que há muitos jovens agarrados aos computadores e não aos livros, mas as novas tecnologias também têm ajudado à divulgação e permitido que se leia mais e que haja mais jovens interessados. O perigo não está nas novas tecnologias.

Então onde é que está esse perigo?
A ameaça aos livros, à cultura e a uma informação plural está muito mais além do que isso. O perigo está nas orientações que se dão em termos de formação, de instrução, de educação e de transmissão de pensamentos. Está em privilegiar a competitividade em detrimento de uma abertura de caráter participativo. Está em fomentar as desigualdades, permitindo que uns tenham muito e outros pouco. Quem vive com grandes dificuldades certamente não compra livros. Não compra livros e não compra nada. E o ser humano parece que ainda não se apercebeu disso. O ser humano está sempre em construção, mas ainda está muito atrasado.

Acredita no futuro das livrarias?
Acredito, mas têm que ser apoiadas. Os órgãos de comunicação devem informar acerca das iniciativas que se vão fazendo e ajudar a incentivar o gosto pela leitura. Os agentes económicos e culturais têm que estar de mãos dadas, entre eles e com os livreiros, para dar uns empurrõezinhos. O trabalho realizado nas bibliotecas, as feiras do livro e a disponibilidade dos professores, principalmente os do ensino básico, também têm uma importância enorme. É assim que se pode despertar o gosto dos jovens pela leitura. Mas os livreiros também têm que ter a sua quota de responsabilidade.

E de que forma é que o livreiro se pode ajudar a si próprio?
Por exemplo, é preciso ouvir as ideias dos mais novos. É preciso inovar, ter a coragem de fazer diferente, não ter medo que lhe apontem o dedo. O livreiro tem que ser assim. Tem que ter caráter, tem que trabalhar. Não pode estar apenas a querer pôr-se de bicos de pés para se mostrar, porque isso não faz diferença nenhuma.

(Entrevista publicada no suplemento JA Magazine integrado na edição impressa do Jornal do Algarve de 25/05/2017)

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