Fazer ciência aqui é ter um livro em branco para escrever o que se quiser

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A investigadora escocesa do CCMAR Deborah Power, 61 anos, residente no Algarve há 32 anos, foi eleita há dias membro correspondente estrangeiro da Academia Real de Ciência e Artes de Barcelona. Entrevistámos a cientista

A nomeação para esta restrita instituição é um reconhecimento da comunidade científica da Academia pela carreira de investigação e currículo da professora da Universidade do Algarve, que implicou uma nomeação por um dos membros da Academia e consequente aceitação pelos restantes.

A Real Academia de Ciências e Artes de Barcelona é uma associação de especialistas em ciência e suas aplicações, restrita no número e na seleção dos seus membros, com o objetivo de promover e tornar-se uma referência para a cultura e a sociedade catalã no que diz respeito às ciências e artes puras e aplicadas.

Fundada em 1764 como sociedade literária privada, a Academia é uma das mais importantes bibliotecas espanholas devido à abundância de obras científicas com mais de três séculos, um arquivo histórico e foi responsável pela criação do Observatório Fabra, localizado nas encostas superiores das montanhas de Collserola.

JORNAL do ALGARVE (JA) – Sei que foi eleita correspondente estrangeira da Academia Real de Ciência e de Artes de Barcelona. Que trabalho é este e o que significa para si?
Deborah Power
– É o reconhecimento dos pares da área científica, de uma sociedade restrita de cientistas que estão escolhidos, os mais proeminentes deles. Primeiro é emitido um convite e a seguir é avaliado o currículo. A avaliação é feita pela Academia e depois vão avaliar e depois vão convidar ou não, consoante o aval a nível do currículo. Em termos daquilo que tenho trabalhado ao longo dos anos, é o reconhecimento do esforço e do impacto da minha personalidade científica. É uma grande honra, não é muito vulgar.


JA – A Débora já pertencia a esta academia?
DP
– Não. Na minha área sou agora a presidente da Sociedade de Endocrinologia Comparada, tanto a europeia como a internacional.


JA – Que tem a ver com glândulas, não é?
DP
– Exatamente. Com as hormonas que regulam a obesidade, o crescimento, a diabetes. A nossa perspetiva comparada não é medicina, todos os organismos têm este processo regulatório. Por exemplo, quem produz vacas tem que conhecer alguma coisa sobre o ciclo reprodutivo e isso é controlado pelos fatores endócrinos. E isso tem uma grande aplicabilidade, não é só os humanos. E isso vai ser utilizado para efeitos de produtividade, ou até a nível de biodiversidade. As modificações climáticas podem ter impactos muito negativos, mesmo a nível das águas do mar, quando há um contaminante, provoca uma modificação do sexo nos animais. Não se reproduzem tanto e começamos a ficar com cada vez menos animais.


JA – Assim como foi a Débora a ser escolhida, poderia ter sido cada um dos seus pares, independentemente da sua área de estudos.
DP
– Exatamente. A Academia é composta de pessoas de uma grande diversidade de áreas científicas, da matemática até às artes.


JA – Porque acha que a escolheram a si?
DP
– A visibilidade e a minha produtividade. Eu já não sou nova. Acaba por ser um reconhecimento por tudo aquilo em que tenho colaborado, tenho colaborado com muitas pessoas, dirijo as sociedades europeia [Sociedade de Endicronologia Comparada] e internacional [Federação] nesta área da endocrinologia. Essa Federação junta as várias sociedades debaixo do mesmo chapéu e basicamente eu sou a presidente da Federação que tem dentro dela uma diversidade de diferentes associações nesta área científica. E assim a pessoa acaba por ter alguma visibilidade. Acabamos por criar esta rede de contactos e que tem a ver com o nosso perfil internacional. Porque é que acontece? É difícil saber, mas claramente houve uma pessoa que me nomeou.


JA – Essa eleição foi há poucos dias?
DP
– Foi em fevereiro, mas só agora é que recebi o convite formal. O convite formal para ser membro, com certidão, chegou ontem [quinta-feira, dia 24].


