Há morte na esquadra

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Dois dias antes de se matar com a arma de serviço, a 300 metros da esquadra de Águas Santas, na Maia, Ana Paula escreveu uma carta de despedida. A agente, de 38 anos, fez o que é raro numa mulher: apontou para o coração e disparou. Na mensagem, partilhou o que a magoava e explicou o que pretendia: não queria fardas no funeral e não se terá se esquecido de destinar as prendas de Natal das duas filhas.

Ana Paula suicidou-se na noite de 11 novembro, nos arredores da esquadra. O terceiro elemento da PSP a matar-se em menos de uma semana, escolheu, como na esmagadora maioria dos casos nas forças de segurança, a arma de serviço que a acompanhava 24 horas por dia, para concretizar, com eficácia, a decisão sem retorno.

Ninguém sabe ao certo o que levou a agente, treinada para lidar com situações de conflito, a virar a arma contra si mesma. Mãe de duas raparigas, uma com oito anos, outra com seis, acredita-se na corporação que o motivo terá sido passional, mas o aviso de que não queria fardas no enterro também pode indiciar mal-estar com a profissão.

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Vivia em Rio Tinto, estava a passar por um divórcio e, segundo fonte próxima da corporação, quis reatar com o ex-marido, que terá resistido à reconciliação. Mas foi ele, também polícia na mesma esquadra, que foi chamado à ocorrência, sem saber a identidade do corpo. Colegas de profissão no anonimato disseram ao Expresso que a carta revela que a decisão de Ana Paula não resultou de um momento de desespero, “antes revela determinação e preparação”.

A única mulher das forças de segurança a cometer suicídio este ano é uma das 15 histórias que, até agora, entre PSP, GNR e guardas prisionais, mancham de negro o ano de 2015. E sobretudo em novembro, quando se verificaram quatro suicídios na PSP e três na GNR. Num mês, morreram mais agentes do que em todo o ano passado. Em Espanha, país com cinco vezes mais população, suicidam-se em média 14 agentes da Guarda Civil a cada ano. Em Portugal, última morte aconteceu há três dias: um agente de 26 anos da Unidade de Intervenção da Guarda, força de elite da GNR, tirou a própria vida à porta do serviço.

A situação é de tal forma preocupante que o Ministério da Administração Interna (MAI) deu 30 dias para se tentar resolver o problema. Prazo que acaba esta segunda-feira, quando deveriam ser apresentadas medidas concretas de combate. Mas o prazo deverá ser alargado devido à mudança de Governo e por terem sido pedidos os contributos dos sindicatos. Mas, para já e poucos dias depois da criação do grupo de trabalho, com representantes da PSP, GNR, MAI e do Ministério da Saúde, foi anunciado que o Plano de Prevenção do Suicídio nas Forças de Segurança será revisto e reforçado. E há cerca de dois meses, vários agentes da PSP são chamados a fazer rastreios psicológicos.

Restringir o porte da arma de serviço?

Num e-mail enviado há duas semanas aos 23 mil efetivos, o diretor nacional da PSP reconheceu a gravidade do problema. Luís Farinha assumiu que a polícia “foi fustigada, nos últimos dias, por vários suicídios de elementos policiais” e reconheceu o falhanço da estratégia de prevenção e combate em vigor. “Não obstante os meios e mecanismos existentes e acessíveis a todos os polícias e das 10.500 consultas de avaliação psicológica já realizadas, verifica-se que infelizmente continuam a ocorrer suicídios entre a família policial.” As medidas, contudo, terão sabido a pouco: a intenção de contratar mais psicólogos e, sobretudo, a intenção de que agentes com formação em Psicologia sejam convidados, a título voluntário, a prestar apoio aos colegas fragilizados.

Problemas económicos, afastamento de casa e, sobretudo, a desagregação familiar são os principais motivos apontados para os suicídios. Mas determinante é o porte permanente da arma de serviço. Rui Abrunhosa, professor da Universidade do Minho, recorda que “para cometer um suicídio é o motivo mas também o meio e os polícias têm-no”. Por isso, defende que a avaliação psicológica ocorra diariamente, em reuniões de fim de turno, permitindo aos efetivos descomprimir da tensão e preparando a saída do posto de trabalho.

“Praticamente a totalidade dos suicídios é cometida com a arma de serviço, colocando a questão sobre os procedimentos a adotar quanto à restrição do porte de arma perante vulnerabilidades psíquicas que possam indiciar elevado risco de suicídio. Mas esta matéria é complexa, já que a restrição pode ser interpretada como vexatória ou de desqualificação da função de polícia”, considera Carlos Braz Saraiva, psiquiatra que participou na elaboração do Plano Nacional de Prevenção do Suicídio.

Paulo Rodrigues, presidente da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP), explica que existe um fosso entre a administração e os problemas dos polícias, o que, diz, “desencadeia desmotivação, revolta ou desespero, agravando o mal-estar de quem já está fragilizado por razões pessoais ou financeiras”. Antes mesmo de ser chamada, a ASPP já ultimava um documento para entregar à tutela, em que o destaque será a reivindicação de inspeções de Higiene, Saúde e Segurança no trabalho.

A exaustão de despir a farda

As explicações variam. O porta-voz da PSP, Paulo Flor, reconhece que as últimas semanas foram “fatídicas” e sublinha o fenómeno da imitação nos casos mais recentes: “Nem tudo pode ser imputado ao mimetismo, mas não podemos descurar as consequências deste mediatismo que extravasa a nossa capacidade de controlar as variantes externas que influem e muito nas consequências finais.”

