Generosidade teimosa

Amigo é coisa pra se guardar do lado esquerdo do peito

Mesmo que o tempo e a distância digam não

Milton Nascimento

Há quem não se lhe cole à pele a palavra “morte”. Os que estão de bem com a vida, os intensos, os que dão gargalhadas sonoras, em suma os que gostam de viver e por isso vivem felizes. E por tabela dão felicidade aos que os rodeiam.

Sim, era o caso do Fernando. No fundo era um bonacheirão, gostava de comer, de conversar, de rir. E de viajar. E de botar opinião, argumentar, discutir. Era, mesmo, um apaixonado da vida. A maioria das fotos em que aparece sozinho (as que eu vi) não lhe fazem inteira justiça, mas são reveladoras. Só, aparece sério, irresoluto, quase preocupado.

Mas para quem o conheceu, longe das fotos solitárias dos últimos anos de vida, o Fernando apresentava uma alegria que contagiava os demais. Sempre.

Há uma outra característica no homem que agora se vai: a sua imensa generosidade. Uma bondade intrínseca que ele ocultava debaixo de carradas de verniz com ares de dureza e que por isso às vezes não era apreendida à primeira pelos que os rodeavam. Nesse aspeto, o Fernando fingia: debaixo das pedras, ele era muito mais do que um simples “senhor do seu nariz”, com opinião formada sobre tudo.

Fui “vítima” dessa generosidade escondida, quase envergonhada. Deu-me a mão quando eu mais precisava e quando menos pensava que o coração emergisse. Porque não era evidente que ele lá estivesse a não ser no momento em que se manifestou, de forma esplendorosa. Foi o que aconteceu comigo e estar-lhe-ei para sempre grato. Como acontece tantas vezes com os grandes, o peito não andava escancarado, com o coração lá dentro, palpitando. Mas o coração estava lá, esteve lá nestas décadas todas, à espera do momento da revelação. Revelou-se. Comigo e, sei, com muitos do que com ele conviveram e trabalharam. É que essa revelação dava-se sempre, espreitava apenas a oportunidade de se manifestar. Sim, no meu caso manifestou-se, no instante certo. Os grandes não prometem, nem simulam a promessa, limitam-se a fazer, cumprir afinal o que jamais prometeram.

Como tantas vezes acontece, gostava de lhe ter dito meia-dúzia de verdades, de ter esboçado um agradecimento, enlaçado um abraço fraternal, um simples “gosto de ti, porra”, como se atirado a um irmão mais velho. A vida raramente nos dá tempo para o mais importante. Sobra em nós um indefinível apreço que não conseguimos colocar nos lábios na hora certa, revelar em palavras.

Ficam aqui, grande Fernando, meu irmão mais velho, agora que aqui não estás, as palavras que nunca te disse, mas que agora te arremesso, lá para a eternidade para onde te atirou esta terrível doença.

Um dia destes, prometo, dir-te-ei isto e muito mais, comeremos a nossa última caldeirada, beberemos café de gargalhada na garganta e teremos enfim a derradeira discussão editorial. Já estou cheio de saudades desse dia por vir. Até lá, irmão grande.

João Prudêncio, jornalista do JA

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