JA – Em que é que consiste este seu trabalho como membro correspondente estrangeira? Faz lembrar jornalismo…
DP
– É integrar num processo de debate. Tenho um convite para ir lá apresentar a palestra. A Academia foi criada no século XVIII e reconhecida pelo rei da altura. Antigamente tinha o papel de ser conselheira do rei de Espanha, agora temos esta função de comunicação com a comunidade, debate ciência… É criar um grupo de pessoas que podem dialogar e debater temáticas relevantes, seja da área científica ou da área artística.

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JA – E com uma diversidade muito eclética… desde as ciências humanas às naturais, às exatas… E a sua área é medicina?
DP
– A minha área são biociências, ou ciências naturais.


JA – Pode-me contar a história profissional da sua vida? Onde nasceu há 61 anos e depois a seguir o que fez?
DP
– Nasci em Glasgow, depois fui para Londres fazer uma licenciatura na área de nutrição e fisiologia e depois fui para Liverpool fazer o doutoramento na área de fisiologia, em 1986. Depois fui para um hospital de Londres, trabalhar em neurociências. Onde trabalhei de finais de 1986 a 1988. Depois fui para o Ministério das Pescas, trabalhar em aquicultura, que estava em desenvolvimento nesta altura, no final dos anos 80. Depois encontrei o meu marido, de nacionalidade portuguesa, que trabalhava aqui, no início dos anos 90. Ele estava lá a fazer doutoramento e veio trabalhar para a Universidade do Algarve, vim com ele.


JA – Mesmo já para o CCMar?
DP
– O CCMar foi formado pelo professor Mariano Gago, que lançou aquele programa de tentar dinamizar a ciência em Portugal no ano 2000. Havia muitos professores novos vindos do estrangeiro e nesta altura criámos o CCMar, em 2002.


JA – Considera-se mais da área das ciências da saúde ou das ciências do Mar?
DP
– Sou da área das Ciências do Mar e Biotecnologia.


JA – O que tem feito em Portugal desde que para cá veio, em 1990/1991?
DP
– Nessa altura não havia o CCMar. Ainda não havia a faculdades, fiquei na Unidade de Agrárias, Recursos Aquáticos.


JA – O que de mais importante tem feito na área da investigação nos últimos tempos?
DP
– Quanto à formação, tenho tido oportunidade na minha área, de trabalhar com muitos jovens e formar até ao doutoramento e têm prosseguido os seus caminhos. Trabalho muito na metamorfose. Como os peixes planos, que primeiro são simétricos e depois dá-se a metamorfose e ficam planos. É um processo muito importante em termos de sobrevivência mas também é uma questão interessante em termos científicos: porque e como isso acontece? O linguado é o que chamamos um peixe plano, porque fica no fundo. Esse peixe, quando é uma larva é simétrico, anda na água e anda com os dois olhos no mesmo lado. Quando sofre a metamorfose vai para o fundo do mar um dos olhos migra por cima da cabeça e ficam os dois olhos em cima. Mas começa com uma forma normal simétrica. Trabalhei sobre isto com um grupo com quem mantenho relações e tenho publicado diversos artigos nesta área porque de facto é preciso decifrar como isso acontece e porquê. A migração do olho.


JA – Se eu lhe pedisse uma área em que pudesse exercer essa nova tarefa de ser correspondente, o que me poderia responder?
DP
– Nós temos ciência básica, que é uma baliza para entender como as coisas funcionam e esta diversidade à nossa volta. Mas depois há uma questão mais prática: à medida que vamos ficando mais maduros vamos começando a olhar para aplicações. Hoje em dia todos nós estamos perante esta questão da sustentabilidade, entendemos que o mundo não pode continuar como está e a área de produção de alimentos de forma a conseguir sustentar esta população mundial é previsto como sendo um dos principais focos de aplicação da aquicultura. O que é previsto é a produtividade em água em muito menos custos em termos ecológicos e ambientais do que a produtividade terrestre, No terrestre o problema é a ocupação de espaço, que tem custos em termos de desflorestação. Neste momento a nossa compreensão sobre o mundo natural, o que existe na água, estes organismos que queremos aproveitar para a aquicultura, vai ser uma das chaves fulcrais para criar estas sociedades sustentáveis que têm capacidade de alimentar o mundo.