A GNR é a segunda instituição mais afetada, tendo perdido seis guardas este ano. Com 22.500 militares no ativo, é justamente aos números que recorre a explicação sindical para muitos dos problemas sentidos na força militar. “O quadro orgânico é de 23.038 elementos, pelo que o défice de efetivos é evidente, com consequências no excesso de trabalho”, explica César Nogueira, presidente da Associação dos Profissionais da Guarda.

Um estudo do sindicato constatou que perante a pergunta “alguma vez pensou procurar ajuda psicológica ou psiquiátrica por questões relacionadas com a profissão?”, 41,5% dos inquiridos responderam que sim e 19% reconheceram ter procurado este apoio. Mas, acrescenta César Nogueira, “dificilmente um profissional da GNR que se esteja a sentir afetado pelo stresse crónico irá dirigir-se à instituição.”

Apesar das especificidades, é unânime às forças de segurança a falta de informação sobre quantas serão as baixas psiquiátricas apresentadas pelos efetivos. Questionadas pelo Expresso, não foram capazes de avançar com números.

“Este é um problema que não se conseguirá resolver porque é inerente à profissão”, acredita um agente de investigação criminal da PSP, que pede anonimato. Sublinha a dureza dos turnos de oito horas nas patrulhas, em que pode enfrentar quatro ou cinco ocorrências, marcadas por picos de stresse. “Quando o turno acaba, despir a farda é simbólico e está-se num estado de exaustão nem sempre é compreendido por quem vive connosco.” Explica ainda que pede sigilo porque “quem fala é punido com dias de multa, descontados no vencimento, e atrasa as promoções”.

Há cinco anos na PSP, casado com uma militar, acredita que os elementos mais frágeis deveriam ser afastados na formação: “Na escola é possível perceber se uma pessoa tem tendência depressiva.” Fala por experiência própria, depois de ter conhecido um colega com estas características que chegou a polícia e se suicidou na esquadra em que trabalhava. A posição da instituição é outra. O porta-voz da PSP diz que “é dada particular atenção aos novos elementos durante os cursos de formação e no primeiro ano de serviço”.

Este não é um trabalho fácil

Este ano, um dos quatro mil guardas prisionais cometeu suicídio à noite, sozinho na torre de vigia. Um número baixo que espanta Jorge Alves, presidente do Sindicato dos Guardas Prisionais: “É estranho, considerando os turnos de 24 horas, em que ficamos fechados em estabelecimentos prisionais cada vez mais sobrelotados.” A inexistência de apoio psicológico e a não inclusão desta categoria profissional no plano de prevenção são outros motivos de descontentamento.

Quem ainda se tem mantido à margem da onda de suicídios é a Polícia Judiciária, há cinco anos sem nenhum incidente entre os 1335 efetivos. Apesar da ausência de registos, a Associação Sindical dos Funcionários de Investigação Criminal alerta para a inexistência de um plano preventivo ou de apoio psicossocial. Salários mais altos e menor exposição pelo não uso de farda serão respostas para os resultados mais positivos.

António Pereira foi baleado numa ação do corpo de elite da GNR faz 13 anos. Ficou incapacitado de um braço e passou à retaguarda. Algum tempo depois, perdeu a mulher para um cancro e ficou sozinho com uma filha menor. Colega do último homem da Guarda que se suicidou, diz que foi o espírito de grupo que o ajudou a suportar e defende que “é mais difícil viver do que morrer”.

Mas nem todos têm a mesma resistência. Há 15 anos na PSP, uma agente do sexo feminino que não quer ser identificada diz que já por mais de uma vez pensou matar-se, à noite na esquadra. Quando começou não a avisaram do que a esperava. Distante da família, do filho então com cinco anos, pensou desistir, mas a necessidade de estabilidade no trabalho agarrou-a à farda. “Entrei muitas vezes em depressão, vi um colega suicidar-se perto da esquadra, tomei comprimidos para dormir. Este não é um trabalho fácil.”

Suicídios nas forças de segurança em 2015

Janeiro, homem, 50 anos, Portalegre
GNR, arma de fogo, em casa

Abril, homem, 48 anos, Faro
PSP, arma de fogo, local de serviço

Maio, homem, 37 anos, Barcelos
PSP, arma de fogo, local de serviço

Junho, homem, 46 anos, Faro
GNR, arma de fogo, na praia

Agosto, homem, 37 anos, Santarém
GNR, arma de fogo, automóvel pessoal

Agosto, homem, 36 anos, Lisboa
PSP, arma de fogo, local de serviço

Agosto, homem, 36 anos, Alcoentre
Guarda prisional, arma de fogo, local de serviço

Outubro, homem, 56 anos, Lisboa
PSP, arma de fogo, em casa

Novembro, homem, 42 anos, Tomar
PSP, arma de fogo, imediações do serviço

Novembro, homem, 49 anos, Lisboa
PSP, arma de fogo, local de trabalho

Novembro, mulher, 38 anos, Maia
PSP, arma de fogo, imediações do serviço

Novembro, homem, 53 anos, Lisboa
PSP, arma de fogo, local de serviço

Novembro, homem, 39 anos, Torres Vedras
GNR, arma de fogo, fora do serviço

Novembro, homem, 52 anos, Lisboa
GNR, arma de fogo, local de serviço

Novembro, homem, 26 anos, Lisboa
GNR, arma de fogo, local de serviço

Christiana Martins e Isabel Paulo (Rede Expresso)

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