Fernando Pessanha: “A sociedade portuguesa foi sempre de fachada”

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O vila-realense Fernando Pessanha, licenciado em Património Cultural e mestre em História do Algarve, já publicou seis obras de investigação histórica e três de ficção. O seu quarto livro deste último género vai ser apresentado brevemente. Além da investigação e da escrita de ficção, é pianista e compositor e acaba de terminar a banda sonora da curta metragem que é uma adaptação para o cinema de um dos seus livros

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DOMINGOS VIEGAS

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Pode levantar um pouco o véu da sua nova obra de ficção, “A Devota e a Devassa”?
Produzi pela primeira vez um livro que, não sendo um romance histórico, porque não tem número de páginas suficientes, nem um conto, porque é maior, pode ser enquadrado na designada novela. Passa-se no século XVIII, por isso, e não sei se esta designação existe, é uma novela histórica. Já escrevi alguns contos que abordam assuntos relacionados com a História, mas é a primeira vez que publico um trabalho de ficção, exclusivamente com conteúdo histórico.

Do que é que trata, concretamente?
Todas as anotações históricas são verídicas e correspondem àquilo que era a sociedade portuguesa da centúria de setecentos, ou seja, do século XVIII. Acaba por ser uma sátira a essa sociedade, àquilo que era dado a entender mas que correspondia a outra realidade.

Uma sociedade que pretendia mostrar quilo que não era?
Exatamente. Hoje utiliza-se muito a expressão “para inglês ver”. As pessoas do clero davam a entender uma coisa, mas tinham um tipo de vida completamente diferente. O mesmo acontecia com a fidalguia, que pretendia ser muito pomposa, mas muitos não tinham onde cair mortos. E isso acontecia com outros setores da sociedade. As anotações históricas e os acontecimentos da história do Império referidos nesta obra são fidedignos. Porém, há personagens fictícias. E cada personagem é um exemplo de um determinado grupo social.

Pode exemplificar?
Desde o nobre endinheirado que pretende dedicar-se a práticas intelectuais mas que não tem o mínimo talento, até ao herói pícaro português que de nobreza só tem o nome, que está falido e que vive constantemente de esquemas e de biscates. Os Lusíadas falam do herói ideal português, mas a nossa história real é exatamente o contrário.

Como assim?
A nossa história factual é feita de heróis pícaros. Aquela personagem da minha obra acaba por ser uma representação daquilo que era o grosso dos heróis que construíram o Império Português. Por exemplo, há outra personagem que dá a conhecer aquilo que seria a senhora recatada, muito devota, mas tudo o que tinha a ver com a Igreja Católica não funcionava exatamente assim. Era uma sociedade de fachada. Aliás, como acontece nos nossos dias. A sociedade portuguesa foi sempre uma sociedade de fachada a todos os níveis.

Considera-se mais um músico compositor, um historiador ou um escritor de ficção?
Considero-me, acima de tudo, pobre por vocação. O ditado já diz que “homem de muitos ofícios, sinal de pouco dinheiro”. Muitas vezes, para conseguirmos fazer face aos encargos da vida, temos que nos multiplicar em vários esforços e em várias direções. Antes de mais tive uma formação musical, já que os meus primeiros estudos foram no Conservatório. Só posteriormente é que dei início à minha vida académica direcionada para o património e para a História.

Como é que surgiu a escrita de ficção no meio da música e da História?
A ficção acaba por ser um hobby. Sou da área de letras, mas não tenho qualquer tipo de formação académica em literatura. Porém, preciso das três áreas para me sentir completo. Sem alguma delas sinto que começa a faltar algo à minha vida e tenho que ir logo recupera-la para encontrar a harmonia.

Revelou numa entrevista que escreveu os seus primeiros contos na infância e que não foram aceites pela professora…
…sim. Algo frustrante para uma criança que faz estas coisas de uma maneira espontânea e inocente. Quando a professora pedia as, então, denominadas composições não aceitava as minhas porque pensava que tinham sido preparadas pelos meus pais. Os meus pais sempre trabalharam na hotelaria, são pessoas extremamente humildes e, mesmo que quisessem, nunca poderiam dar-me esse tipo de apoio. Não aceitava a primeira composição, mas depois tinha que engolir em seco a segunda porque, segundo ela, era ainda melhor do que a primeira.