JA – A Deborah é correspondente do CCMar?
DP
– Sou correspondente da Academia! Sou um membro que não é de Espanha nem de Barcelona. A minha figura como correspondente é uma cientista internacional qualificada e o contributo como correspondente são as minhas interações mais através de comunicação à distância. Mas tudo isto tem a ver com um facto histórico: hoje em dia não tanto, mas nos anos passados não era muito fácil viajar. Mas no passado a comunicação era feita por correspondência. Historicamente, ser correspondente era a pessoa ser de fora. Não é ser correspondente no sentido de ter uma determinada capacidade numa determinada área científica, mas é o diálogo que posso ter mais à distância. Não sou catalã e não pretendo viver em Barcelona. O eu contacto é como correspondente científica. Os cientistas têm a sua particular área de conhecimento mas procuramos fazer e estar na frente de outras coisas.


JA – Mas corresponde de cá para lá ou de lá para cá?
DP – Correspondo de cá para lá. Mas nas duas direções.


JA – Mas também corresponde sobre o que se passa no Porto, em Évora ou na Universidade de Aveiro?
DP
– Esta correspondência é muito mais acima. É uma correspondência a nível científica mundial. Fase aos avanços científicos, a nossa correspondência é a nível intelectual. Não estou a corresponder tudo o que se está a passar aqui nesta zona, estou a corresponder a nível internacional. Os artistas, os cientistas são vistos como sendo internacionais. E como tal uma correspondência que seja mais a nível intelectual e a nível científico e não tanto olhar para o que se está a passar aqui ou ali.


JA – Dê um exemplo, para melhor se perceber.
DP
– Por exemplo, podemos ter um debate sobre as propostas da Comunidade Europeia em como ultrapassar as dificuldades que resultam do covid. Isso depois Depois pode haver um debate informado dos vários membros correspondentes no mundo. Acaba por ser não necessariamente sobre o que eu faço mas um debate livre entre pessoas que trabalham em áreas de interesse mais alargado.


JA – Então nessa área do covid, a Débora está no Algarve mas também temos outras pessoas espalhadas pelo mundo. E todas elas reportam à Academia de Barcelona.
DP
– Sim, isso é lançado como ponto de discussão e pedem que façamos um debate. Basicamente o que importa é criar debate, tanto sobre o que estamos a fazer como o que nós presenciamos, ou outros especialistas tenham como temática para discussão, mesmo que não sejam coisas da minha área específica.


JA – Quem lança esses debates é a própria Academia?
DP
– É a Academia que vai promover.


JA – Mas podia haver um outro correspondente aqui no Algarve ou a Débora é “A Correspondente no Algarve”?
DP
– Não. Esta seleção é devido ao mérito e reconhecimento do meu currículo. No caso de haver outra pessoa que eu encontre em Tavira ou em Lisboa ou Braga, posso propor. É inerente à personalidade e indiferente à localização. A correspondência tem a ver com o nosso mérito e ser reconhecido pelos nossos guias, que seriam um grupo restrito de pessoas lá que depois votam entre eles. Eu podia estar em qualquer sítio do mundo e ter sido convidada. É como um prémio. Este ano ganho eu, para o ano ganhas tu. Não é querer saber o que se está a passar naquele sítio mas a individualidade. O mérito de uma pessoa. A parte de correspondência tem a ver com integrar em debates científicos ou artísticos.


JA – O que mais a atraiu no Algarve?
DP
– Quando cheguei aqui, em 1990, não se compara com o que há hoje, Fazer ciência foi muito complicado. Não havia infraestrutura. Mesmo a nível de Portugal em geral ainda não havia aquele estímulo que foi lançado pelo professor Mariano Gago. Agora há algo completamente novo. Fazer ciência aqui é quase como ter um novo livro em branco para escrever o que lá se quiser. É chegar a um sítio e ter que se montar tudo de raiz. Muito trabalho, mas também há uma liberdade muito grande no sentido do que nós podemos fazer. Não existem sistemas rígidos. Não é como as universidades tradicionais onde existem sistemas rígidos.


JA – Há mais liberdade para perguntar…
DP
– A pessoa tem que criar o seu próprio grupo, obter os seus reagentes, os seus equipamentos, etc. É tudo feito de raiz. A pessoa aqui tem oportunidade de definir o seu trajeto. Por outro lado, eu acho que aqui a qualidade de vida é maior. E continua a ser melhor. A qualidade de vida atrai gente que vem de fora e em termos de clima, a proximidade da natureza, a gastronomia….

João Prudêncio

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