Francisco Amaral: “O Estado explora o fumador, mas não o ajuda a deixar de fumar”

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O presidente da Câmara de Castro Marim, o médico Francisco Amaral, explica ao Jornal do Algarve como funciona o programa de cessação tabágica, gratuito, que criou naquele concelho. O autarca garante, ainda, que o tabagismo “é uma toxicodependência” e defende que o Estado deveria pagar a totalidade dos tratamentos

DOMINGOS VIEGAS

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O que é o tabagismo?
O tabagismo é uma toxicodependência. É preciso que isto fique bem claro. Por isso é que a minha primeira consulta assusta. Assusta porque eu explico tudo, ponho logo todas as cartas em cima da mesa. Começo, sempre, por perguntar porque é que fuma e toda gente diz que fuma porque gosta, porque sabe bem, porque lhe apetece. Ninguém diz que fuma porque é toxicodependente. É a partir daqui que começa a minha conversa. Os problemas têm que ser tratados de frente, não é escondendo. O tabagismo é uma toxicodependência e as toxicodependências não têm cura.

Mas há muitas pessoas que deixaram de fumar…
Deixam de fumar, mas se, daqui a um ano ou daqui a cinco anos, colocarem um cigarro na boca volta tudo ao mesmo.

Como é que o tabaco atua no organismo?
Cria recetores, neste caso particular da nicotina, no cérebro. Esses recetores estão sempre sequiosos de nicotina. Quem fuma um cigarro sente-se bem e alguns minutos depois começa a ficar ansioso. É o cérebro a pedir mais nicotina, porque estão lá criados os recetores e estes têm que ser preenchidos com alguma coisa.

Vem daí a dificuldade que muitas pessoas têm para deixar de fumar?
Exatamente. É a dependência. Começa tudo como uma brincadeira, muitas vezes aos 13 ou 14 anos, na escola, porque fica bem, porque querem parecer adultos, querem parecer mais homenzinhos. Daí a pouco tempo estão ‘agarrados’ à nicotina. Já atendi, neste programa de combate ao tabagismo, 350 pessoas e nenhuma admitiu que estava ‘agarrada’ à nicotina. Isto dá para perceber que as pessoas não sabem o que se está a passar com elas.

E quais são as consequências?
O tabaco mata. O tabaco mata mesmo. Isto não é um ‘slogan’ só para assustar as pessoas, é a realidade. Um fumador, em média, vive menos quinze anos do que um não fumador. Quando vou a um funeral de alguma pessoa da faixa etária entre os 50 e os 60 anos pergunto, sempre, aos familiares se fumava. A resposta é sempre a mesma: sim. O tabaco não provoca só cancro do pulmão, provoca outros cancros, entre os quais o da boca, o da garganta, o do esófago, o da bexiga… É, ainda, um fator de risco para os AVC e para os enfartes, que, junto com o cancro, são as principais causas de morte em Portugal. É um importante fator de risco, tal como é a diabetes, a hipertensão ou o colesterol, mas o tabaco tem a particularidade de estar relacionado com aquelas três causas de morte. Antes disso, há outras consequências: cansaço constante, vários problemas respiratórios, a pele a envelhecer mais depressa, dentes amarelos, osteoporose… Só há benefícios se a pessoa abandonar por completo o tabaco porque terá qualidade de vida, mais anos de vida e mais dinheiro na carteira.

Sentiu que Castro Marim era um concelho de fumadores?
Além de ter sentido isso, quando cheguei à Câmara estávamos em plena crise económica e deparei-me com muitas situações em que marido e mulher estavam no desemprego. Não tenho dúvidas de que este programa ajudou muitas famílias. Há famílias que deixaram de fumar há quatro ou cinco anos e já pouparam mais de dez mil euros. É muito dinheiro. Os fumadores acabam com a sua saúde e rebentam com a algibeira. Há pessoas que ganham o ordenado mínimo e fumam dois maços de tabaco por dia. Metade do ordenado é para aquela porcaria. Veja bem como isto mexe, além da saúde, também na economia familiar. Tivemos vários anos de crise e, para a economia familiar, foi muito bom que estas centenas de pessoas deixassem de fumar. Num casal onde os dois ganham o ordenado mínimo, e ambos fumam, é um ordenado só para o tabaco. Quando algum fica no desemprego é a loucura completa. Por isso, considero que valeu a pena e continua a valer a pena. Tudo o que se faz para combater o tabagismo é pouco. Infelizmente, vivemos num país onde o Estado é muito injusto.