Um dos seus livros de ficção, “Hotel Anaidaug”, já foi escolhido para ser estudado numa escola de Faro…
…tenho um grande orgulho, porque não esperava. Pediram-me para fazer algumas apresentações do livro numa escola e fiquei surpreendido quando, dias mais tarde, uma professora de Português fez uma ficha de leitura para os seus alunos sobre o meu livro. A obra não faz parte do plano nacional de leitura, mas foi uma das escolhidas para ser lida por aquela turma. E os alunos foram depois avaliados. Achei extremamente curioso. Mais do que qualquer retorno económico, são estas coisas que tornam gratificante o nosso trabalho.

Como é que está o projeto da banda sonora do filme “Hotel Anaidaug”, uma adaptação para o cinema do seu livro com o mesmo nome?
É uma curta metragem do realizador Hernâni Duarte Maria e a banda sonora já está terminada. Fiz este trabalho com o Pedro Reis, baixista do meu trio, o InTento Trio. Está gravada e já rodámos o videoclip, que foi realizado pelo mesmo realizador. Acaba por ser uma pré-promoção do próprio filme, já que é o videoclip da música que tem o mesmo nome do filme. O Hernâni está a trabalhar lentamente porque não há muitos apoios e estas coisas são mais morosas do que se pode pensar. Mas o filme está em curso. Penso que o elenco já está escolhido.

Um dos seus trabalhos de investigação teve como tema Santo António de Arenilha. Porque é que há tão pouca informação sobre aquela antiga localidade?
Como dizia Frei João de S. José, uma das fontes do século XVI, Santo António de Arenilha era uma “vileta”, ou seja, nem vila era. Era uma terra pequenina, com pouca população e não deixou de o ser no seu expoente máximo demográfico, na segunda metade do século XVI. Existe pouca informação porque estamos a falar de uma pequena terra de fronteira que foi criada enquanto couto de homiziados. Quem era enviado para estas zonas perigosas de fronteira seriam pessoas que estavam a cumprir algum tipo de pena.

Mas há algumas fontes?
Há, pelo menos, quatro crónicas publicadas: uma História do Algarve, uma Corografia do Reino do Algarve, as Visitações da Ordem de Santiago e a viagem efetuada por D. Sebastião, que também foi documentada quando passou por cá. Além destes trabalhos, que estão publicados, existe diversa documentação no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Mas para fazer o levantamento histórico daquilo que era a realidade de Arenilha é preciso confrontar todas estas informações.

O objetivo do seu trabalho foi esse…
Exatamente. Confrontar as informações que nos são facultadas pelos autores que deixaram estas crónicas e a documentação avulsa, digamos assim, pois inclui correspondência e outros documentos, que, pelo seu caráter de antiguidade, está acondicionada na Torre do Tombo.

As ruínas da localidade desapareceram completamente?
Sim. As estruturas que, eventualmente, ainda poderiam subsistir desapareceram com o terramoto e com o maremoto de 1755. E quando aconteceu o terramoto já a localidade não existia há mais de 120 anos. Os materiais de construção eram essencialmente orgânicos, principalmente madeira, que são altamente perecíveis. A cantaria utilizada nos dois edifícios sagrados, se não foi reutilizada para outras construções, acabou por ficar soterrada na areia que está no fundo do mar.

Tem na forja algum novo projeto no âmbito da produção historiográfica?
Vou iniciar um doutoramento em História, na Universidade de Huelva, que irá dar pano para mangas. Estava a escrever sobre os 500 anos do ataque português a Marraquexe, um episódio quase desconhecido da História de Portugal e ainda mais desconhecido em Marrocos, e a diretora da Universidade Mohamed V, de Rabat, propôs-me que escrevesse algo para ser publicado em Marrocos. Esta ideia foi amadurecendo e, entretanto, surgiu a oportunidade de fazer o doutoramento em Huelva. O orientador gostou muito da cronologia e, em vez de abordar este episódio isoladamente, decidimos abordá-lo num plano mais alargado. Vou falar sobre Nuno Fernandes de Ataíde, um algarvio marafado do século XVI, que aparece na historiografia como o grande pesadelo para os mouros em Marrocos. Foi o capitão que conseguiu levar as armas portuguesas até ao grande Atlas.

 

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