Esperando a primavera

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Colaboradora. Designer.

Distantes no tempo vão os serões onde já vinham as recordações do passado. Lembro – era dos mais novos – o cepo a arder nas noites de Inverno. As faíscas saltavam, vinham morrer no pêlo ondulante do “Lorde”, cão de caça, que nos acompanhava, fiel, com a cabeça deitada sobre as patas. Era um cão de rara inteligência, muito conhecido em terras de Mértola, onde o chefe da família, exímio caçador, se havia fixado por exigência profissional, rumando mais tarde para terras do Algarve. Os olhos do “Lorde” miravam a moldura. Parecia compreender o interesse das conversas. Conhecia-nos pelo nome e acompanhava-nos no percurso para a escola. À saída lá estava ele para nos trazer de regresso, prática reconhecida por outros alunos e professores. “Sabia as horas pelo seu relógio”.
Batia com o rabo nos ladrilhos queimados. A cinza que se introduzia nas pequenas estaladelas, muito velhas, andava no ar. Rosnava, tentava morder as faíscas. Era uma graça para os mais pequenos, cuja presença nem sempre era consentida. As gargalhadas da inocência, sonoras, ouviam-se por toda a casa, sinal de vida, que despontava e havia de continuar com a presença da estrutura da família.
O aborrecimento do “Lorde” era sentido com os pauzinhos de estevas, que introduziamos nas grandes orelhas, que “destapávamos”. Por vezes perdia-se o sentido da conversa provocado pelo entretenimento. Lá vinha o ralho; o calem-se; a bofetada leve, a esquiva. Fazia-se silêncio solene quando se falava de guerras, perseguições, injustiças e prisões; de ditaduras e de política. O serão não terminava sem contestar o governo, que matava, perseguia filhos da pátria, mergulhando-a no atraso, isolamento. Se alguém passava na rua a conversa parava; recomeçava depois do ouvido se ter colado à porta com um sinal de entendimento… A união da família estava presente. Sofria com a notícia da prisão política; da fuga, da morte. Alimentava a esperança de um país livre e digno. Nem sempre compartilhávamos da presença no serão. Não se repelia ninguém. Pensamos que aí residia a chave da união, da compreensão, para ouvir o que necessitava de esclarecimento.
O tempo passou veloz. Os novos cresceram. Foram chamados para a guerra, que não queriam. Herdaram, sem imposição, os ideais que achavam justos. Tinham que matar; tinham que morrer. Com eles o pensamento dos que ficavam. A dor, a incerteza do regresso; a má notícia. A condecoração a título póstumo, acompanhada do discurso hipócrita, mentiroso. Pela pátria morreram; os que voltaram já não quiseram ficar. Foram em busca de outra, desiludidos, traumatizados, pensando em voltar para uma pátria livre. Os homens maus tinham que ser combatidos, afastados do poder.
Eu fiquei só. Neste dia, com o céu carregado de nuvens cinzentas, as folhas a cair, as árvores a retomarem o aspecto triste, sinto-me só. Vagueio metido em pensamentos, recordações. Lembro os serões; os que partiram para sempre, as conversas. Sinto o escorregar duma lágrima. Sob os pés as folhas amarelas estalam vencidas pelo tempo de vida. Parecem querer isolar-se. O vento pega-lhe e leva-as. Com elas a visão dos que morreram de armas na mão.
Paro. Contemplo as árvores que se despem. Falo-lhes. Acaricio-as. Encosto-me. Ouço um murmúrio. Ao canto (na esquina escura), um jovem casal sonha. Pensarão que os observo. Olho, mas não os vejo; passo, escondem-se de mim; jogo as pernas, piso degraus sem fim; levo as mãos pelo corrimão frio de mármore e escuto à porta a notícia da morte, que condeno porque limita a continuação duma vida, que merece ser vivida. Grito e ninguém ouve. Tudo é silêncio no eco. Revolto-me contra os que mostram fraqueza, temem a morte depois de terem sonhado comprá-la. Repartiram os “seus” bens com a avareza; pagaram a perseguição cruel dos que pensavam obrigando-os a atravessar rios, montanhas. Para trás ficava a família, os amigos, a pátria, mas a esperança continua viva – com a certeza que a Primavera vai chegar.

António Gil

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