É injusto? Como assim?
Já falo nisto há muitos anos. O Estado é injusto porque explora a saúde e a algibeira do fumador uma vida inteira, mas quando este quer deixar de fumar não o ajuda. A comparticipação e mínima. Há anos que ando a denunciar isto. Parece que, finalmente, fui ouvido porque desde há três ou quatro anos lá se lembraram de criar uma comparticipaçãozinha. Depois, há outra questão que é o tempo de espera. O fumador quer uma consulta para deixar de fumar e marcam para daí a quatro, cinco ou seis meses. Isto não faz sentido. Aprendi, ao longo dos anos, que os toxicodependentes têm de ser tratados com pinças, com muito cuidado. Não se pode sentir forçado a nada. No concelho de Castro Marim, quem quer deixar de fumar tem a consulta imediatamente. Ninguém tem que esperar. Outro dos fatores que tem contribuído para o sucesso deste programa é o facto de, aqui, ser tudo grátis. Há outra coisa importantíssima à qual ninguém liga: a decisão de deixar de fumar tem de partir do fumador. Acontece que, muitas vezes, esta decisão não é tomada ou quando é tomada já é tarde.

Quer dizer que não funciona se alguém tentar convencer o fumador?
Normalmente não funciona. Não é uma decisão imediata, é uma decisão lenta que vai sendo amadurecida e há um dia em que o fumador acorda e decide deixar de fumar. Normalmente, essa é uma decisão inabalável. Já mandei pessoas embora da consulta porque vejo que, por exemplo, a mãe vem acompanhar a filha porque quer que ela deixe de fumar, o marido vem acompanhar a mulher ou a mulher vem acompanhar o marido, pelos mesmos motivos. Assim nunca resulta. A decisão tem de ser pessoal, íntima, interior. Tem que ser o fumador a tomar essa decisão. Por isso, não faz sentido que uma pessoa que quer deixar de fumar esteja meses à espera de uma consulta depois de tomar essa decisão.

Continua a haver adesão da parte das pessoas? Continuam a recorrer às suas consultas?
Quase todos os dias ‘pinga’ aqui alguém e também está a acontecer uma coisa muito gira: quando alguém publica no facebook, para celebrar, que já não fuma há um ano, há dois anos ou há três anos, no dia seguinte tenho cá gente que também quer deixar de fumar. Não falha. Também temos ‘outdoors’ espalhados pelo concelho e isso contribui para que as pessoas decidam avançar para consulta.

Como é que funciona todo esse processo de consulta?
Os fumadores vêm cá e têm uma conversa comigo e com o meu chefe de gabinete, que é psicólogo. Depois receito alguma medicação, porque deixar de fumar sem ajuda de medicamentos causa muito sofrimento. As pessoas sofrem muito porque o organismo está sempre a pedir nicotina. Depois regressam de quinze em quinze dias enquanto estiverem a fazer o tratamento. Além disso, também lhes ensinamos pequenos truques.

Quais são esses truques?
A vida de um ex-fumador é completamente diferente da vida de um fumador ou de qualquer outra pessoa. Trata-se de pequenos truques para desviar a atenção em relação ao tabaco. São ensinamentos básicos para eles se defenderem. Os ex-fumadores também vão conseguindo encontrar os seus próprios truques. Antes de mais, é preciso explicar-lhes o que é uma toxicodependência porque a verdade é para ser dita e não para esconder. Quando dou alta a um doente explico-lhe que se voltar a colocar um cigarro na boca volta tudo ao mesmo. Explico-lhe os momentos em que isso pode acontecer, ou seja, momentos de muita alegria ou de muita tristeza. Por exemplo, numa festa de passagem de ano, num casamento, numa reunião de amigos com copos à mistura, algumas vezes alguém oferece um cigarro. Também é preciso estar atento a situações como a morte de um familiar, discussões mais acesas com alguém próximo… Isto, mais tarde ou mais cedo, vai acontecer e o ex-fumador tem de estar alerta e tem que saber que nessas situações pode ter vontade de fumar um cigarro.

Quem reside noutro concelho também tem as consultas e os medicamentos grátis?
Não. Nesse caso paga, apenas, a medicação. Temos pessoas do concelho de Vila Real de Santo António, algumas de Olhão, outras de Faro, mas a percentagem é pequena. A maioria é do concelho de Castro Marim.

Para quem não vive no concelho de Castro Marim, é caro fazer esse tratamento?
Um tratamento deste tipo anda à volta dos 250 euros. Precisamente porque a comparticipação por parte do Estado é muito pequena.

Quantas pessoas é que já abrange este programa de cessação tabágica?
Até este momento já recorreram ao programa 350 pessoas e a taxa de sucesso, ou seja, quem faz o tratamento completo e deixa de fumar, ronda os 85 por cento. Isto significa que cerca de 290 pessoas já deixaram de fumar. Houve algumas pessoas que abandonaram o tratamento a meio e outras tiveram recaídas. Mas as recaídas, às vezes, fazem parte do processo de desabituação. Algumas pessoas recaíram, não terminaram o tratamento, mas depois voltaram cá e agora já não fumam.

Como é que vê a leis relacionadas com o tabaco, nomeadamente as da proibição de publicidade, proibição de fumar em diversos locais…?
Concordo. Mas ainda há muito por fazer. Para já, o tratamento deve ser pago a cem por cento pelo Estado. Já imaginou se os dependentes da cocaína ou da heroína tivessem que pagar os tratamentos. Ninguém se tratava. Outra das questões é a da disponibilidade para a consulta. A decisão do fumador acontece naquele dia e naquele momento. Não se pode fazer com que ele espere meses por uma consulta depois de tomar essa decisão. A consulta tem que ser imediata para se poder apanhar essa ‘boleia’ e haver sucesso. Mas o problema não é só com o tabaco, que até tem cargas fiscais altas. Há situações que não se compreendem.

Quais?
Os alcoólicos que recorrem ao Serviço Nacional de Saúde rondam os oito por cento. Há 92 por cento de alcoólicos que andam aí a destruir-se a eles próprios e a destruir as famílias. E o Estado não quer saber. É verdade que o Estado impõe impostos sobre o tabaco e sobre o álcool, mas sobre o álcool é muito pouco. Cinco sextos do custo de um maço de tabaco vai para o Estado, o que está muito bem. Mas no caso do álcool isso não acontece. O álcool deveria ser mais penalizado e ter uma carga fiscal muito maior.

Mesmo com o preço que os cigarros têm, e estando sempre a aumentar, devido também a essa carga fiscal, isso não tem feito com que as pessoas deixem de fumar…
Importa sempre alguma coisa. O preço faz sempre com que as pessoas pensem duas vezes. Evidentemente que há vários fatores, mas a questão económica é um deles.

O que é que se pode fazer para reduzir, de uma vez por todas, drasticamente o tabagismo?
Aqui não há varinhas mágicas. A área das toxicodependências é a mais difícil e a mais frustrante para um médico. Segui muitos toxicodependentes, da heroína e da cocaína, em Alcoutim e, alguns deles, estavam muito bem num dia e no dia seguinte já estavam outra vez no fundo. São áreas muito difíceis. Aqui, em Castro Marim, tal como eu já tinha feito em Alcoutim, avançámos com este programa de cessação tabágica que tem sido reforçado com a colocação de cartazes na rua. O objetivo é fazer com que o fumador veja diariamente esses ‘outdoors’ e que estes o ajudem a tomar a decisão de deixar de fumar. Os cartazes deste tipo deveriam estar espalhados por todo o país. Aqui, é o nosso contributo para essa tomada de decisão. Não vale a pena dizer ao fumador para deixar de fumar, ele é que tem de tomar essa decisão. A pior coisa que se pode dizer a toxicodependente é “não faças isso”. Ele é que manda.

Como é que funciona este programa de cessação tabágica?
É uma parceria entre a autarquia e a Santa Casa da Misericórdia, que também tem lá um médico pago pela Câmara. Há uma simbiose de esforços para que isto funcione. Também temos uma boa articulação com o centro de saúde local, nesta e noutras iniciativas. As coisas, em termos de saúde, estão a funcionar bem em Castro Marim. Recentemente colocámos em funcionamento uma nova unidade móvel de saúde que está a percorrer o interior do concelho. Também estamos a desenvolver um programa de combate à obesidade.

O programa de combate à obesidade funciona nos mesmos moldes?
Antes de mais, deixe-me explicar-lhe que a obesidade é uma doença que também mata. Também é um fator de risco para AVC, enfartes e cancro. O nosso programa de combate à obesidade é feito em articulação com o Centro de Saúde. Porém, a forma como o Estado vê a obesidade é outra das desgraças que existem neste país. Uma pessoa obesa solicita uma consulta, marcam-na para daqui a um ano, depois tem que esperar mais um ano para a consulta de psicologia, outro ano para a de nutrição… Isto é gozar com as pessoas. A Câmara de Castro Marim contratou uma psicóloga, contratou uma nutricionista, tem bons técnicos de desporto e, neste momento, temos 150 pessoas a perder peso. É mais um contributo para a qualidade de vida das pessoas e para que elas vivam mais anos.

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